Nada é parado, nada é seguro, nada é infinito ou puro.


De como era difícil ser militante revolucionário:

 [ O texto abaixo foi escrito em 1982 por uma moça de 24 anos já com alguns sintomas daquilo que mais tarde seria diagnosticado como "Síndrome do Pânico" associada à depressão. O original, apresentado em uma reunião de célula de uma organização pretensamente clandestina, chamada Organização Revolucionária Marxista Democracia Socialista, continha um número grande de erros em ortografia e gramática, comprometendo a força do conteúdo, embora a moça tivesse sido uma ótima aluna no primeiro e no segundo graus. Além disso, era um texto datilografado em máquina portátil mecânica, o que fazia com que os erros de datilografia e ortografia fossem bastante definitivos. Ela já estava com a memória muito abalada (embora nem desconfiasse), pela ansiedade crônica e pelo consumo intenso de álcool, maconha e nicotina, além de uma incapacidade de atenção e foco adquirida em seis anos de descoberta de um mundo não mais seguro do que o mundo no qual ela havia crescido:  estava prestes a reconhecer o tamanho  da sua desproteção e fragilidade. A moça se chamava Dinah e, depois de dois abortos em clínicas clandestinas, estava a uma distância muito curta de tornar-se mãe; não era intelectual, tinha pouca leitura e abandonara a universidade em 1980. Carregava possibilidades de transtornos emocionais já decorrentes do histórico das famílias de seus pais. Tinha uma bagagem boa de leitura dos clássicos do chamado "realismo mágico latino-americano" e das coleções de Agatha Christie e George Simenon, além da literatura brasileira necessária a uma boa aprovação no concorrido vestibular da UFRGS. Havia sido aprovada na classificação geral nº 435 (mais ou menos isso) no vestibular e ingressara na Arquitetura da federal gaúcha, em 1977.  Não obstante a pouca leitura acumulada, muito do conteúdo do texto revela um pensamento que, vinte anos mais tarde, viria a ser encontrado, em leituras de uma mulher amadurecida sentimental e intelectualmente, em autores como  Michel Foucault, Deleuze e Guattari, Derrida e mesmo Nietszche, rejeitado pela moça assustada e desejosa de participar em uma organização política de esquerda. O texto mostra também uma intuição aguçada de que o caminho da esquerda brasileira não estava mostrando consistência filosófica. O título do original era: nada é parado, nada é seguro, nada é infinito ou puro. Havia  a colagem de um recorte de revista, em preto e branco, na montagem do documento original apresentando um operário com capacete de obra, macacão e feições de extremo cansaço e melancolia. A citação de Marilena Chauí abria o documento. A versão abaixo apresenta  correções na ortografia e mantém o conteúdo intacto.]


“O DISCURSO COMPETENTE É O DISCURSO INSTITUÍDO. É AQUELE NO QUAL A LINGUAGEM SOFRE UMA RESTRIÇÃO QUE PODERIA SER ASSIM RESUMIDA: NÃO É QUALQUER UM QUE PODE DIZER A QUALQUER OUTRO, QUALQUER COISA EM QUALQUER LUGAR E EM QUALQUER CIRCUNSTÂNCIA. O DISCURSO COMPETENTE CONFUNDE-SE, POIS, COM A LINGUAGEM INSTITUCIONALMENTE PERMITIDA OU AUTORIZADA, ISTO É, COM UM DISCURSO NO QUAL OS INTERLOCUTORES JÁ FORAM PREVIAMENTE RECONHECIDOS COMO TENDO O DIREITO DE FALAR E OUVIR, NO QUAL OS LUGARES E AS CIRCUNSTÂNCIAS JÁ FORAM PRÉ-DETERMINADOS PARA QUE SEJA PERMITIDO FALAR E OUVIR E, ENFIM, NO QUAL O CONTEÚDO E A FORMA JÁ FORAM AUTORIZADOS SEGUNDO OS CÂNONES DA ESFERA DE SUA PRÓPRIA COMPETÊNCIA.”

