carta 4.1 - as coisas, os humanos e as avós




                            Querida Zê,


                           E se o mundo humano estiver sofrendo o final de uma civilização sem que o olhar comum possa perceber e dimensionar o tamanho do problema? Se estivermos sob o efeito de um gigantesco e imperceptível desmanchamento das relações afetivas, pela destruição das memórias tradicionais dentro das estruturas produzidas pelos humanos no decorrer dos últimos setenta mil anos em suas nações e tribos? Um desmanchamento progressivo ou aos saltos das subjetividades organizadas dentro das ideias-formas “família”, “estado”, “homem”, “mulher”, “jovem”, “velho”? Uma destruição produzida por máquinas, como as redes sociais na web, ou armas de destruição em massa, como as comidas contaminadas por químicas e a enorme quantidade de plásticos em produtos domésticos? E se muitos estiverem ficando loucos a ponto de a própria relação entre normalidades e exceção ficar corrompida?

                           Aquilo que Simone de Beauvoir e Fernando Henrique Cardoso estavam a dizer, em meados do século vinte - quando usaram a palavra “coisa” para descrever a mulher –em toda a história – e o negro como escravo moderno das grandes plantações americanas, foi muito polemizado pelos pensadores sobre o escravismo brasileiro ocorrido de 1500 a 1888, da colônia e império. Estudei isso, Zeferina, ao escrever Tempos e Tutelas, em 1997. As grandes universidades públicas brasileiras recebiam polêmicas quentes sobre a condição de sujeito do escravo, embora o debate feminista incipiente sobre a condição de coisa da mulher fosse colocado em outras dimensões de entendimento. Falo sobre as mulheres e Simone mais adiante. Acontece que uma parte dos pesquisadores dizia ser a divisão entre “coisa” e “pessoa” uma abstração jurídica e econômica ilusória. Em 1960, Fernando Henrique Cardoso havia afirmado serem os escravos coisa. Em 1980, pensadores ligados principalmente à UNICAMP teriam afirmado o sistema escravista brasileiro como efetuado a partir da construção de pactos sociais, sendo os proprietários e os escravos partes em um acordo sistêmico. Pensando a partir de Gramsci e suas reflexões sobre hegemonia e consenso, Ronaldo Vainfas teria dito que a escravidão não poderia funcionar mediante o uso exclusivo da violência, supondo um pacto, um tecido social de contratos entre pessoas. Jacob Gorender se opunha a essa corrente para afirmar que a condição de pessoa só emergiu no mundo humano a partir da “universalidade e igualdade das normas legais para todos os indivíduos”, e que essa condição só apareceu dentro do direito burguês. Então Gorender via os conceitos de contrato, individual ou coletivo, e o decorrente conceito de pacto (individual ou social), gerados apenas a partir do contexto civilizacional das sociedades igualitárias do trabalho regulado pelas mesmas leis para todos os humanos. Já Silvia Hunold de Lara escrevia que “a relação entre o senhor e o escravo era uma relação pessoal de dominação, o que nos permite pensar em uma certa reciprocidade” (1988, 346).

