Querida Zeferina - carta 3.1 - cistite, o macho e os cobertores


                                       
                                          Querida táta,


                                     Estou com um roteiro já bem cheio de assuntos para falar contigo. Agora estou com cistite, toda dolorida e sensível, sentada perto da porta aberta do banheiro, pronta para sair correndo. Agora resolvi escrever essa carta aqui, saindo fora do roteiro um pouco, mais espontânea ainda, já que paro para correr ao banheiro e escrevo sentindo uma ardência pungente. Talvez assim fique mais claro o que digo por aqui nesse mundo todo ele embrulhado em autismos de novos tipos, contaminantes de suas linguagens, uma torre de babel como a da bíblia: ninguém se entende e todo mundo vocifera certezas absolutas.
                                    Agora penso que esta cistite representa bem uma parte importante do que preciso dizer aqui neste planeta esquizofrenizado, ao menos falar a alguns que podem me ouvir. Como poderia eu falar a elas e eles e ser entendida sem ter que fazer um tratado do tamanho do livro da Simone de Beauvoir? Estou lendo o Homo Deus, do Harari, já falei a você, Zeferina? Tanto quanto ao ler O Segundo Sexo da Simone, neste livrão do menino israelense famoso dá pra você sentir o que eles querem dizer já nas primeiras cinquenta folhas. O que eles têm em comum é uma forte erudição no conjunto temático que abordam. Eles são cada um uma espécie de “Google” sintético sobre os seus assuntos. Sabem tudo e mais um pouco. Mas o conteúdo do conjunto da obra de cada um acaba sendo mesmo uma frase simples, dita por qualquer humano sem estudo algum, todos os dias: “eu acho que tal coisa é assim e deveria ser assado”. O livro do Harari, por exemplo, defende que de dentro do conhecimento produzido pela espécie humana homo sapiens vai surgir uma nova espécie, ou mais de uma, e não necessariamente de um formato que pudesse ser chamado ainda de humano. O guri defende que estamos criando máquinas que até podem se tornar autônomas e se reproduzirem como uma espécie de organismo coletivo, e que esse tipo de acontecimento pode vir a dominar não só o planeta Terra, mas também todo um largo território do cosmos, do universo; esse que a gente imagina por fotos de satélites altamente potentes, mas nunca semelhantes ao olho humano diretamente posto em ação. Ele defende então que o ser humano pode estar em extinção, e isso a se realizar nos próximos cinquenta anos. Ou cem, no máximo. E o cara, esse menino, vende milhões de exemplares dos seus livros pelo mundo, esse nosso cheio de humanos destrambelhados. Fico imaginando que efeito o pensamento dele pode ter em quem o lê. (banheiro correndo). Também estou nos primeiros capítulos da Simone e já tenho a sensação de saber o que lá está escrito. Juro que vou ler todo o livro e respeitá-lo, mas agora estou pensando ser o trabalho doméstico um tema tratado pela companheira de Sartre como um padrão de acontecimentos secundários, em termos de valor, aos acontecimentos realizados no mundo público onde se faz a política, o saber da arte reconhecida como tal, com A maiúsculo, o saber do conhecimento acumulativo e histórico das engrenagens tecnológicas que geram a história humana desde o domínio do fogo e a invenção das armas de metal. Lembro que Marx também entendia o mundo da reprodução humana como um mundo natural e o mundo da produção de riquezas, máquinas e mercadorias como um mundo histórico. Tenho essa impressão porque a dama existencialista começa seu pensamento pela ideia de que o lugar do trabalho doméstico é um território inessencial, lugar de coisas, de nadas políticos.
                                          Passam pelo meu pensamento um milhão de ideias, passam correndo e eu não tenho tempo para trazê-las aqui, agora. Sempre se tem, nesse mundo que começou em Galileu e Copérnico e veio até os autodenominados “pós-doutores” brasileiros e super-phDs americanos e europeus, a necessidade de construir explicações enciclopédicas para qualquer ideia que queria salvar-se da margem das postagens domésticas no facebook. A ideia matriz do saber absoluto domina a espécie humana atual, sapiens sapiens, e é ela que comanda a espinha dorsal tanto do livro de Simone quanto do livro do Harari, um phD em história, que tende a afirmar serem os homo sapiens mais burros do que seu filho, o computador, e que poderão vir a morrer (como morreu o deus em Nietzsche) para dar lugar ao filho, o sujeito inorgânico: “Depois de quatro bilhões de anos perambulando no reino dos compostos orgânicos, a vida eclodirá na vastidão do reino inorgânico e assumirá formas que não podemos vislumbrar mesmo em nossos sonhos mais loucos. Afinal, esses sonhos ainda são produto da química orgânica” (na introdução do Homo Deus). Então é o mito originário de que o conhecimento acumulado em maior quantidade e mais apto a convencer coletividades inteiras, ou ser usado para a fabricação de instrumentos para dominar, pela força ou pela ilusão, essas mesmas coletividades, esse conhecimento é essencial, sendo inessencial ou coisa tudo o que não o compõe como fórmula, receita, química ou, como dizem os guris gerentes do nosso mundo autista, algoritmos. Tomei um remédio para dor e ele está começando a fazer efeito. A porta do banheiro já está fechada, agora. A máquina de lavar está produzindo cobertores limpos e eu os estendo no sol desafiador que invade e esquenta furiosamente o mundo lá fora.
                                     O trabalho doméstico não é esse tipo de conhecimento, ele não integra a mitologia do saber humano da espécie sapiens sapiens, a não ser naquilo que nele afirma  mercadorias a somarem à mitologia milenar do domus como um lugar materno-infantil. O saber materno doméstico não é mensurável. Claro, inúmeras coisas dentro da casa de cada um de nós –as antigas produtoras titulares do trabalho doméstico e os atuais casais que o dividem mais ou menos igualitariamente- são objetos fabricados. Algumas de alta tecnologia, como as máquinas de lavar, sagradas para qualquer tipo de feminismo. Mas o fazer cotidiano da limpeza da casa, dos panos, das peças, das louças, dos móveis, o fazer cotidiano do preparo de comida, mesmo quando a partida se dá com pré-cozidos industriais, é um conhecimento não pensado na academia, a universidade, não pensado nos locais onde todos se esforçam por produzir discursos enciclopédicos, políticos, filosóficos, historiográficos. Esse fazer cotidiano só é pensado no mundo intelectual quando se trata de metamorfoseá-lo em mercadoria vendável. Aí ele passa a ser culinária étnica e ou sofisticada, técnicas em geral associadas ou a produtos ou a ideias de sedução ou redução de esforço. E é aí que começam a aparecer os homens na produção desse trabalho. Mas sempre fica aquele lugar natural, um lugar onde há um conhecimento contido ali, ágrafo, iletrado, sem cálculos de produtividade, valor ou sabedoria. Passam muitos pensamentos por mim, agora, e não há como enfeixá-los em uma ordem algorítmica. Talvez meu pensamento seja um pouco referenciado nessa epistemologia do doméstico e talvez alguém deva tentar explicar como esse tipo de pensamento se dá. Ou talvez o segredo do agir no lar deva ficar como está e a hipertrofia desse mundo humano das linguagens enciclopédicas deva ser repensada.
                                       Estou quase indo correndo fazer mais um xixi ardido. Como uma criança trançando as pernas e evitando o banheiro para continuar o brinquedo, falo agora o que me parece crucial no momento (xixi primeiro, já volto). O macho da espécie humana não deixou de fazer o trabalho doméstico por arrogância, ou por uma necessidade violenta de uma natureza própria a sua condição potencialmente viril. Talvez essa ideia de que na virilidade esteja a produção violenta seja um preconceito. Acho possível afirmar que o macho homem era o único ser humano não obrigatoriamente implicado naquilo que era, nas cavernas, o domus das relações de reprodução humanas: mulher grávida, bebês, doentes e velhos. Ele era o único ser humano que poderia proteger esse agrupamento complexo e doméstico de reprodução humana, o único que poderia pegar algum instrumento tornado arma e proteger a coletividade de algum ataque de outro animal ou de outros grupos étnicos ou mesmo outros tipos de humanos. Isso porque ele nunca teve a capacidade de engravidar. Então, durante quase todos os setenta milhões de anos da sua existência (exceto os últimos séculos, a partir da invenção das máquinas domésticas e as químicas de controle da reprodução, como os hormônios e as barreiras mecânicas qualificadas, como os modernos dispositivos intra-uterinos), o macho da espécie humana foi obrigado a desenvolver mitologias que o capacitassem a superar o medo do mundo exterior, ameaçador, inóspito, e que permitissem a ele garantir a paz doméstica, na medida do seu alcance. É preciso entender isso, Zeferina. Não é? É preciso entender a historicidade dessa divisão entre o doméstico e o político. E, o mais importante que desejo dizer agora, a hipótese de estarmos vivendo o fim dessa divisão tal como ela se deu desde dezenas de milhões de anos não deveria nos autorizar a descartar o conjunto da memória humana armazenada na condição de macho ou de fêmea da espécie sapiens sapiens. Sim, as mulheres desejam direitos e liberdades, desejam que os homens cuidem dos filhos e das casas também, desejam ser profissionais respeitadas, desejam  um sexo não violento, mas não sei se desejariam que sumissem inúmeros valores que distinguem o macho humano da fêmea. Se precisamos sair de formatos construídos pela tradição milenar, formatos do ser homem e do ser mulher, por que exatamente precisamos fazer isso ao ritmo alucinado da produção de novíssima tecnologia em medicina, da produção de robôs, de nanotecnologia, de bioquímica de última geração? Por que deveríamos nos submeter ao pensamento de que o conhecimento enciclopédico, esse produzido no mundo público, político, predominantemente dos homens, deve determinar a velocidade dos acontecimentos humanos, nesse século vinte e um?
                                              Mais um cobertor está quase pronto para ir ao sol. Estou comendo rodelas de abacaxi. Ora, minha querida Zê, você não acha que há uma lógica muito simples, delicada e modesta, doméstica, a nos dizer, a nós, mulheres, que se somos a espécie humana sapiens sapiens e se algo nos ameaça a existência somos nós mesmos que devemos nos proteger? E não podemos fazer isso com calma, pensando bem, aproveitando as opiniões e sensações de bilhões de humanos? Não podemos pensar isso mais lentamente, com a naturalidade com a qual fazemos os trabalhos domésticos que são bem feitos?  Por que deveríamos apressar-nos e dizer que o macho humano não presta, que a fêmea humana deve ser superada, que toda e qualquer lógica milenar humana perdeu o sentido?
                                                O melhor trabalho doméstico humano é manual, artesanal, lento e calmo. Os cobertores estão perfumados, o sol inunda o verde em volta da minha casa.


versão dois. foto: arquivo pessoal

Querida Zeferina - carta 11.1 - a lei da despedida injusta, a estabilidade e o direito à posse do corpo

                            

                              Querida Zê, bom dia!


