Orações e locais sagrados


O Porto fala. Pela manhã, há dias em que ele resplandece um mar prateado envolvendo aqueles enormes guindastes azuis e os navios e os grupos de contêiner, um mar parecendo tecido em purpurina, tão iluminada a aparição do Porto quando a estrada sobe a lomba e depois desce o morro, descortinando aquela cena faiscante. Sinto-me homenageada, como uma resposta a minha oração: -bom dia, Zeferina... Só isso é a minha oração e ela me parece perfeita, plena. Na descida da lomba de entrada na cidade,  vejo aquele porto e agradeço àquela divindade fluido do passado, passando por dentro de mim, minhas moléculas, meus destinos possíveis, com a emoção de um encontro verdadeiro com o Sagrado. Não é uma visão, não é um misticismo inventado. Acontece se você se permitir ligar o mundo que está fora, com a memória acumulada de seu corpo, e deixar as coisas, os espaços falarem, expandirem seus significados perante o seu olhar. Todos têm um passado e alguém em seu passado que carrega a bandeira do herói, da guerreira, da sabedoria. Mesmo os que não encontram nenhum mito em sua própria genealogia, carregam memórias de pessoas como Bob Marley e Frida Khalo,  por exemplo, dentro das suas identidades. Zumbi e Dandara foram guerreiros negros e são percebidos como lendas e sentidos como mitos pelos corações dos negros brasileiros que zelam pela memória de seus ancestrais. Mas esses pequenos deuses reais - pois estão em verdade sustentando nossos entendimentos, protegendo-nos de medos criados contra nós, alimentando nossas coragens cotidianas - não podem receber preces, são deuses proibidos pela tradição predominante, ao menos no mundo ocidental, certamente nos países cobertos pelos mantos dos grandes monoteísmos, no mundo inteiro. Não creio que a Índia, não obstante suas dezenas de milhares de divindades tenha preservado a tradição primeva de adoração e prece dedicada aos ancestrais, em cada família.
Zeferina foi uma descoberta. Entendi ter algo germinando em mim desde o momento em que me vi só, infeliz e marginalizada. Quando salvei-me da exclusão por meio do exílio em minha ilha, pronunciei aquele nome pela primeira vez e ele saiu de minha boca, voz, garganta, como o perfume noturno das pequenas madressilvas da cerca viva de meu jardim. Desde então essas preces e esses locais sagrados se constroem em mim, em práticas diárias, livres, frágeis, delicadas, sinceras, comovidas. Com o tempo, fui sentindo necessidade de reverenciar Zeferina, na rótula de entrada da rodovia, quando o vale cercado de montanhas se oferece aos meus olhos como se fosse um sorriso transcendente do mundo, no porto, na cidade portuária onde trabalho, aquele porto com seus enormes guindastes azuis e no horizonte que se vê do alto da entrada do morro, quando se chega no centro da cidade, um gigantesco horizonte, abraçados o mar e o céu  numa linha infinita e pacificada. No vale, agradeço pela proteção aos meus amigos, amigas, filho, marido, pais,  irmãos, parentes e outras pessoas que estejam ocupando meus pensamentos; no porto, peço conselhos e ajuda para entender e suportar as dificuldades do mundo do trabalho e no horizonte tento dizer alguma verdade ainda não dita por mim, aos meus próprios ouvidos: um desejo, uma intenção.

 Esses dias, dirigindo meu carro pela estrada, indo para o trabalho, me perguntei: O que é uma prece, uma oração?
Tanto tementes a Deus e crentes de todos os matizes, quanto ateus e agnósticos, todos reverenciam um lugar do Sagrado, aquilo com força simbólica de dar a vida um sentido, significados que façam tudo ser válido.
Todos esperam: seja uma organização social que adora shoppings e um mar de carros com novos desenhos de lataria; seja quem crê em um enorme e suntuoso hospital, com emergências e unidades de tratamento intensivo de última geração; seja quem se socorre do que era muito antigamente a força divina, por meio de magias, rezas de cura, chás e unguentos. Podemos ver isso tudo junto, pensado como justo e sendo uma coisa de um tipo para a elite e outra coisa de outro tipo para os subalternos, juntando-se esses arranjos todos em um universo de direitos e deveres para todos e para cada um, aceito por todos, pelo que usa chás e unguentos para diabetes, úlceras, pelo que faz tomografias anuais, todos esperando as doenças sem cura, esquecidos desse fim, quietos, apaziguados, ou assustados, chorando por dentro, silenciosamente em pânico.
Todos tem fé em algum conjunto de acontecimentos que julgam representar o sentido eterno do Universo ou o destino que esse Universo reserva à humanidade.