 [MARILENA CHAUÍ       EM CULTURA E DEMOCRACIA]






                Nem Hollywood, nem Woodstock

A ideologia burguesa não pode ser apenas identificada como um conjunto de regras de normalidade, daquilo considerado como sadio, puro e certo. Para além da norma, o que a ideologia dominante naturaliza é a oposição entre o bem e o mal, o normal e o anormal, o culpado e o inocente. Um justifica a existência do outro e sem ele não sobrevive. O que explica a inevitabilidade da pobreza e da fome é o direito à riqueza e à fartura; o ato de amar alguém é medido na mesma escala em que se mede o ato de odiar a outro. A comparação estabelece vida aos opostos caracterizados como eternos ou infinitos. O tempo como “transformar”, como fazer História não existe. O tempo é o passar das horas, que ninguém pode alterar, e que a cada minuto significa novos minutos iguais que se impõem como eternidade. Essa eternidade estabelece o significado do ato de ser alguma coisa. O que é sempre será, e quem não aceita, automaticamente não vê e não sabe. O não saber é apenas a negação do ser natural e o justifica. O patrão é a negação do empregado. O explorador é a negação do explorado e explica a sua existência. A ideologia burguesa institucionaliza a revolta como descontentamento pela existência do contente, do satisfeito. É nessa medida que a revolta passa a ser parte da ideologia burguesa, quando o que lhe dá vida é a existência daquilo que ela repudia. A luta revolucionária propõe a extinção dos opostos “explorados e exploradores”. Nega o maniqueísmo do estabelecido e propõe algo novo.

                O novo é inaugural e fora do controle e da iniciativa da norma


              A ideologia dominante também está presente no modo de pensar e agir daqueles que se propõem a construir a organização e mobilização dos oprimidos, a dirigir o processo de transformação social. Desde que nascemos fomos educados para o ajuste aos valores da classe dominante. Convivemos a maior parte do dia com estes valores expressos como “normalidade”. Não é por desejarmos a transformação e nos dedicarmos a ela que nos transformamos em seres de outra época, da noite para o dia.
Queremos um novo tempo, mas pertencemos ao tempo que queremos destruir. Compreender esse limite nos põe diante do desejo do “Homem Novo”, que não somos nós, que é um futuro para ser construído. Somos campo de batalha também. De luta de classes. Cada um que se percebe limitado quer transformar a si próprio e se capacitar à mudança daquilo que o cerca. Permanentemente. Revolucionar é mudar sempre, e não estabelecer um novo padrão. Portanto, mãos à obra para descobrir os velhos e novos tabus, desvendar o maniqueísmo onde ele se expressa. Levar à práxis a inauguração é nossa tarefa.