                            Hoje já passa de um ano do começo desta história que agora assusta a todos, no Brasil. Era só a derrubada da primeira mulher presidente do país, pensavam muitos, sendo que até os que foram derrubados desejavam que os cristais se colassem rapidamente. Só que não. Então estamos aqui tentando entender como os escravos conseguiram se defender no Brasil colônia de Portugal e, depois, no império até a lei da abolição. Em 1995, eu me apaixonei pela lei número 62 de 1935, a chamada, na época, lei da despedida injusta, porque, além de proteger o empregado que tivesse mais de um ano trabalhado na empresa ela continha um surpreendente art. 10, escrito assim: “Os empregados que ainda não gozarem da estabilidade que as leis sobre institutos de aposentadorias e pensões têm criado, desde que contem 10 anos de serviço efetivo no mesmo estabelecimento, nos termos desta Lei, só poderão ser demitidos por motivos devidamente comprovados de falta grave, desobediência, indisciplina ou causa de força maior, nos termos do art. 5º”. Esse artigo cinco era mesmo cruel, porque nele havia dez motivos para despedida justa que serviriam para qualquer tipo de atitude e conflito entre o empregado e o dono da empresa. Mas o artigo dez apresentava uma estabilidade para quem tivesse mais de dez anos no mesmo local de trabalho e foi ele que provocou um furioso debate nacional sobre direitos dos trabalhadores brasileiros, além do forte dissídio nacional sobre todo o conjunto da lei. E minha simpatia por esse momento da história do Brasil vinha também do fato de que esse ano, 1935, foi também o ano da Intentona Comunista, quando a organização chamada Aliança Nacional Libertadora ergueu uma insurreição contra Getúlio Vargas.                                 Trinta foi uma década surpreendentemente rica, politicamente, no Brasil, Zeferina, e foi nela que minha mãe nasceu. Essa minha paixão acabou motivando um estudo sobre o que poderíamos considerar como sendo uma estabilidade no trabalho, já que os escravos não tinham direito de ir embora e essa lei tentava regular o direito de ficar, já que desde a lei áurea – a abolição da escravatura – o direito de ir embora era imediato, ao menos em lei. Eu refletia sobre a ideia de que estabilidade não é só poder ficar, de que estar em segurança em uma situação precisaria agregar a possibilidade de sair dela. Essa ideia de segurança e liberdade o feminismo havia me presenteado, e não apenas aquele feminismo europeu e americano da década de sessenta, mas eu era herdeira da minha vó, tua neta. Eu era tua herdeira, Zê.  Lá, quando o Lula e o PT pensavam estratégias para chegar ao poder no Brasil, em 1996, eu escrevia e citava recortes de Jacob Gorender, como este: “A fim de obter a resignação do escravo, todas as sociedades escravistas, antigas e modernas, se orientaram no sentido de elaborar uma legislação restritiva do arbítrio dos senhores e protetora dos escravos sob alguns aspectos elementares. Sem nunca colocar em questão a legalidade da própria escravidão como tal. (...) Conforme tem sido dito, a grande maioria dos escravos não participou de levantes, não cometeu atentados, nem fugiu. À exceção da geração que chegou à Abolição, a grande maioria viveu a escravidão até a morte. (...) O código de conduta criava uma espécie de opinião pública entre os senhores, que censurava tanto os sádicos como os havidos por frouxos. (...) a moderação no tratamento dos escravos era a ideologia oficial do Estado. (...) [os escravos] Não escapavam ilesos às degradações impostas por este regime. Enfrentavam-nas com sofrimento, humor, astúcia e também egoísmo perverso. Escravos agrediam escravos em disputas por mulher, para entregá-los a capitães-do-mato ou para roubá-los. Mulheres escravas faziam da sedução sexual de homens livres o caminho para o bem estar e a liberdade. (...) Nada há para surpreender que escravos tenham assimilado os valores da sociedade escravista e pensassem atingir a liberdade para se tornarem eles próprios senhores de escravos. Não falta, por isso, o registro de libertos solidários com a instituição servil. Tampouco deve surpreender que, do meio dos escravos e libertos, saíssem indivíduos cooptados para a tarefa de repressão aos cativos”. Isso Gorender escreveu em 1990, quando o Lula já havia perdido as eleições para o Fernando Collor de Mello.
                           Eu não sei agora, nesse novo direito que o Moro representa, esse do “domínio do fato”, mas desde 1969 podemos ler  juristas dizendo que o Direito do Trabalho (pensando em um exemplo de universo jurídico) é fundado pela relação jurídica nomeada de contrato de trabalho, ensejada pelo “trabalho produtivo por conta alheia, livremente prestado”. Isso é de Manuel Alonso Olea, 1969. Assim o contratante e o contratado podem, em caso de conflito, ir embora ou deixar ir embora mediante algum tipo de ritual de interrupção, uma briga, uma indenização, um aviso, um último salário.  “É por respeito a este paradigma do Direito moderno que, necessariamente, o escravo descrito por Jacob Gorender tem que ser destituído de qualquer capacidade de negociação dentro do sistema escravista e sua condição de pessoa tem que estar inscrita na fuga ou no crime. O que Kátia Mattoso afirma, em 1982 – que o escravo desenvolve com seu senhor ‘uma espécie de contrato tácito e sólido’ –, só pode ser aceito pela racionalidade jurídica moderna se este contrato a que Kátia se refere for considerado um contrato não jurídico. Isso eu refletia em 1995. Ou seja, a palavra contrato, usada por Kátia, não é aceita – por esse direito moderno que começa a perder sua eficácia, no Brasil de 2017 – como referente a uma ação entre dois sujeitos em exercício de suas vontades se eles são um o dono e o outro um escravo. Assim, “o direito do trabalho só pode ser falado e pensado desde a ideia de uma legislação que começa a partir de 1888, com a abolição da escravatura no Brasil”. Isso é texto meu, em minha dissertação de mestrado, de 1997. Esse direito moderno inaugurado no Brasil a partir de 1888 seria um direito que só “veria” o fato se ele fosse legalizado como normalidade de direitos legislados ou crime. Então, se o escravo não era pessoa, legalmente, não podia contratar e suas negociações com seu dono não podiam ser vistas pelo mundo jurídico, pelo direito. As negociações de um escravo não existem para o direito moderno do trabalho, embora o direito penal reconhecesse, no Brasil império, quando o escravo era autor de crime. E tanto é verdade isso que a questão da escravidão negra tornou-se uma memória a ser banida de tal modo que ela ressurge, nos governos do Partido dos Trabalhadores, entre 2003 e 2015, mas ressurge como uma ideia de preconceitos a serem banidos por convencimento e punição, não como tecidos conceituais alicerçados em memórias e práticas coletivas de uma espécie de “direito costumeiro na estrutura social”.
                              Um amigo das antigas recentemente postou no facebook: "Diante dos alarmantes boatos sobre o restabelecimento da escravidão no Brasil, lembro que tal risco não existe: o Governo Temer sabe que a escravidão é modalidade de prestação de serviços arcaica e muito dispendiosa. O empreendedor ficaria onerado em seus custos fixos, engessado com a paternalista obrigação de, indefinidamente, alimentar, vestir e abrigar seus colaboradores, e, pior, retira a liberdade deles escolherem, no mercado, a comida, a roupa e a moradia mais adequadas aos seus interesses e necessidades. Fora o irracional custo da manutenção de um estoque de escravos ociosos... Tirem, pois, seus cavalinhos da chuva. [A escravidão] não vem”! E eu respondi: Esse tecido conceitual sobre a escravidão entende que só é escravo quem é individualmente propriedade privada de quem tem poder sobre o corpo aprisionado. Daí a lei da abolição, a da princesa Isabel, afirmar um direito moderno que se positiva a partir das tradições ou romano-germânica ou inglesa, sempre um direito de leis escritas em constituições e códigos, ou em casos tipos definidos em jurisprudências de tribunais superiores. Então teríamos um mundo real fluindo a partir de dois movimentos na sociabilidade: o movimento que acontece a partir da aplicação da lei e o movimento que acontece a partir do descumprimento dela. Daí o direito penal, as punições, presídios, multas. E a escravidão se tornando um acontecimento nas bordas não atingidas pelo dossel (cobertura) da lei. Bem, estamos diante de uma nova epistemologia, tanto para o Direito quanto para as outras ciências da vida e das coisas. A escravidão, nesse caso, poderá ser pensada ao modo como Simone de Beauvoir analisou o lugar da mulher no mundo patriarcal, quando ela diz que é um lugar de "coisa", um outro inessencial. O "homem inútil" do israelense historiador Harari, autor do livro Homo Deus, tornando-se a casta dos que não servem para nada, a não ser para fazer os piores trabalhos e receber em troca a pior remuneração: comida ruim e contaminada e um canto imundo pra dormir em meio à doença e à sujeira. Neste caso, o aprisionamento seria da casta inteira e dentro de um apartheid geopolítico. Então, escravo não seria, neste caso, nem o escravo moderno das plantações e minas brasileiras do império, nem o escravo antigo, ou servo, das conquistas de guerras entre reinos, o escravo como estrangeiro. Escravo seria quem não decide sobre onde ir e como tratar seu próprio corpo. É uma questão de posse sobre o próprio corpo”.

