Seringueiras da esperança, operárias da vida





Em 1989, 8 de março, um grupo de aproximadamente dez a quinze moças com idades variando entre vinte e trinta e dois anos entrou na Catedral Metropolitana de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, às sete horas da manhã, ou no horário da primeira missa - ao que me lembro - para entregar ao pároco, durante o sermão, um documento no qual falavam do direito das mulheres ao controle de  sua capacidade reprodutiva. Foi um pequeno escândalo na cidade, com repercussão maior entre os grupos e partidos políticos de esquerda, alguns simpáticos à iniciativa, outros entendendo como uma atitude agressiva demais, esquerdista, imatura. Nos jornais da cidade podia ser lido, no dia seguinte, uma entrevista com o pároco onde estava dito que as moças tinham se comportado com educação, gentileza, mas que não estava dentro das atribuições do padre resolver aquele assunto. Como se o padre tivesse pensado: "vão se queixar para o bispo". Uns dias antes daquele acontecimento feminista ímpar, posteriormente esquecido pelas memórias dos feminismos de décadas seguintes,  as moças pintaram no viaduto da Avenida Salgado Filho uma frase enorme: "Você já fez aborto, agora legalize". De quebra, em baixo do viaduto, no lugar onde depois colocaram bancas de vendedores, onde há uma parada de ônibus, as meninas pintaram: "Aborto legal, vigília catedral". Como suas avós diriam, essas meninas eram muito danadas, isto é, levadas, arteiras.
Em 2010, encontrei entre minhas caixas do arquivo pessoal duas folhas de caderno escritas com caneta azul e comidas por traças. Era o rascunho do documento que foi entregue ao pároco, naquela missa. O grupo se autodenominava "Alerta Feminista". Lembro que a primeira a ter coragem de entrar na igreja fui eu, que uma vez fui descrita por uma psicóloga como "se não fosse tão criativa seria psicótica". Eu era mesmo danada. Lembro que estávamos todas cansadas, atônitas diante da tarefa iluminada por uma luz de filme europeu, na primeira hora da manhã, depois de termos passado a noite em claro, sentadas na escadaria da catedral, em frente à praça da Matriz, ao lado da Assembléia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Olhávamos, agora posicionadas na praça, como se fosse um enfrentamento herético medieval, olhávamos de maior distância.  Como se a luz da manhã fosse mais católica e a madrugada tivesse nos acolhido generosamente em frente aos portões de grades da igreja maior. Como se o amanhecer nos enfrentasse, moralista. Olhávamos agrupadas, em pé, tensas, quando eu avistei a primeira beata caminhando na calçada em frente à igreja. A mulher era bem velha e magra, pequena e curvada, e vinha se apoiando em uma bengala, ou mancando, não lembro direito. Vi aquela mulher e fui, como movida por um ímã, ao seu encontro. Perguntei: "Posso entrar na igreja com a senhora?", a que ela respondeu que sim, afável. Fui de braços dados com a vovó e entrei, eu a lobinha má. Chapeuzinho  vermelho feminista.  Diante da cena, o bando de gurias se encantou e foi se instalar confortavelmente no lado esquerdo de quem entra, nos bancos da grande igreja, para depois perceber que as beatas tinham sido convocadas e estavam, à postos, nos bancos do lado direito. Uma grande, delicada e inesquecível batalha campal. O padre, lembro bem, diante do circo armado, acabou sentindo-se agoniado demais - imagino - e lhe foi trazida uma enorme e desenhada cadeira de espaldar alto, na qual ele sentou-se  para pronunciar o sermão. Ou então ele tinha problema de coluna e já fazia isso a mais tempo, não sei dizer. Foi nessa situação que uma de nós, previamente escolhida por ser ainda virgem, entrou na fila da comunhão e colocou uma folha de papel dentro da bíblia, em frente ao padre, fechou o livro com o documento dentro e voltou a sentar. Escolhemos uma virgem porque sabíamos que era como que um enfrentamento simbólico e precisávamos sentir que o deus que houvesse vendo aquilo, por ventura, entendesse nossa boa fé e correção de intenções. Fazíamos algo mais ligado ao ritual herético, de fato, do que ao acontecimento racionalista moderno das lutas da esquerda da época. No Rio de Janeiro, sem qualquer combinação, outras feministas realizaram a "Missa Fêmea", talvez porque também se sentissem desoladas pelas intensas perseguições sofridas durante o processo constituinte e as emendas populares das igrejas e das feministas. Queríamos falar com Deus.