Hollywood – o bom militante


O bom militante ensina os outros a fazer revolução. Exerce uma relação unilateral no que pensa ser o ato de transformar: ele se propõe a transformar os outros. Decorre que o bom militante não pode admitir nenhum referencial novo questionando o seu próprio modo de agir e pensar, o que faz com que ele tenha, nas questões essenciais, a si próprio como referência e seu comportamento com padrão. Isto não acontece de forma absoluta, pois seria muito fácil de ser combatido, isto é, o bom militante até admite ter limitações e por isso se propõe como padrão possível
Na medida em que necessita justificar a si próprio, ele estabelece uma distância intransponível entre o possível e o desejado. Quanto mais o desejado possa questionar o status quo social e político do bom militante, mais este coloca o desejado como sinônimo de impossível. O possível e o desejado são, para ele, perseguidos por caminhos diferentes. O caminho do possível é pedregoso, mas bem sinalizado. É o caminho da prática sem teoria, do empírico. É o caminho da tática com vida própria, independente ou até contraditória com a estratégia. O caminho do desejado é posterior e só é alcançado pelos bem aventurados militantes que galgam o sacrificado e insosso caminho do possível. O desejado, por vezes, se metamorfoseia em discurso de idolatria do futuro, a estratégia transformada em dogma, a esperança que adoça o banal necessário do presente.
Melhor um pássaro na mão do que dois voando. O bom militante nunca se arrisca, guia-se pelo bom senso e isto lhe basta, é suficiente. Esqueceu que o bom senso suficiente emerge do senso comum – ideologia dominante. Para poder preservar o seu modo de vida intacto, o bom militante dicotomiza a luta ideológica da luta econômica. Em decorrência secundariza o político da luta e compartimentaliza o movimento revolucionário em somatório de lutas necessariamente hierarquizadas. Não consegue identificar a ideologia dominante presente em todos os acontecimentos, o que o impede de perceber e estimular a luta ideológica presente em todos os movimentos e lutas.
Não consegue visualizar o movimento como uma coisa dinâmica, onde a principalidade de uma luta é peculiar a um determinado setor. Uma metalúrgica negra que milita carrega consigo pelo menos estes três fatores de inserção enquanto oprimido: sexo, raça e classe. Não deixa de ser mulher e daí por diante, vice-versa. Portanto, a sua prioridade de militância depende da dinâmica circunstancial do movimento e da especificidade da sua inserção nele. Se o movimento feminista vive um "Ascenso", esta metalúrgica pode cumprir um papel fundamental como mulher – metalúrgica, e isto significa uma prioridade em seu trabalho. Cada setor social encerra em seus indivíduos componentes um sem número de contradições com o sistema que podem se expressar no movimento relativo ao setor. Se o movimento operário vive um momento explosivo, a nossa metalúrgica pode vir a cumprir um papel, prioritário em sua militância, de dirigente sindical. E mais, o movimento sindical, neste instante, pode se enriquecer de tal forma que a leve a cumprir um papel combinado, de classe, sexo e raça: na mobilização de um dissídio pode despontar o classismo, a negritude e o feminismo, na metalúrgica mulher negra.
Um partido político que queira se colocar como dirigente e construtor do movimento deve entender esta dinâmica e construí-la. O prioritário deve ser entendido como a síntese circunstancial do secundário que o alimenta. Não de uma forma hierárquica e sim dialética. Um exemplo: para o bom militante, a luta pela contracepção livre não derruba ditaduras, não trata com as relações de produção, não é movida pela “luta de classes”, não diz respeito às necessidades do “conjunto do proletariado”, portanto é secundária, embora importante luta a ser tratada com seriedade. A seriedade do bom militante é uma qualidade religiosa e intrínseca, que ele distribui proporcionalmente à importância do que está sendo tratado. No caso que estamos analisando ele dá um pouquinho ínfimo, acidental, da sua muita seriedade. Na verdade, o bom militante (homem ou mulher) se esforça por ignorar algo que lhe é inquietante e incômodo: a discussão da sexualidade liberta, que teimosa e maliciosamente impregna a luta pela contracepção livre. A discussão sobretudo do exercício da sexualidade, que tanto fere os pilares da família moderna, instrumento vigoroso de dominação. Amor e sexo são questões de “foro íntimo” para a ideologia dominante. E para o bom militante também. Ele conserva, sem questionar, o registro de uma dicotomia que conheceu na infância: o sexo/pecado, discutido num tom comadresco, inodoro e ingênuo pelas mulheres e de forma patriarcal, truculenta e epidérmica pelos homens. Isto não pode ser sério.
O bom militante é másculo e sóbrio, higienicamente contido. É heterossexual por princípio e monogâmico por opção. Defende a libertação da mulher como quem reza o pai nosso mascando goma (chiclete), mas, bem no fundo do rasinho ele/ela acha que gravidez e nenê é coisa que só mulher entende direito. Nada mais natural para o bom militante que a mulher ficar com as crianças e o homem ir à reunião, pois isso corresponde a um fato eventual e concreto dele ser importante e da reunião ser fundamental, ora. O bom militante é contra a discriminação ao homossexual, mas acredita - sinceramente - que no comunismo não vai ter dessas coisas, coitados, produtos da sociedade capitalista que são. O bom militante é um lutador incansável contra a família e demais instituições burguesas, embora se orgulhe do número de anos que está com seu companheiro e pense que o tempo/minuto define a profundidade de uma relação. O bom militante é possessivo no amor e exaure-se em suas contradições emocionais e físicas, na madrugada, para limpa-se dos resquícios do “íntimo” ao amanhecer e sair na incansável, conhecida e cotidiana revolução dos outros. O bom militante é, sobretudo, um militante competente.