                          Precisamos ler Simone de Beauvoir, agora sob a luz de uma nova civilização que emerge do lixo produzido na modernidade. Talvez a ruptura no campo das identidades, proposta pela companheira do Sartre fique contida em um modelo de pensamento que vê no homem branco, adulto e europeu um território existencial de estabilidade física e emocional razoavelmente consistente: o ser humano que trabalha livre e faz política, decide sobre sexo e seu próprio corpo, um humano essencial. A nova civilização está atada, ainda, em cordões umbilicais, mas já grita e respira ideias que questionam o protagonismo de uma condição essencial humana no planeta Terra. Ora, sem essa construção paradigmática, a de que os humanos devem garantir a sua estabilidade no planeta que habitam, o controle sobre a totalidade dos corpos humanos retornariam às mãos de um ou mais deuses. Controlados os direitos humanos por deuses, nada do que foi posto pelo direito moderno ficaria garantido.



versão um. foto: arquivo pessoal, Gentil Bandeira de Souza, marido da neta da Zeferina, soldado do exército brasileiro na década de 1930.

Querida Zeferina - carta 10.1 - O fim do direito moderno


                                        Querida Zê,

                             Agora, aquela contra-intuição do feminismo sem nome e sem fala. Este feminismo comum e milenar tão diferente das falas oficiais das mulheres famosas, este feminismo da fofoca sempre combatida e que providencia solidariedades entre sofredoras, mas de modo algum mergulha nessa tal sororidade obrigatória e disciplinadora do comportamento das mulheres obedientes às determinações das grandes mídias, das grandes palavras de ordem. Agora, esta contra-intuição sempre subversiva poderia integrar uma nova epistemologia capaz de construir um novo direito das gentes comuns, um direito natural defensivo capaz de defender todos os frágeis e humilhados pelos mais rápidos, mais ágeis e mais mandantes. Mas isso precisaria ser muito bem pensado e explicado, os conceitos descritos em movimentos complexos para que se pudesse identificar até mesmo aquela rapidez e agilidade da mulher gueixa que manda em outros como uma representação de seus tutores, da nobreza a quem serve. Seria preciso descrever com acurada precisão quem afinal são as “gentes comuns” para finalmente conseguir erguer um direito que pudesse homenagear o Lula e a Dilma, ao menos em suas trajetórias de luta democrática, em oposição ao direito do juiz Moro, mesmo ao considerar os fracassos evidentes daqueles dois, justamente talvez sabendo perdoa-los naquilo que os presidentes representantes da esquerda brasileira depois da ditadura militar manifestaram como impotência.
                           Agora, há pouco tempo, estou vivendo num mundo que assiste ao seu próprio fim e de um modo incrivelmente acelerado. Nós mesmos, os mais velhos, já participando, desajeitados, de uma organização de lógicas do viver onde cada vez menos pessoas reclamam do tanto que tudo isso se parece com um quadro de Hieronymus Bosch, onde o sofrimento indescritível fica no quadro ao lado do piquenique da aldeia sonâmbula onde ninguém olha para ninguém. Há um problema de pânico ou de êxtase generalizados produtores de solidão como pandemia e perda de entendimentos comuns dentro de uma mesma linguagem. Há um dessoramento da linguagem comum, uma anemia, uma perda de importância dos sentidos e, portanto, uma ausência progressiva do pertencimento. Estamos nos tornando cada qual uma singularidade à deriva, medievais, enclausurados e coisificados pelas estatísticas. Vejo uma televisão tanque de guerra arremessando mísseis, mostrando polícias por todos os lados e gente apanhando, sendo presa, baleada, perseguida, “apreendida” como “elemento”, como os escravos descritos e desenhados nos troncos, nos livros escolares dos tempos em que era tão romântico ler livros. Agora, vejo essa aura de reverência ao grande romance perder sua força, a evidência de que chegar a uma visibilidade de escrita é um poder que poucos têm e não sem pagar algum preço, não sem manifestar desde o começo do desejo de escrever a adesão a um grupo político que consiga ter influência em mídias grandes e médias, influência em esferas de gerenciamento de instituições de produção cultural. Em resumo, tudo virou mercadoria de consumo, avatares, algoritmos voando em um tecido de sociabilidade explodida em fragmentos. Tudo virou discurso de sustentação de algum tipo de aristocracia. E a existência de aristocracias de esquerda, elegantes núcleos de preservação do socialismo derrotado, ainda se mantém legalizada ao lado da proliferação de direitas de novos e arcaicos tipos. Cresce um discreto medo de que venha a surgir uma nova escravidão, um inaugural sistema de castas, um inevitável apartheid do contingente humano que jovens teóricos chamam, tranquilamente, de o “homem inútil”. Isso são ingredientes dessa nova barbárie do final do século vinte e início do vinte e um e é nesse cenário de fragmentação de uma hegemonia cultural iniciada no renascimento europeu, lá por volta de mil e trezentos depois de Jesus Cristo, que a figura do livro de sobrevivência resgata antigas cenas de alquimistas medievais. Escrevo como refugiada, Zeferina, desejando atar vínculos de esperanças entre os que ainda não enlouqueceram neste mundo meu e os que conseguirem passar por esse fim de mundo no qual vivemos. Como se jogasse garrafas lacradas ao mar, o mar virtual das redes sociais, desejando que alguém as encontre um dia, leia e pense: então era assim que eles sofriam e que tentavam viver e inventar soluções para seus problemas.
                                Mas se nesse mundo terminal, temos o direito do domínio do fato, tal como lemos nas redes sociais no Brasil, que é o direito do juiz Moro, da polícia federal, dos grampos, das escutas e dos escândalos nas televisões, qual seria o direito do Lula? Sob que direito o Lula estaria preservado como principal líder de multidões no Brasil? Esse direito do juiz Moro seria algo assim: o fato aparece como um desenho em um quebra-cabeça de indícios e quando o juiz vê o fato, um domínio se estabeleceu, mesmo que faltem peças materiais objetivas que provem uma culpa. Então seria a presença de um fato visível como ideia a partir de fragmentos. O fato que eu conseguia ver, Zeferina, é o de que o PT era o único partido que precisava ser cassado de sua capacidade de influência no cenário político. Os demais acusados, de outros partidos políticos, nos processos ligados à investigação chamada de lavajato, não levavam junto seus grupos políticos, seus partidos, para o lugar de punição.  Agora, surgiu um fato novo, com novas denúncias e grampos acusando o senador Aécio Neves e o presidente Temer, e ele carrega a sensação de que todo o conjunto das instituições políticas brasileiras está a naufragar. Talvez porque outro fato domine a cena, e ele seria a necessidade de cassar de seu lugar de poder o conjunto normativo erguido na modernidade republicana, no Brasil e no mundo. Finalmente podemos concluir - pelo domínio do fato - que o Partido dos Trabalhadores liderava durante quatro mandatos presidenciais, no governo, a proteção à CLT, as ideias de ênfase do princípio jurídico da proteção do hipossuficiente, a Constituição dos direitos humanos individuais iguais para todos. Então o domínio desse novo direito surge por uma configuração de fatos novos dominantes no mundo atual, todo ele. Todos os grandes acontecimentos na história humana sempre estiveram ligados a invenções tecnológicas: o domínio do fogo, do metal, a invenção da escrita, a bússola, as caravelas, as máquinas a vapor, a eletricidade, a mecânica, o petróleo. Então o fato novo é a mais recente revolução da informática carregando consigo novas tecnologias em diferentes áreas e precisando deixar em aberto até mesmo as possibilidades de vários tipos novos de escravidão, a começar pelo trabalho obrigatório de apenados nos grandes presídios de predomínio de populações negras, pobres e abandonadas desde as gerações de seus pais e avós. Outras e novas escravidões como a de jovens operadores de telemarketing, de costureiras domésticas, de cortadores de pedaços de carne de frango ou de gado, todos presos em sistemas cruéis de trabalho forçado e sem direito a contrato protegido por leis de domínio público.
                                       O PT e seus aliados próximos ou mais distantes, ao defenderem as normas construídas no século vinte, estavam travando a liberdade dos gestores desse novo mundo de novas lógicas. E fizeram isso defendendo os direitos escritos modernos, os direitos das normas e decisões jurídicas escritas, dos códigos, das constituições, todos eles erguidos a partir dos acontecimentos inaugurados pelas revoluções burguesas do século XVIII. Contra essa tradição, nasce o direito do domínio do fato, sendo que os fatos aparecem em uma sucessão de problemas inéditos, tecnologias novas e populações humanas envolvidas em tragédias sem precedentes, como a ruptura da barragem do depósito de lixo de mineradoras, em 2015, e a contaminação dos rios a partir da cidade brasileira de Mariana, em Minas Gerais, Brasil. Parece então, Zeferina, que a esquerda brasileira defendia um capitalismo que está morrendo, se decompondo, enquanto os seguidores, aliados e admiradores do juiz Moro defendem  uma profusão de grandes novidades. Isso do julgamento do Lula nas telas das televisões e nas redes sociais, a partir de seu depoimento perante o juiz Sérgio Moro, esteve parecendo um tipo de assalto revolucionário ao poder, uma espécie de “período de terror” acionado para prender um conjunto de inimigos deste novo poder que irrompe e silenciar uma determinada versão, mais antiga, dos fatos. Agora, entramos em uma nova fase, na qual parece que tudo desaba, não mais apenas o Lula e seu partido, agora toda a política parece uma cena de filme noir de mafiosos americanos da década de trinta do século vinte. Parece então que isso vai se impor, aos poucos, aos saltos, lenta ou repentinamente e teremos o início de um novo mundo jurídico. Mas nada indica que nesse novo mundo teremos apenas um modelo de pensamento, teoria, sobre o direito de todos e de cada um, direitos dos humanos, dos seres vivos e das coisas tocadas por eles.
                       Penso, Zeferina, em um direito natural defensivo, uma produção de entendimentos sobre direitos a se realizar a partir das memórias de longa duração que se mantiverem dentro das comunidades humanas, dentro dos cérebros de muitos dos seus membros que passarão essas memórias de geração em geração. Chamo de natural esse direito porque ele brotará, penso eu, de ideias irrefutáveis e muito mais consolidadas do que esses fatos voláteis das lógicas camaleônicas do mundo atual. Ideias tais como bem viver em comunidade, felicidade individual, liberdade individual e de grupos, saúde dos corpos e das mentes, são ideias que movimentaram todos os tempos humanos, todas as histórias vividas pela humanidade. Natural no sentido do que é próprio de um ser, daquilo que poderia vir com ele enquanto ele nasce e cresce, se não for humilhado. Chamo de defensivo porque, pela primeira vez na história da humanidade, esse direito tende a aparecer não como uma potência que impõe uma novidade, um desejo, uma invenção, não mais como um conjunto de ideias utópicas ou inscritas em um campo filosófico revolucionário de novos atores sociais, mas como um conjunto de acontecimentos movidos por urgências imediatas de sobrevivência da espécie humana sapiens. É um direito natural defensivo porque nós estamos ameaçados de extinção, Zeferina. Então esse ser natural desse direito seria um conteúdo a predominar na história desta humanidade ameaçada e, portanto, seria um direito historicista, a encontrar um domínio de uma história humana, uma consciência coletiva  sobre direitos de todos e de cada um.
                               Penso sobre esse direito das gentes comuns desde 1994, quando comecei a estudar e escrever sobre histórias da Justiça e do Direito do Trabalho no Brasil. Lá, eu estudava sobre as histórias do escravismo no país, sobre as perversidades nas Casas Grandes & Senzalas, sobre os hibridismos entre violência e confraternização. Estudava sobre a lei da despedida injusta de 1935. Agora, estou voltando àqueles escritos e pensando sobre um novo direito para opor ao direito inaugural do Moro, para superar o direito moderno que a esquerda insiste em proteger e para defender nosso direito ao próprio corpo. Neste momento histórico, não mais as “mulheres inessenciais” descritas pela Simone de Beauvoir, agora os “homens inúteis” falados por jovens autores, como o Yuval Noah Harari. Agora, os homens terão que aprender a exercer uma contra-intuição, como as mulheres diferenciadamente audaciosas sempre fizeram desde o surgimento do primeiro domínio patriarcal. Agora, quando a mulher começava a deixar de ser coisa para os homens, começamos a ver toda a humanidade mergulhar em um domínio de fatos que conduzem os seres vivos a mais degenerada coisificação. Agora.