Segue, abaixo, o registro do que estava escrito nas folhas de caderno. O documento que  foi entregue ao pároco acabou sofrendo pequenas alterações. Não lembro se o título ficou o mesmo, mas creio que sim.


No Sul, vou cantar um blues

Se eu quiser falar com Deus, tenho que me aventurar; se eu quiser falar com Deus, tenho que seguir Chico Mendes e dizer a verdade, sem medo, de peito aberto, com a máxima coragem e integridade.
[Sou uma mulher-mãe, trabalhadora urbana, meu nome é Dinah e minha terra é Porto Alegre] (parte retirada do texto final).
Na minha terra, as árvores desaparecem no meio de um mato de concreto, asfalto, poluição, medo e miséria; muitas crianças vagueiam, sem-terra, pelas ruas, sujas, maltrapilhas, dopadas de cola, fome e desespero; os que conseguem alimentar suas crianças não sabem de onde vem os alimentos e nem a água, que já apareceram contaminados muitas vezes. A nossa praia, o Guaíba, é uma imundície.
Sou brasileira, eleitora, mãe e trabalhadora e a minha terra é esse país.
Na minha terra, o capitalismo moderno e selvagem rouba a terra dos trabalhadores, rouba os salários, a saúde e a educação, e rouba das mulheres o seu direito mais antigo e mais natural, o direito à maternidade.
Nós mulheres temos em nosso útero a terra fértil que Deus nos deu, e ao nos dar o poder de gerar vida, nos deu a fé de saber cuidar dela.
Os donos do poder destroem a vida, nesse país, nesse planeta, e ainda por cima nos acusam, nós mulheres, de sermos fúteis, frias e irresponsáveis. Culpam as mulheres pelo sofrimento das crianças e dizem que nós somos incapazes de cuidar de nosso próprio corpo. E eles dizem isso que é para justificar que eles é que podem e devem cuidar de nosso corpo.
E vocês sabem o que eles fazem com o corpo das mulheres neste país?
O capital estrangeiro injeta, por ano, 30 milhões de dólares destinados a clínicas de esterilização; trinta por cento das mulheres brasileiras, acima de 8 anos, estão esterilizadas do Oiapoque ao Chuí. Pesquisas e enquetes estão revelando que mais de 10% dessas mulheres já estão se declarando arrependidas e desejosas da maternidade.
Um dos primeiros motivos de morte de mulheres, nesse país, é o dos problemas circulatórios e de coração, derivados da distribuição indiscriminada de pílulas anticoncepcionais a mulheres jovens demais ou muito frágeis, pobres e anêmicas. Outro motivo de morte das mulheres são os problemas derivados da gravidez abandonada, não atendida pelo Estado. Crianças deformadas estão começando a nascer pela contaminação das mães por radioatividade, tóxicos químicos e vírus acumulados no sangue.
É assim que eles cuidam de nosso corpo e nós, mulheres, que somos chamadas de irresponsáveis e incapazes pelos poderosos, sempre lutamos para ter e criar filhos. Nós, mulheres, nunca nos abaixamos diante da miséria e do medo, sempre estivemos de pé, lutando, na lida do dia-a-dia.
Todos nós, aqui presentes, somos filhos de uma mulher e somos libertários porque, de alguma maneira, assim nossas mães nos ensinaram. Foram as nossas bisavós, italianas, alemãs, portuguesas, negras, castelhanas e índias, que lutaram por nós, pela terra e pelo pão. Foram as negras que não acreditaram na lei do ventre livre porque filho de escrava é escravo. Foram nossas avós que não acreditaram no fim da escravidão e lutaram pelo direito ao voto e à cidadania da mulher.
Se eu quiser falar com Deus tenho que ser verdadeira e sincera. Somos mulheres-mães, trabalhadoras urbanas, inteiras, libertárias e feministas e estamos aqui para defender a vida, a liberdade e a dignidade humana e da natureza.
A maternidade é um direito inalienável da mulher. Nós, mulheres, temos uma grande alma e somos, também,a imagem de Deus. A morte de Chico Mendes não nos derruba porque a fé está em nós, porque somos seringueiras da esperança, operárias da vida. E a fé que nos ilumina é infinita porque a nossa vontade política é poderosa e diz:
que a escravidão é a maior inimiga da maternidade; que a liberdade é a parteira da vida; que o nosso corpo foi criado por Deus para ser livre, humano e natural; que lutaremos a vida inteira, nós mulheres, pela posse de nosso corpo, que é a nossa terra primeira!
Que os poderosos tirem as mãos de nossos úteros-terra é o nosso grito de guerra, de vida, de paz e de amor.

(05 de fevereiro de 1989) [data em que o texto foi escrito]