              Woodstock - O Jovem Rebelde


             A classe dominante se capacita para responder de duas maneiras diferentes àquele que se rebela: ou reprime drasticamente ou absorve descaracterizando a crítica, incorporando novas características aos valores tradicionais, revitalizando a velha linguagem, remontando a sua ideologia e instituições. No fundamental, a liberdade - no discurso dominante -  não é o significado do ato, é o sentimento imanente ao fato do ato ser individual. Liberdade se opõe à coletividade. O que é livre é particular, específico, incomparável. Os indivíduos podem estar inseridos em classes, raças ou grupos que definem, homogeneízam e padronizam os seus comportamentos e dão significado a sua existência. Isto não conta para a busca da liberdade. Se o que é livre é individual, o que não é livre também é individual. Liberdade não é ser diferente do que se é, pois implicaria em identificar o que se é, saber-se inserido num determinado coletivo que é da mesma maneira, e buscar que este coletivo seja diferente. Liberdade é sentir-se diferente, existindo num coletivo igual.
        A liberdade que a ideologia dominante prega defende as diferenças individuais abstratas, para mascarar as igualdades no interior de uma mesma classe e esconder as diferenças concretas entre as classes, sexos e as raças. Os oprimidos deixam de existir porque “todos são iguais perante a Lei”, o que determina a culpa ou inocência individual. Qualquer pessoa pode individualmente se fazer respeitar, embora a mulher seja “um animal de cabelos longos e idéias curtas (Nietzsche) e o negro “quando não c... na entrada, c... na saída”. Garantido o princípio, a aparência se renova e adéqua. A ideologia dominante refaz a sua aparência quando esta é questionada. A classe dominante garante a essência de sua ideologia mediante a repressão. Se a revolta aponta a crítica à guerra imperialista e à matança dos jovens nos exércitos nacionais em defesa de determinados interesses do capital, opondo a tudo isso a “paz e o amor” (movimento pacifista da década de 60), enfrenta-se definitivamente numa luta contra o poder burguês, luta que aponta para a radicalização.  Ou a revolta se cola à perspectiva da classe oprimida e busca sua organização no combate ou será absorvida. A ideologia dominante absorve a revolta da juventude quando incorpora e institui um padrão de rebeldia juvenil, que se opõe à luta coletiva. Recria-se o prazer, o amor, o ócio e a alegria como imanências do individual. Renasce, vigorosa, a velha liberdade: uma calça velha, azul e desbotada, que você pode usar do jeito que quiser. Não usa quem não quer. Aí a juventude é institucionalizada pelo discurso burguês. A rebeldia e o descontentamento aparecem enquadrados num esquema de “diferença de gerações” que se completam, criando a harmonia da sociedade da ordem (estática) e do progresso (dinâmico). Aparece assim: o jovem e o velho vivem o impasse entre duas impotências que se opõem. Um carrega a possibilidade do futuro, o desejo de novas descobertas, as perguntas sem respostas, a vontade de ação. O outro é o conhecimento acumulado, a experiência, a tradição justificada, a explicação do passado. Um tem a potencialidade da ação, mas não detém o saber que a viabiliza. O outro detém o conhecimento alienado da capacidade de ação. Os dois não podem ser sujeitos e são imprescindíveis instrumentos de sua síntese e superação, o adulto. O adulto é o status quo em desenvolvimento progressivo e linear.
               Assim estabelecida, a rebeldia do jovem conquista o seu lugar na ideologia dominante, deixa de ter explicação histórica, econômica e social e passa a existir como um fator biológico, etário. Admitindo-se a “juventude” como um setor social determinado, que expressa um descontentamento específico em relação ao sistema vigente, é necessário buscar formulações desta opressão específica, no interior de uma análise marxista, que possibilite propostas de organização e militância para este contingente dos oprimidos (Trabalhos como os de Reich trazem importantes contribuições neste sentido). Não sendo assim, estaremos correndo o risco de reforçar um novo (velho) tipo de “militância” que mais interessa à burguesia do que aos trabalhadores: o jovem rebelde.
             O jovem rebelde é a negação do bom militante, é o seu complemento, se justifica por ele e o justifica. Deixa aflorar o “ser revolucionário” que lhe é inerente. Não se constrói, libera o já pronto (e quem puder que libere a si próprio). Saboreia a sua liberdade individual e preserva a sua condição de exceção à regra. Estabelece uma hierarquia entre o intuitivo (emoção) e o elaborado (razão) e privilegia o primeiro. Opõe o mundo real (o cotidiano, a aula, as tarefas, o trabalho, a família....), ao imaginário (a melodia, a poesia, o prazer sexual, a graça, a piração, a festa, a dança, o canto, a guloseima, o ócio). Na verdade, o jovem rebelde preserva o real, que nega, ao buscar a satisfação fora dele. Não intervêm em sala de aula no sentido de transformá-la, mas pratica uma espécie de “terrorismo” – destaca-se do coletivo em posição de confronto tipo –“vocês são uns medíocres”. Ao se “liberar” sem se construir, sem construir os outros e sem permitir ser construído, revela o medo e recusa ao enfrentamento de suas próprias contradições. Nega a família, mas constrói guetos familiares com outros jovens rebeldes. Para pertencer a uma família é preciso ter a competência genética da consangüinidade. Para pertencer ao gueto é preciso ter a competência também imutável, inata e não apreensível de ser jovem rebelde. Ao utilizar padrão semelhante incorre no reforço da família tradicional. Dissocia a construção de relações, do prazer sexual. Relaciona-se com todo mundo para ocultar que não se relaciona. Transa com todos para negar a não transa. Em decorrência permanece tendo como referenciais (embora ocultos no inconsciente) afetivos o pai e/ou a mãe.
            O jovem rebelde desacredita em todo e qualquer coletivo organizado que pareça para ele subordinar o interesse individual ao interesse do conjunto. O coletivo com o qual se identifica revela-se como somatório de interesses individuais (dos jovens rebeldes) embora semelhantes. Em essência, o jovem rebelde carrega o individualismo que a ideologia dominante lhe ensinou a preservar. Defende a liberdade individual que oculta a opressão coletiva. Exerce com competência a rebeldia permitida.

                                                                                                                     Setembro/82