Imagem da web - Ulisses Guimarães, presidente da assembléia nacional constituinte no Brasil, em 1987. Em 1988 a nova Constituição foi promulgada. A segunda versão da carta 10.1 foi publicada com texto modificado dados os novos escândalos políticos, modificado o título e a imagem para tentar fazer passar a publicação anterior vetada pela gerência do facebook na fanpage do liberta master. Depois de duas comunicações aos gerentes do facebook, a segunda manifestando um grande descontentamento, a página foi liberada novamente para divulgação após quinze dias sob censura.

Querida Zeferina - carta 10.1 - O direito moderno, o domínio do fato e o direito natural defensivo

                               

                             Querida Zê,

                             Agora, aquela contra-intuição do feminismo sem nome e sem fala. Este feminismo comum e milenar tão diferente das falas oficiais das mulheres famosas, este feminismo da fofoca sempre combatida e que providencia solidariedades entre sofredoras, mas de modo algum mergulha nessa tal sororidade obrigatória e disciplinadora do comportamento das mulheres obedientes às determinações das grandes mídias, das grandes palavras de ordem. Agora, esta contra-intuição sempre subversiva poderia integrar uma nova epistemologia capaz de construir um novo direito das gentes comuns, um direito natural defensivo capaz de defender todos os frágeis e humilhados pelos mais rápidos, mais ágeis e mais mandantes. Mas isso precisaria ser muito bem pensado e explicado, os conceitos descritos em movimentos complexos para que se pudesse identificar até mesmo aquela rapidez e agilidade da mulher gueixa que manda em outros como uma representação de seus tutores, da nobreza a quem serve. Seria preciso descrever com acurada precisão quem afinal são as “gentes comuns” para finalmente conseguir erguer um direito que pudesse homenagear o Lula e a Dilma, em oposição ao direito do juiz Moro, mesmo ao considerar os fracassos evidentes deles dois, justamente sabendo perdoa-los.
                           Agora, há pouco tempo, estou vivendo num mundo que assiste ao seu próprio fim e de um modo incrivelmente acelerado. Nós mesmos, os mais velhos, já participando, desajeitados, de uma organização de lógicas do viver onde cada vez menos pessoas reclamam do tanto que tudo isso se parece com um quadro de Hieronymus Bosch, onde o sofrimento indescritível fica no quadro ao lado do piquenique da aldeia sonâmbula onde ninguém olha para ninguém. Há um problema de pânico ou de êxtase generalizados produtores de solidão como pandemia e perda de entendimentos comuns dentro de uma mesma linguagem. Há um dessoramento da linguagem comum, uma anemia, uma perda de importância dos sentidos e, portanto, uma ausência progressiva do pertencimento. Estamos nos tornando cada qual uma singularidade à deriva, medievais, enclausurados e coisificados pelas estatísticas. Vejo uma televisão tanque de guerra arremessando mísseis, mostrando polícias por todos os lados e gente apanhando, sendo presa, baleada, perseguida, “apreendida” como “elemento”, como os escravos descritos e desenhados nos troncos, nos livros escolares dos tempos em que era tão romântico ler livros. Agora, vejo essa aura de reverência ao grande romance perder sua força, a evidência de que chegar a uma visibilidade de escrita é um poder que poucos têm e não sem pagar algum preço, não sem manifestar desde o começo do desejo de escrever a adesão a um grupo político que consiga ter influência em mídias grandes e médias, influência em esferas de gerenciamento de instituições de produção cultural. Em resumo, tudo virou mercadoria de consumo, avatares, algoritmos voando em um tecido de sociabilidade explodida em fragmentos. Tudo virou discurso de sustentação de algum tipo de aristocracia. E a existência de aristocracias de esquerda, elegantes núcleos de preservação do socialismo derrotado, ainda se mantém legalizada ao lado da proliferação de direitas de novos e arcaicos tipos. Cresce um discreto medo de que venha a surgir uma nova escravidão, um inaugural sistema de castas, um inevitável apartheid do contingente humano que jovens teóricos chamam, tranquilamente, de o “homem inútil”. Isso são ingredientes dessa nova barbárie do final do século vinte e início do vinte e um e é nesse cenário de fragmentação de uma hegemonia cultural iniciada no renascimento europeu, lá por volta de mil e trezentos depois de Jesus Cristo, que a figura do livro de sobrevivência resgata antigas cenas de alquimistas medievais. Escrevo como refugiada, Zeferina, desejando atar vínculos de esperanças entre os que ainda não enlouqueceram neste mundo meu e os que conseguirem passar por esse fim de mundo no qual vivemos. Como se jogasse garrafas lacradas ao mar, o mar virtual das redes sociais, desejando que alguém as encontre um dia, leia e pense: então era assim que eles sofriam e que tentavam viver e inventar soluções para seus problemas.
                                Mas se nesse mundo terminal, temos o direito do domínio do fato, tal como lemos nas redes sociais no Brasil, que é o direito do juiz Moro, qual seria o direito do Lula? Sob que direito o Lula estaria preservado como principal líder de multidões no Brasil? Esse direito do juiz Moro seria algo assim: o fato aparece como um desenho em um quebra-cabeça de indícios e quando o juiz vê o fato, um domínio se estabeleceu, mesmo que faltem peças materiais objetivas que provem uma culpa. Então seria a presença de um fato visível como ideia a partir de fragmentos. O fato que eu consigo ver, Zeferina, é o de que o PT é o único partido que precisa ser cassado de sua capacidade de influência no cenário político. Os demais acusados, de outros partidos políticos, nos processos ligados à investigação chamada de lavajato, não levam junto seus grupos políticos, seus partidos, para o lugar de punição.  Talvez porque outro fato domine a cena, e ele seria a necessidade de cassar de seu lugar de poder o conjunto normativo erguido na modernidade republicana, no Brasil e no mundo. Finalmente podemos concluir - pelo domínio do fato - que o Partido dos Trabalhadores liderava, no governo, a proteção à CLT, as ideias de ênfase do princípio jurídico da proteção do hipossuficiente, a Constituição dos direitos humanos individuais iguais para todos. Então o domínio desse novo direito surge pelo fato novo que é a mais recente revolução da informática carregando consigo novas tecnologias em diferentes áreas e precisando deixar em aberto até mesmo as possibilidades de vários tipos novos de escravidão, a começar pelo trabalho obrigatório de apenados nos grandes presídios de predomínio de populações negras, pobres e abandonadas desde as gerações de seus pais e avós. Outras e novas escravidões como a de jovens operadores de telemarketing, de costureiras domésticas, de cortadores de pedaços de carne de frango ou de gado, todos presos em sistemas cruéis de trabalho forçado e sem direito a contrato protegido por leis de domínio público.
O PT, ao defender as normas construídas no século vinte, estava travando a liberdade dos gestores desse novo mundo de novas lógicas. E o PT fez isso defendendo os direitos escritos modernos, os direitos das normas e decisões jurídicas escritas, dos códigos, das constituições, todos eles erguidos a partir dos acontecimentos inaugurados pelas revoluções burguesas do século XVIII. Contra essa tradição, nasce o direito do domínio do fato, sendo que os fatos aparecem em uma sucessão de problemas inéditos, tecnologias novas e populações humanas envolvidas em tragédias sem precedentes, como a ruptura da barragem do depósito de lixo de mineradoras, em 2015, e a contaminação dos rios a partir da cidade brasileira de Mariana, em Minas Gerais, Brasil. Parece então, Zeferina, que o PT defendia um capitalismo que está morrendo, se decompondo, enquanto os seguidores, aliados e admiradores do juiz Moro defendem  uma profusão de grandes novidades. Isso do julgamento do Lula nas telas das televisões e nas redes sociais, a partir de seu depoimento perante o juiz Sérgio Moro, está parecendo um tipo de assalto revolucionário ao poder, uma espécie de “período de terror” acionado para prender um conjunto de inimigos deste novo poder que irrompe e silenciar uma determinada versão, mais antiga, dos fatos. Parece então que isso vai se impor, aos poucos, aos saltos, lenta ou repentinamente e teremos o início de um novo mundo jurídico. Mas nada indica que nesse novo mundo teremos apenas um modelo de pensamento, teoria, sobre o direito de todos e de cada um, direitos dos humanos, dos seres vivos e das coisas tocadas por eles.
                       Penso, Zeferina, em um direito natural defensivo, uma produção de entendimentos sobre direitos a se realizar a partir das memórias de longa duração que se mantiverem dentro das comunidades humanas, dentro dos cérebros de muitos dos seus membros que passarão essas memórias de geração em geração. Chamo de natural esse direito porque ele brotará, penso eu, de ideias irrefutáveis e muito mais consolidadas do que esses fatos voláteis das lógicas camaleônicas do mundo atual. Ideias tais como bem viver em comunidade, felicidade individual, liberdade individual e de grupos, saúde dos corpos e das mentes, são ideias que movimentaram todos os tempos humanos, todas as histórias vividas pela humanidade. Natural no sentido do que é próprio de um ser, daquilo que vem com ele quando ele nasce e cresce. Chamo de defensivo porque, pela primeira vez na história da humanidade, esse direito tende a aparecer não como uma potência que impõe uma novidade, um desejo, uma invenção, não mais como um conjunto de ideias utópicas ou inscritas em um campo filosófico revolucionário de novos atores sociais, mas como um conjunto de acontecimentos movidos por urgências imediatas de sobrevivência da espécie humana sapiens. É um direito natural defensivo porque nós estamos ameaçados de extinção, Zeferina. Então esse ser natural desse direito seria um conteúdo a predominar na história desta humanidade ameaçada e, portanto, seria um direito historicista, a encontrar um domínio de uma história humana.