Quando se aproximam da morte, a sua própria ou a de uma pessoa amada, rezam de verdade, tentando encontrar uma abertura para um Deus talvez bravo, racional e onipresente; um poder transcendente, hiperinteligente, masculino, soberano. Mesmo os ateus rezam fervorosamente, a seu modo e sem saberem que estão a rezar, para que um grande cientista descubra, em uma semana, uma vacina ou pílula milagrosa que cure a doença que o estará carregando para fora do mundo ateu, quando recebem a notícia de um estado terminal.  Os que rezam por desespero jogam frases gastas, há muito memorizadas, ao vento. O mesmo vento leva seus desesperos mais adiante, quando oram de verdade. E isso tudo é fé e oração, pois a oração é sempre válida, a crença não obedece a um tribunal humano, seja ele científico ou teológico.
Quando estão felizes e saudáveis, os humanos do século XXI costumam fazer rituais de celebração: beber líquidos intoxicantes e inebriantes, dançar em grandes ou pequenos grupos, comprar objetos novos, adereços, máquinas, tecidos feitos com derivados do petróleo, metais e pedras transformados em enfeites valiosos, cobiçados e usados com algum tipo de proteção armada por parte dos que governam: os diamantes e rubis incrustados em ouro e platina, só usados pelos poucos que tem poder para exibir suas jóias em revistas baratas e vendidas em bancas de jornais para todos os que não podem usá-las verem a imagem dos escolhidos pelo destino que até hoje a humanidade vivenciou.
Tudo isso é crença, embora os cientistas profissionais e autorizados pelos governos não permitam que se chame isso de religião. Os que governam as linguagens conduzem todos os povos a chamar uma parte do mundo de "Ciência e Tecnologia" e outra parte de "Religião e Metafísica", ou seja, resumindo: quem conhece a linguagem "patrícia" ( em Roma antiga eram patrícios os que descendiam de adeptos do mesmo culto da elite, os que não conheciam as tradições sagradas eram plebeus, escravos e estrangeiros) da "Ciência e Tecnologia", quem domina esse conhecimento pode e deve fazer rituais com bebidas, alucinógenos, músicas tribais, metais e pedras desenhadas e vendidas em templos chamados de "shoppings", máquinas complexas e indecifráveis, sapatos com saltos finos e enormes para as mulheres se equilibrarem em cima deles e destruírem suas  colunas enquanto riem e debocham das gueixas do antigo oriente, com seus pés atados; televisões e geladeiras falantes e tecidos finos e raros derivados do petróleo, mas ninguém pode chamar isso de rituais. Até pode, mas a linguagem permitida, a linguagem oficial dos governos despreza e desautoriza quem diz que isso tudo não é mais razoável do que um ritual cristão, budista , islâmico ou xamânico.
Os que tem fé na racionalidade do moderno mundo humano quase nunca rezam as orações dos lugares que este mesmo mundo chama de templos, igrejas, lugares de religião; esses lugares são reservados para uma imensa maioria desabrigada pela "Tecnologia",  que não aprende as linguagens científicas e não pode comprar metais, pedras, máquinas complexas e indecifráveis, embora fique contente ao adquirir tecidos e máquinas simplificadas, com defeitos, mal feitas, bugigangas frágeis que eles mesmos fazem, os de um país para os de outro país, por um pedaço de pão.
Poucos, dentre os modernos e racionalistas, rezam; os que oram procuram templos ricos, suntuosos, ornamentados e construídos segundo uma determinada tradição, místicas igrejas medievais ou em estilo antigo, gótico, clássico romano ou mesmo moderníssimas igrejas planejadas por famosos arquitetos do século XX; fazem suas preces diante de altares exuberantes ou sóbrios e comandados por sacerdotes reconhecidos como representantes de um poderoso Deus de uma poderosa religião reconhecida pelos governos de todos os países; esses poucos não estudam teologia, ou os textos bíblicos com alguma dedicação e sistemática; deixam essa tarefa aos sacerdotes e às instituições de suas igrejas internacionais. Apenas repetem preces milenares já decoradas desde a primeira infância; orações que são escritas pelos governos em tribunais, em prédios públicos, em hospitais e repetidas pela grande mídia.
Eles já não sabem mais entender quando foi que começaram a agir dessa maneira; alguns até mesmo debocham das ideias de início e fim. A maioria, tanto crentes quanto ateus, tem a mais absoluta certeza de que não tem tempo. A esmagadora maioria crê ser a vida necessariamente assim.
Mas mesmo esses modernos e racionalistas incluídos, patrícios, quando se desesperam fazem suas preces; ainda que sejam desordenados e febris "pais nossos" inconclusos. Essas pequenas e fugidias preces também são válidas e eficazes porque todos os seres e as coisas do mundo são percebidas e entendidas no espaço do Sagrado.
                                                                     (versão três: como sempre, inconclusa, imprecisa. Os trabalhadores não têm direito a preparar bem seus escritos)