                               Penso sobre esse direito das gentes comuns desde 1994, quando comecei a estudar e escrever sobre histórias da Justiça e do Direito do Trabalho no Brasil. Lá, eu estudava sobre as histórias do escravismo no país, sobre as perversidades nas Casas Grandes & Senzalas, sobre os hibridismos entre violência e confraternização. Estudava sobre a lei da despedida injusta de 1935. Agora, estou voltando àqueles escritos e pensando sobre um novo direito para opor ao direito do Moro e para defender nosso direito ao próprio corpo. Neste momento histórico, não mais as “mulheres inessenciais” descritas pela Simone de Beauvoir, agora os “homens inúteis” falados por jovens autores, como o Yuval Noah Harari. Agora, os homens terão que aprender a exercer uma contra-intuição, como as mulheres diferenciadamente audaciosas sempre fizeram desde o surgimento do primeiro domínio patriarcal. Agora, quando a mulher começava a deixar de ser coisa para os homens, começamos a ver toda a humanidade mergulhar em um domínio de fatos que conduzem os seres vivos a mais degenerada coisificação. Agora.


Imagem da web - pintura de Hieronymus Bosch - Cristo carregando a cruz - século XV.

Querida Zeferina - carta 9.1 - Kant, Deleuze e a diferença entre o bacana e o comum

                 
                                                         

                                                      Querida Zeferina,


                                              A França acaba de entrar em uma necessidade de escolha entre o pântano e o precipício, sendo um problema ético a decisão sobre qual deles tende a ser o mais nefasto aos ideais dos “direitos humanos iguais para todos”, qual dos candidatos – Macron e Marine Le Pen – é o pântano ou o precipício. Nós, brasileiros, nos sentimos consolados dentro de nossa coitada inveja da qualidade política francesa. Acho até que essa Marine Le Pen poderia abrir espaços de rupturas nas lógicas hegemonizadas dentro do grande capital da robótica, da engenharia química e da engenharia genética, caso se elegesse. Mas logo seria capturada e disciplinada pelo ralo do capitalismo senil, transgênico, pós-humano. Seria um pensamento louco votar na Le Pen, mas esses jovens gerentes do capitalismo só estão sendo desafiados pela direita mais antiga, pelo viés reacionário. Isso nos confunde um tanto, no nível do desejo, embora na razão não possamos escolher a loira, até porque seu significado se comunica, em uma equação simplória, com o Bolsonaro do Brasil. Aqui, essa direita antiga é composta por psicopatas assumidos, violadores, mafiosos bandidos de filme noir como o inesquecível Chinatown, com o Jack Nicholson e a Faye Dunaway. Nesse filme, os mocinhos não têm qualquer chance e o bandido mor é o pai da princesa, o rei. E não há sapatinho de cristal como objeto de cura. Macron, o banqueiro jovem casado com uma fêmea integradora, a um só tempo, de Sigmund Freud e Simone de Beauvoir, liberado de culpas pela nova ideologia feminista, GLTB e libertária do direito às diferenças, vencerá as eleições na França, mas Marine Le Pen participará do novo governo. A esquerda francesa está nas ruas, apanhando como nós, provavelmente apanhando menos porque lá é a França, velha e boa, e eles não costumam quebrar cabeças e faces de jovens indefesos que passam nas ruas.  Não é mais possível ver duas extremidades nessa história desse mundo disciplinado por um modo quase chinês (imperial ou maoísta, uarever), brutal, associado a um estilo norte-americano disruptivo, na prática mergulhado em psicopatias sociais transbordantes - em tese limpo e ordenado - em suas lógicas predominantes.  A cada dia que passa aprendo a relaxar em meio a tantas agonias, a cada semana mais me sinto sem compromisso de escrever para que alguém entenda e goste, Zeferina. Você sendo muito mais do que uma ideia psicanalítica de um arquétipo do bem ou um si mesmo perdoado, sendo mesmo um nagual do Castañeda, talvez. Sobretudo, Zeferina, você sendo um direito inalienável meu de ser e pertencer. Direito à palavra. Menos pressa tenho em chegar a algum lugar, algum objetivo. A vida é muito curta, nós a vivemos como uma bola de neve caindo montanha abaixo e, ainda, passamos a segunda parte dela encontrando explicações para nós mesmos sobre os motivos do que fizemos na primeira parte.
                                       Mas se até a França desmorona eu posso ler Kant em paz, pensando nos dois jovens adeptos de Gilles Deleuze, um pobre e lindo punk operador de telemarketing e outra bem sucedida e refinada autora de livros de filosofia, cheia de títulos acadêmicos e professora de universidade. Vou a Kant tentar entender o que separa um do outro, nesses dois jovens adoradores do lógico genial e analista do mundo à beira do caos, o Deleuze, autor do livro Anti-Édipo, uma obra fundacional de entendimentos sobre o que vem depois do moderno. Que identidade tem essa separação entre um deleuziano pobre e um bem sucedido com o problema da decadência da esquerda tradicional francesa?
                                   Emanuel Kant acreditava – dizem - em uma filosofia perfeita, em um encontro preciso com a verdade por meio de construções racionais eficientes, e Deleuze entendia – depois de vários outros pensadores alemães – ser o mundo dos seres e das coisas um permanente movimento caótico inapreensível pela consciência e o olhar humanos. Seria preciso então, para Deleuze, falar e escrever  filosofias de um modo nômade, como quem escreve  romances psicanalíticos. Uma espécie de ação direta movida pelo desejo, pelo deus Dionísio, mas refletida em conhecimentos adquiridos pela geometria revelada nas maravilhosas máquinas de cálculos e formas que são os computadores. Já Kant, um alemão do século dezoito, adorava organizar as imagens, os objetos de sua observação, em gavetinhas de um armário enorme e sólido: “A antiga filosofia grega repartia-se em três ciências: a Física, a Ética e a Lógica. Esta divisão está inteiramente de acordo com a natureza das coisas, nem temos que introduzir-lhe qualquer espécie de aperfeiçoamento, a não ser acrescentar o princípio em que ela se baseia, para que desse modo possamos, por um lado, possuir a certeza de ela ser completa e, por outro lado, determinar com exatidão as subdivisões necessárias. Todo conhecimento racional é ou material e refere-se a qualquer objeto, ou formal e ocupa-se exclusivamente com a forma do entendimento e da razão, um e outro em si mesmos considerados, e com as regras universais do pensamento em geral, sem distinção de objetos. A filosofia formal denomina-se LÓGICA, mas a filosofia material, que trata de objetos determinados e das leis a que eles estão sujeitos, divide-se, por sua vez, em duas, visto estas leis serem ou leis da natureza ou leis da liberdade. A ciência das primeiras chama-se FÍSICA; a das segundas, ÉTICA. Àquela dá-se também o nome de Filosofia da natureza ou Filosofia natural; a esta, o de Filosofia dos costumes”. (Fundamentação da Metafísica dos Costumes-Immanuel Kant) Achei lá na Wikipédia. Não tenha medo, você que me lê, de estudar filosofia por recortes na internet, ou livrinhos baratos e velhos achados em uma prateleira qualquer. Eles estão prendendo meninos negros, como o Rafael Braga, para estupra-los e condena-los pelo uso de maconha, ou por indicia-los como entregadores de drogas para jovens “bem de vida e estudados”. Estão esfacelando vidas indefesas. Então podemos pensar, falar e estudar até mesmo Kant, livremente, sendo nômades.
                                              Regina Schöpke é a bem sucedida e refinada autora de livros de filosofia que falei acima e, ao procura-la nas redes sociais encontrei um blog no qual ela aparece junto a outras personalidades bem sucedidas tais como Bolivar Lamounier, Merval Pereira, Fernando Gabeira, Eliane Cantanhêde e Miriam Leitão. É professora universitária e escreve no jornal O Estado de São Paulo. Li quase todo o seu livro Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, editado pela Contraponto, editora vinculada ao nome de César Benjamin, um militante da esquerda armada do tempo da ditadura militar, preso na época e depois exilado, que participou da fundação do Partido dos Trabalhadores e depois rompeu com este partido. Atualmente, 2017, o César Benjamin enfrenta a escolha de ser secretário de educação do governo do prefeito Marcelo Crivella, no Rio de Janeiro. O livro da professora e filósofa contém um pensamento rigoroso que me pareceu álgebra pura, Zeferina, aquilo que Kant chamou de lógica. Vou destacar dois pequenos recortes para afirmar o que eu entendi e o que me fez não gostar do pensamento dela. No primeiro, ela diz, de Deleuze: “Era preciso inventar um conceito que libertasse a diferença das regras limitadoras da representação . E libertá-la da representação é libertá-la de sua subordinação à ‘identidade’, ao ‘mesmo’ e à ‘semelhança’. É dar a ela ‘voz’ própria, ou seja, é assegurar à diferença uma ontologia sempre negada por uma imagem de pensamento ortodoxa. Dissemos ‘ontologia’ porque a diferença pura é a própria expressão do ‘ser’”. No segundo, Regina conclui, no fim do livro, e sobre Deleuze: “Para ele, o ser é unívoco. Mas a univocidade não significa um único e mesmo ser para todas as coisas. Muito pelo contrário, os seres são múltiplos e diversos. Univocidade significa que todos os seres se dizem na diferença e na repetição. A diferença é um acontecimento do próprio ser, é como ele se expressa, é como ele se diz. Cada ser é único. É por isso que tomar a diferença como atributo ou como negação é diminuí-la, reduzi-la a formas menores”. Estou chegando perto do título desse capítulo, Zeferina, ou seja, como aceitar as diferenças democráticas sem se deixar capturar pelo capitalismo compulsivamente disruptivo e genocida.
                                             Ocorre que o acontecer da diferença pura no campo de existência de um ser humano, penso eu, ele é sempre histórico. E eu preferiria uma reflexão mais “kantiana” sobre ética, para que pudéssemos entender os lugares políticos ocupados pelos seres, e também uma reflexão mais histórica, não num viés materialista simples, mas agora num formato que integre todo um conjunto de conhecimentos inaugurados na linguagem de Deleuze, depois de Foucault, depois de Nietszche.  Ver esse acontecer como uma profusão de novidades, sem sentidos de memórias coletivas, é próprio do tempo histórico da globalização neoliberal, esse tempo de um incrível excesso de imagens e de objetos descartáveis a produzirem uma desordem na superfície do planeta Terra. Certo, Deleuze consegue descrever um mundo no qual a técnica – a tecnologia, o conhecimento de como produzir minúsculas máquinas, químicas, objetos muito complexos, armas incríveis - captura todo o planeta Terra, incluindo todos os humanos, e essa ferramenta que se chama informática produz informações separadas entre elas – como se nenhuma relação tivessem umas e outras, para depois agrupa-las em conjuntos temáticos, matemáticos, fórmulas (os pobres, os ricos, os homossexuais, os heterossexuais, os homens, as mulheres, os jovens, as tribos, as diferentes imagens dos “si mesmos” e por aí vai) que, não obstante a alegada imanência radical são – na verdade – pequenas localizações de uma mesma e gigantesca transcendência, esta que joga os humanos a se pensarem como acoplados a avatares representantes de uma liberdade suposta como infinita. Enfim, uma transcendência a se afirmar como eterno simulacro, como sendo o dever ser de um devir de pura outrencidade e, no entanto, apenas mais uma ideologia, uma crença a conduzir novamente os humanos a comportamentos de exércitos burros, inessenciais (como afirmava a velha e boa Simone de Beauvoir), descartáveis. Mas entre descrever o caos deste capitalismo senil, terminal, genocida, e uma fala ou escrita do que podemos fazer a esse respeito pode haver uma distância tão grande como essa que separa o jovem punk que apanha da polícia de choque da jovem professora e filósofa que escreve junto a apoiadores desta violência policial, escreve em blogs e jornais sustentados por gerentes que sustentam essa violência policial que arranca olhos e quebra crâneos de jovens pacíficos e desarmados.
                                              Nunca li Kant antes de hoje, Zeferina, e já não lembro quando fiquei sabendo ele ter sido um homem desses das listas dos dez mais importantes de um século. Devo ter lido sobre ele em aulas de introdução à filosofia, no básico do primeiro ano de universidade, 1977, mas lembro da minha total falta de atenção na época, interessada que estava em aprender a fazer sexo com amor, aprendendo então a escolher um jovem homem o mais bonito, inteligente e valente que eu conseguisse seduzir - em uma vida sempre corrida, ameaçada, acionando ao mesmo tempo audácia e medo – e aprendendo a participar com ele (de preferência como marido) de uma revolução para instalar no Brasil um governo capaz de deixar toda a população brasileira alegre e esperançosa, com uma vida boa. A burguesia era um problema, mas não havia na minha índole, vontade alguma de fuzilar nem mesmo o mais louco estuprador, e ao ver a família real russa ser fuzilada, em um filme qualquer, eu me imaginava inimiga de toda e qualquer ideologia (linguagem de uma transcendência) que propusesse maltratar quem quer que fosse, seja qual fosse o motivo. Era aquela história de dividir a comida existente no mundo entre todos os humanos, fazer todos eles alcançarem o conhecimento, dar a todos as mesmas oportunidades de serem livres e dignos.
                                                        Fui ouvir novamente sobre Kant ao assistir um vídeo de Roberto Machado no Youtube, no qual eles dois apareciam – Kant e Machado – como aquele homem maravilhoso que, finalmente, eu não havia chegado nem perto de conseguir para marido. Roberto parecia um pensador grandioso, insuspeito para acusações mundanas sobre quem lava a louça ou quem apoia ou não o outro. Fico imaginando esse homem, o Kant, a pensar os movimentos das coisas e dos seres no mundo. Se eu pudesse falar com ele, Zeferina, como posso falar contigo, perguntaria sobre os porquês de um jovem adulto admirador de Gilles Deleuze só poder ser telefonista em uma empresa de telemarketing e outro, quase da mesma idade, poder tornar-se uma filósofa e professora de universidade. Porque um deles pode se tornar uma “pessoa bacana” e o outro restar dentro da sofrida condição de uma pessoa qualquer ameaçada por uma polícia de choque não raro perigosíssima para o cidadão comum, ainda que haja um rastro de “semelhança espiritual interna” entre os dois. Kant não pode me responder ou eu não posso ouvi-lo. Mas o teu sorriso irônico e generoso, sentido como um nagual por mim, Zeferina, me diz ter essa diferença alguma coisa a ver com os fracassos da esquerda, na França e no Brasil, e que esses fracassos fazem renascer – surpreendentemente – aquele objeto de desejo, um sonho bom, do direito ao comum, ao bem comum, ao agir de todos em meio a um espaço público, do direito de ser um “nós” dentro de um ordenamento social que sabe falar dos si mesmos como individualidades integradas a uma inteligibilidade histórica. Enfim, quem diria, o excesso da diferença pura produz a boiada e o choque policial. E enquanto alguns deleuzianos procuram se acomodar dentro de estados de exceção, nossos si mesmos tão diferentes entre si afirmam, juntos: enquanto houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não eu canto”(Belchior).


imagem da página https://rockontro.org/2014/06/04/belchior-sem-medo-do-rock/


Querida Zeferina - carta 8.1 - Simone de Beauvoir, a lavajato e eu mesma



                                  A violência da investigação sobre dinheiros movimentados ilegalmente no Brasil atingiu uma intensidade surpreendente, Zeferina, tornando o espaço dos acontecimentos políticos um lugar em relação ao qual não se faz mais necessário ter pressa alguma. Nada pode fazer uma pessoa comum – no sentido de indivíduo que consegue apenas o dinheiro para o sustento e moradia – a não ser vincular-se como servo, escravo, assessor ou soldado em um castelo feudal de algum tipo de reino. Tirando a palavra assessor, as outras eu uso livremente para falar de empresas, partidos políticos, postos nos governos municipais, estaduais ou nacional, todos vinculados a algum agrupamento de indivíduos reunidos em torno de interesses de grupo, privados portanto. Fora isso, os servos ou escravos podem fazer algum tipo de atividade artística ou lúdica esportiva. Pois é, estamos em um momento da história humana de enormes dificuldades para entender e explicar os acontecimentos. As palavras estão perdendo seus sentidos, as pessoas perdendo a capacidade de compreender umas às outras. Então chamo de “reinos”, porque acabam sendo mesmo um acontecimento num formato medieval invadindo cenários de um tempo pós-moderno. E, no entanto, como sempre é mágica a história, esse acontecimento todo já estava ali há muito mais tempo, como uma gravidez. Foi divulgado em abril de 2017 a fala do patriarca da gigantesca empresa de nome Odebrecht dizendo ter toda essa movimentação semelhante a do tráfico de drogas, com dinheiro vivo e fora dos sistemas legais de contabilidade, sido já feita desde a década de oitenta, antes mesmo de ter sido aprovada a Constituição de 1988. Então esse modo de organizar a circulação do dinheiro cresceu junto com o tráfico de drogas no país.
                                             Quando sairemos do “pós” e do “neo” para encontrar nomes próprios para as coisas e o agir humano no século XXI? Estamos no escuro, adentrando em reinos sem nomes, integradores de federações de exércitos vestindo uniformes diferentes, todos de calças jeans, leggings e moletons, alguns de gravatas, paletós e terninhos de mulheres meio feministas, a maioria tendo por armas uma determinada linguagem em um determinado agir e pensar padrão. E eles só sabem repetir. Tudo em um cenário desta que um dia há de conquistar o nome de grande guerra mundial, ainda que não venha a ser a terceira e última de uma série começada em 1914, por motivos ligados a ineditismos simbólicos e orgânicos dentro dela, mas leve outro grandioso nome como, por exemplo, primeira grande batalha arquetípica do pós-antropoceno anterior. Não, não estou bêbada e nem tendo um episódio delirante. Estou falando com você, Zeferina, e então não preciso agir como uma gueixa perante um bem sucedido homem de esquerda pronto para me chamar de louca, assim, de brincadeira mas sério, cortante, como se fosse um gentil carcereiro, ou uma freira diretora de um convento medieval. Eu disse pós-antropoceno porque segundo alguns estamos numa era geológica dos sapiens e logo sairemos dela, ou seja, deixaremos de ser sapiens e seremos uma outra coisa ou outras coisas. E como estamos em um momento da história humana em que ninguém consegue inventar nomes, ficamos nos “pós” e “neo”. Assim, tipo na beira de um precipício olhando a imensidão azul. Além disso, coloquei anterior porque não posso acreditar em outra ideia que não a de que estamos na véspera de um começo de história humana muito inaugural, tendente a ser apenas uma “idade média alta”, um período rude e difícil de viver. A alta ou anterior sendo a mais antiga de um começo. Provavelmente os sobreviventes vão trocar de nome, enquanto espécie, nem que seja de vergonha mesmo. Mesmo que tenham o mesmo DNA, vão deixar de ser sapiens para fazer de conta que nada daquele passado, esse nosso presente, seja de responsabilidade deles, por descendência. Talvez então esses novos humanos comecem sua série histórica de milênios partindo de uma mentira, again. Novamente, em inglês, parece mais vergonhoso ainda, como se o inglês estivesse a nos fazer uma ironia. Again, again. Uarever, estarei morta mesmo e não sei mais do que umas trinta palavras em inglês, se tanto. E me orgulho disso. A menina antifeminista e se dizente “de direita” com aparência de perversinha de novela que entrou para uma universidade brasileira para fazer um mestrado em “feminismo” e falou que a Simone de Beauvoir era louca, rindo, dando entrevista para um programa de um homem estúpido e violento, a menina feliz em processar uma professora feminista, a menina debochando do feminismo, essa menina provavelmente sabe muito mais inglês do que eu.  Assim, nem preciso ficar me dando ao trabalho de explicar o tamanho da violência da operação lavajato (nome dado por policiais, procuradores e juízes à investigação sobre desvios de dinheiros para fins ilegais, no Brasil do início do século vinte e um, final do vinte) e posso voltar, tranquila, ao tema de Simone de Beauvoir, no seu livro O Segundo Sexo, sobretudo no que nele posso encontrar de mortes e nascimentos relacionados ao meu próprio e verdadeiro eu.
                                            Entrei hoje em duas lojinhas no centro de Imbituba, Zê, uma de perfumes baratos, outra de sutiãs e calcinhas, vendidos ao preço de um dia ou dois trabalhados de uma atendente da lanchonete na qual, depois, tomei um café. Os perfumes e os sutiãs de hoje em dia, Zê, continuam a representar ideias que compõem o mito da princesa, assim como brincos e anéis baratos. Não preciso explicar aqui que eles são produzidos em trabalhos feitos em ambiente controlado por atitude vil, produzidos em linhas de montagem invisíveis, nunca mostradas nessas televisões do tempo da lavajato, cheias de propagandas lindas demais, em intervalos pagos a preços desconhecidos por quem às vê, e que aparecem antes e depois de uma cena de polícia em uma apreensão, um tiroteio ou um inquérito divulgado do mesmo modo como são divulgadas as entrevistas de jogadores de futebol de times caros. Todo mundo sabe como essas mercadorias baratas são produzidas, do Canadá à Coreia do Norte, da Argentina à Rússia. E muitas dessas mercadorias são adquiridas por mulheres trabalhadoras comuns para que elas possam se sentir como princesas, ao menos nos primeiros dias de uso do objeto. Considerando estarmos a viver em um mundo no qual as ideias feministas se tornaram a legalidade simbólica, eu fico me perguntando o que a Simone de Beauvoir pensaria se entrasse hoje nessas lojas que eu entrei. “Deixem os negros votar, eles se tornarão dignos do voto; deem responsabilidades à mulher, ela saberá assumi-las; o fato é que não se poderia esperar dos opressores um movimento gratuito de generosidade; mas ora a revolta dos oprimidos, ora a própria evolução da casta privilegiada criam situações novas; por isso os homens foram levados, em seu próprio interesse, a emancipar parcialmente as mulheres: basta a estas prosseguirem em sua ascensão e os êxitos que vêm obtendo incitam-nas a tanto; parece mais ou menos certo que atingirão dentro de um tempo mais ou menos longo a perfeita igualdade econômica e social, o que acarretará uma metamorfose interior”. Está lá na conclusão do livro, eu a li e agora voltei para os primeiros capítulos. A Simone escreveu uma bíblia, entre tantas outras produzidas na modernidade. Ela mesma afirma que o cristianismo e o marxismo são religiões e ela se pensa como científica, dedicada a verdades “existentes”. Agora que o mundo humano se mostra quase que totalmente tomado por diferentes loucuras, a palavra ciência começa a se confundir com a palavra técnica e isso parece até mais honesto. Mas Simone é linda quando diz que a mulher é um ser aprisionado durante milênios e desejante de tornar-se outro ser com alguma liberdade. A palavra liberdade domina o conteúdo do texto dela.
                                              Estava eu a escrever hoje mesmo, nesse dia da morte do crucificado, em 2017, lá no facebook, sobre a seguinte questão: só haverá uma Constituição digna desse nome no Brasil o dia em que for escrito um conjunto de normas maiores no formato de dez ou vinte frases simples. Isso porque só será uma norma maior se for entendida pela maioria da população brasileira que sabe ler muito pouco ou quase nada. Penso agora que um dos primeiros artigos deveria ser algo assim: “todo habitante nesse país será respeitado na manifestação de seu verdadeiro eu, independente de sexo, etnia, profissão, idade ou religião, desde que não se manifeste para desrespeitar a manifestação do outro”. Bem entendido, fale direitinho, não use palavrões, não seja debochada, mas critique livremente as ideias das quais discordar. Então, Zeferina, o meu verdadeiro eu me faz pensar, nesse momento histórico, que eu devo dispor do direito de falar algo sobre a Simone de Beauvoir sem ter que ler todos os livros dela e sobre ela e sem ter que escrever um tratado tão enciclopédico como o dela para ter minhas ideias sobre feminismo respeitadas. Leia e concorde ou discorde quem quiser, mas sem desrespeitar o meu eu. Então, acredito que esses movimentos feministas que se tornaram acontecimentos de multidões e repercutem em grandes eventos públicos bandeiras como a de “nenhuma a menos” referentes à luta contra a violência sobre a mulher e ao limite máximo dessa violência que vem a ser os assassinatos de gênero, atualmente chamados de feminicídios, eles se apoiam teoricamente em ideias como a que esse parágrafo da Simone apresenta. Eles se pensam como movimentos de mulheres em processo de libertação supostamente vivendo uma “metamorfose interior” naquilo que a Simone explica, em seu livro, como sendo as atitudes motivadas por autoimagens “desgraçadas” por uma mitologia que retira a “sua liberdade”, presenteando-a “com os tesouros falazes de sua feminilidade”. E, ainda, Simone escreve: “Balzac descreveu muito bem essa manobra quando aconselhou ao homem que a tratasse como escrava, persuadindo-a de que é rainha”. E “nenhuma a menos” parece um grande acontecimento de multidão visando à proteção de cada uma. No entanto, o que vemos nesse mundo comandado por inquéritos policiais e processos judiciais acionados por meio de ações de grandes mídias são mulheres predominantemente ainda se percebendo como desejando incorporar o mito da princesa, ou da rainha, e aparecer perante o macho viril como “sua vassala”, no dizer de Simone, onde a mulher precisa aparecer como enfeite, imagem de puerilidade, frivolidade, irresponsabilidade. Não o macho colorido do casal de canarinhos, no qual o masculino é o que precisa seduzir por meio do enfeite, mas a fêmea do homem, aquela que fica adornando o doméstico, ou enfeitando os desfiles do rei, a feminilidade como uma ilusão desta vez reutilizada em bricolagens tão multiplicadas em signos distintos que acaba compondo a imagem de homens andróginos, cantores e artistas populares adornados de um modo usualmente feminino. E esse adorno, finalmente, feito em linhas de produção nas quais mulheres e homens restam escravizados, e vendido em lojinhas baratas espalhadas pelo mundo.  E todo mundo sabe. Diante disso me faço três perguntas: esse “nenhuma a menos” unifica quais “umas” e intenta proteger quais “umas”? Outra pergunta que me ocupa é, se o direito ao voto e os direitos ao estudo e ao trabalho, no interior da sociedade capitalista do pós-segunda grande guerra, que iluminam toda a obra de Simone de Beauvoir, como motores de uma conquista “dentro de um tempo mais ou menos longo” da “perfeita igualdade econômica e social” não compõem uma mitologia de uma época mais ingênua e crente na capacidade fabril dos humanos sapiens, no interior de uma racionalidade derrotada hoje pela violência quase indescritível das grandes corporações? Não seria então esse movimento feminista, estacionado no século vinte, um eco religioso - tendente à melancolia coletiva – de uma mitologia do progresso já inexistente como solução humana de conjunto, para as grandes multidões empobrecidas e desiludidas do sul do Planeta?

                                        De onde eu falo, Zeferina? Quem me ajudou a chegar nesse lugar de liberdade de onde escrevo? Talvez um pouco Simone, pela pregnância de sua crença no ambiente social moderno, nas universidades, nos cenários das protagonistas dos filmes de Hollywood. Mas a maior parte da mulher em situação de combate que sou só pode ter vindo de você, Zê, da vó Nair, das costureiras do início do século vinte no Brasil, sobretudo das professoras herdeiras das sufragistas, da minha mãe que ensinava latim aos vinte anos.  Eu venho de uma coragem feminina acontecida aqui mesmo, no Brasil, e minha intelectualidade não foi nunca respeitada como sempre foi a da Simone de Beauvoir. E é nas feridas desse desrespeito que nasce a lógica endemoniada da menina que debocha a milenar luta das mulheres por mínimas liberdades civis.

versão um. foto: daisy weston

Querida Zeferina - carta 7.1 - Rosa Luxemburgo, Hitchcock e a lavajato



                             Que lei é essa, pensei, Zeferina. Eu que desde a juventude me interesso tão pouco pelos detalhes cotidianos de acontecimentos mensais e anuais. Não sei, mas acho que as mulheres portadoras do que eu prefiro entender como um enigma, já os psicólogos junguianos chamando de “complexo” e o senso comum adotando antigos manuais psiquiátricos para falar em “bipolaridades”, as mulheres cassandras não se interessam pela imagem formiga da realidade que corre como um rio todos os dias. Nós estamos sempre ligadas em algo que algumas chamam de “sextos sentido”, algo que surge como uma contra-intuição, uma percepção sobre o real diferente da de “todo o mundo” e, assim, não ligamos para o que é anunciado nas tevês. Muito menos nos jornais em meio papel, que não lemos e quando líamos a Folha de São Paulo, quando ela era o máximo do cosmopolitismo inteligente brasileiro, pescávamos apenas os grandes artigos de debates filosóficos-políticos, os ensaios psicanalíticos, as críticas de cinema, livros e teatros. As cassandras são viajantes, de olhares no horizonte, perdidas em interioridades milenares, referenciadas em uma tradição de isolamento da bruxa, da herética que ninguém entende. Talvez por isso, Zê, fui discutir com aquele menino de trinta anos o problema dessa confusão das carnes brasileiras e a operação da polícia federal e ele me disse: “mas desde que saiu a lei da transparência, a polícia federal e o ministério público ganharam essa atribuição de poder divulgar as investigações e os segredos de justiça começaram a cair”. Desde quando a grande mídia protege a circulação livre de verdades em debate e em cena? Eu braba, indignada, fiz um discurso que não cabe aqui. O menino respondeu: “Bom, mas aí é o capitalismo. Nós vivemos no capitalismo”. Como que dizendo que ele, o capitalismo, não pode ser denunciado. Fui ver que lei era essa, afinal, e estava lá, assinada pela Dilma, a derrubada sob linchamento da grande mídia: “LEI Nº 12.527, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências”.
                                                 Então isso tudo vem sendo costurado no congresso nacional desde o início dos anos noventa e esse debate não foi levado pela esquerda brasileira com a importância devida, nas escolas, nos partidos, nos sindicatos e movimentos sociais. A tal esquerda ficou divulgando e tornando populares ideias sobre pobres, indígenas, negros, mulheres, gays, todos esses e seus direitos a moradia, identidade e liberdades individuais, ficou divulgando sobre feiuras de uma classe média que não sabe ler livros inteligentes e não falou com a população sobre quem e como são controladas as circulações de informação no Brasil. Eu nem sabia dessa lei, porque quando ouvi falar em lei que obrigava a divulgar salários de servidores públicos e prestações de conta de órgãos públicos já achava tudo uma palhaçada, porque o capitalismo organiza todo o ambiente social por meio, principalmente, do que circula de capital e riquezas em engendramentos de propriedades privadas. Fiquei pensando, então, quando foi que aquela esquerda perdeu a capacidade de criticar a apropriação privada dos mecanismos de produção e circulação de riquezas, entre elas, a informação como um valor oficial dentro de um estado nacional? Tá certo que de 1989 até 1991, quando caem o muro de Berlim e quando a União Soviética foi abduzida por uma inexistência legal e formal retroativa a 1917 como imaginário popular e mundial, o comunismo bom foi tornado clandestino no planeta inteiro. Ser comunista passou a ser uma espécie de registro de sobrenome de antepassados. O cara pertencia à linhagem dos “comunistas”, mas agora ele era um sujeito sensato e ficava discutindo banalidades da gestão do capitalismo como se este fosse a única coisa possível no mundo do ordenamento político, econômico e social dos humanos.
O Harari, do livro Homo Deus, um mágico do Tarô, faz brilhantes malabarismos para passar como verdade absoluta a ideia de que o capitalismo é a própria civilização humana, que ele é uma engrenagem saída das entranhas dos limites humanos de inteligência cognitiva, uma inteligência advinda de uma consciência produzida por, digamos, sentimentos burros. Deriva daí que possivelmente as máquinas pensantes, os computadores, poderiam produzir uma conexão de uma teia de pensamentos lógicos exteriores a qualquer consciência individual ou coletiva humana, teia essa – ou redes sociais virtuais mergulhadas em algoritmos autônomos - capaz de engendrar soluções talvez até de saída desse tal capitalismo humanamente meio burro e arriscado quanto a desequilíbrios ecológicos e demográficos perigosos. Então sairíamos do capitalismo não para um controle social dos modos de produção da vida, um controle social sobre a iniciativa privada que restringisse o privado livre aos direitos de cada um ser o que quiser. Ou seja, uma versão democrática radical da ideia comunista de verdade republicana. Não, segundo o Harari, uma boa parte dos que adoram computadores e algoritmos estaria pensando em sair do capitalismo em direção ao fim da humanidade sapiens, enquanto adentraríamos em um planeta hegemonizado pelo pensamento sem consciência individual. No meio do livro, o Harari passa pelo comunismo tratando-o como uma loucura idêntica ao nazismo. Isso em meia dúzia de linhas, sem grandes explicações.
                                               Ainda sem saber da tal lei da transparência da Dilma, e de que essa lei era tramada desde o fim da URSS e a proibição mundial de qualquer validade e verdade humana dentro da palavra “comunismo”, que havia sido transformada em um sobrenome senil, achei Rosa Luxemburgo na estante da casa da minha mãe, sua bisneta, Zeferina, a filha da Nair, minha vó. No livro, sobre o problema da reprodução (simples e ampliada) do capital, um capítulo com o título “A Reprodução do Capital e seu meio ambiente”. Eu, triste por causa do ataque da polícia federal aos milhares de frigoríficos brasileiros, ação política que, por óbvio, dava pra ver conduziria os menores e mais frágeis a medos e prováveis perdas econômicas, e que uns caras da tal esquerda diziam que iria falir a indústria de carnes processadas e conduzir o Brasil a exportador de carne “in natura”; eu desanimada com o poder dessa polícia federal de ser governo nacional a partir de uma operação sua, copiei trechos da Rosa, para me acalmar:  ela escreveu que “ não conseguiria expor com suficiente clareza o processo global da produção capitalista em seu aspecto concreto, nem seus limites históricos objetivos” e que ela estava a tentar “formular com toda a exatidão científica esse problema”, isso em dezembro de 1912, quando nem em sonho delirante se poderia imaginar um planeta inundado pelos computadores e redes sociais virtuais. A Rosa escreveu um bobagem, a meu ver contra-intuitivo e feminista, a ideia de que “numa tribo agrária comunista primitiva, a reprodução e todo o plano da vida econômica correrão a cargo do conjunto total dos que trabalham e de seus órgãos democráticos”. A palavra “democráticos” da Rosa entrando em contradição com o texto posterior da Simone de Beauvoir, a feminista falando na odiosa e escravizada condição de coisa da mulher desde essa sociedade tão elogiada pela Rosa. A esquerda da Simone rejeitando a validade do trabalho doméstico como um lugar político, uma esquerda já abduzida pela ideia de valor no campo da produção de riquezas postas em mercadorias com valores calculados com “exatidão científica”, substituindo uma esquerda tão ingênua, a da Rosa, crente na veracidade absoluta do cálculo matemático, esse dos algoritmos do Harari, cálculo aparentemente exterior à produção consciente – e humana – de verdades circulantes em múltiplos níveis e escalas do real.
Lembrei, então, do Paul Virilio, no livro A Máquina de Visão, onde ele diz que o real só acontece como devir apreensível pela consciência quando ele é visto pelo olho humano. Mesmo que esse devir do real, digo eu, não seja apreensível como uma totalidade, essa totalidade não sendo apreensível nem mesmo pelo somatório de todos os olhares humanos, porque os olhares se comunicam entre si por meio de subjetividades no entendimento. Então achei neste livro essa frase impressionante, dado o que os brasileiros estão passando com o furacão chamado de “lavajato”: “ ‘Ao contrário do cinema’, dizia Hitchcock, ‘na televisão não há tempo para o suspense, nela só pode existir a surpresa.’ Esta é a própria lógica paradoxal do videograma. Uma lógica que privilegia o acidental, a surpresa, em detrimento da substância durável da mensagem, como era o caso na era desta lógica dialética do fotograma, que valorizava de uma só vez a extensividade da duração e a ampliação da extensão das representações”. Página 94, para quem lê, Zeferina.
Fico pensando, Zeferina, como essa esquerda que se deixou humilhar a ponto de perder o direito a falar em comunismo como um sonho esperançoso, um comunismo desejável, amistoso e sinônimo da palavra utopia, conseguiu deixar passar no Brasil todo esse processo de legislação sobre o acesso a informações, desde 1991, sem questionar a tremenda inverdade e obscuridade no modo como os conteúdos televisivos poderiam ser acionados dentro desse gerenciamento aristocrático das mídias grandes. Mais que isso, eu fico pensando agora que a própria ideia de “transparência” é corrompida, mentirosa, pois transparente é o vidro, mas o vidro da janela deixa passar o real perante os olhos de quem vê e a tela da televisão nunca, jamais, em tempo algum, é um vidro transparente, ela é uma composição tecnológica, como diz o Hitchcock, capaz apenas de veicular surpresas, porque nem nas novelas o acontecimento deixa de ficar contido em impactos de cenas a cada dia, e cada uma dessas cenas surpresas são articuladas em torno de um conjunto de linguagens faladas e apresentadas por atores pensados dentro de fórmulas semióticas descritíveis, distantes da inapreensibilidade do real.

A Rosa queria ser científica, uma cientificidade a nos parecer tão ingênua para quem vê com os próprios olhos a imensidão desgovernada das tessituras dos algoritmos autônomos espalhados em redes virtuais. Mas ela era a Rosa Luxemburgo, amada pelos comunistas sobreviventes até hoje, esses neocomunistas que já entenderam ser necessário defender as memórias coletivas humanas, que essas memórias não são verdades absolutas e que dependem de conexões conscientes de muitos enredos de subjetividades conscientes e apaixonadas. E os nossos amores não são essas letras bobas de algumas músicas sem poesia que inundam as cenas comerciais das grandes mídias, o nosso amar apaixonado é real, sanguíneo, inusitado, pré-cognitivo ainda que consciente. O Harari diz que grande parte do capital cognitivo pensa ser o nosso amar mero acontecimento hormonal, químico, controlável pela indústria farmacêutica. Mas se assim fosse, como explicar o desejo apaixonado do velho sem hormônios? Pela memória, por óbvio, ele se lembra daquele sexo que ele fez na cachoeira, embaixo da água e em pé, segurando nos braços a amada. Bom, mais isso é consciência, certo? Isso é um acontecimento humano, certo? E não é transparente, é sensível e dele só se lembra quem viu e viveu com seu corpo imensamente humano.  Bom dia, Zeferina.