                                                    Estou trazendo esses recortes nesta carta, Táta, para que você me ajude a pensar os acontecimentos atuais, no Brasil, que apontam para um novo tipo de escravismo e, não obstante, novos e propagandeados pactos sociais. A presidente deposta, Dilma Rousseff, falou – eu me lembro – de que havia sido quebrado um pacto feito para retirar do governo a ditadura militar, e que apenas um novo pacto poderia restaurar o que nós nos acostumamos a ouvir falar como sendo o estado de direito, talvez a mesma coisa que o Jacob Gorender chamava de direito burguês. Sei lá, esses conceitos eram sempre ideias complexas e ainda são. O Harari, esse professor israelense autor do Best Seller Homo Deus, resolveu afirmar, em 2015, que “Na essência, nós humanos não somos diferentes de ratos, golfinhos ou chimpanzés. Como eles, tampouco temos alma. Como nós, eles também têm consciência e um complexo mundo de sensações e emoções. É claro que todo animal tem traços e talentos exclusivos. Os humanos têm suas aptidões especiais”. E, ainda, o Harari diz que “humanos são algoritmos que produzem não copos de chá, e sim cópias deles mesmos (como uma máquina de venda automática que, se tiver os botões pressionados na ordem correta, produz outra máquina do mesmo tipo)”. Então, nesse debate sobre a escravidão no Brasil, temos a ideia do objeto como coisa e a ideia do objeto como animal não humano. E, ainda, novos pensadores como o Harari introduzem, no século XXI, a ideia do homem como um animal no qual a consciência de si é uma ilusão. Fico pensando, Zeferina, se não daria para falarmos em dois tipos de loucura, a loucura dos pobres loucos trancados em suas casas ou em clínicas psiquiátricas, e a loucura de Hitler, Stalin, Pinochet e outros tantos representantes do mito do tirano. E fico pensando se entremeado a esses pensamentos importantes e falados pelos governantes, tais como os das grandes universidades federais brasileiras, não existem ideias e imaginações que agregam loucuras, pensamentos que em vez de diminuir aumentam o sofrimento das populações subordinadas aos diferentes governos. As diferentes loucuras são, ou viriam a ser no final de um caminho de dor, uma espécie de coisificação do ser humano?

                                                        Não creio que possa ser um risco falar para uma tataravó e em casa. Exceto as velhas doentes e muito más, verdadeiras aberrações, as avós jamais verão seus netos ou netas como “coisas”, mesmo se eles forem escravos ou mulheres desimportantes. Os homens já não, né, Zê? Os avôs podem ser muito malvados, podem ser cruéis com seus próprios filhos. Mas o meu avô, o Gentil, foi um cara legal, do jeito da sua época. Ele cuidava e brincava com os netos.

                                                         Há uma tristeza grande espalhada no Brasil, agora, em março de 2017, porque o número de pessoas sabedoras da condição terminal dos espaços de dignidade em sociedade só aumenta e nesse aumento, no modo como esse aumento de lucidez se dá, fica plantado um rastro de desistência de ilusões. Ouvimos falar, antigamente, de sofrimentos enormes em cenários de guerras e tiranias, aqui no Brasil e no mundo, sofremos doenças, perdas, mortes, cada um de nós, uns muito mais do que outros, mas viemos vivendo desde 1950, mais ou menos, dentro de uma expectativa generalizada de que o mundo humano conseguisse traçar um caminho de redução das guerras, das ditaduras, das doenças, das misérias dos lugares mais violentos e sofridos. Isso acabou. Essa expectativa positiva deixou de existir e mergulhamos vertiginosamente em uma normalidade decadente e derrotada, dentro da qual o melhor lugar é um exílio nosso, nos afastando do espaço político e uma imersão em acontecimentos de “ilha deserta”: um recolhimento ao lar, ao centro religioso ou de pesquisa, ao grupo cultural, à tribo, à organização privada. Ou então um nomadismo permanente, viagens, visitas a festas, shows, malas e cidades novas. Alguns se preparam para tornarem-se invasões dos lugares onde antes era o espaço público, invasões rebeldes e expostos à violência de agentes policiais de filmes de efeitos especiais, invasores do bem visando o erguimento de um espaço contra hegemônico.

                                                     Ando pensando sobre o que são os algoritmos, Táta. Eles estão por todos os lugares e nós estamos até com medo deles, para falar a verdade. Escrevi o que segue, pensando em um domingo, enquanto lavava lençóis. Vou mostrar só pra ti, porque temo que me chamem de louca, ou arrogante. Sempre me chamam assim, faz décadas. Chamam-me assim apenas porque eu só me sinto bem pensando. É talvez um vício, uma obsessão. Eu olho o mundo como se em fala ou escrita alguma estivesse presente uma verdade que pudesse me proteger. Sinto como se minha vida, minha proteção, dependesse do meu pensamento pessoal:

                                                    “Conceito é uma palavra que tem a ver com ‘conceber’. A mãe concebe. Assim, a palavra conceito está ligada a ideia de modo subjetivo de ver o mundo. Um modo de amar. É uma palavra ligada à veracidade do olhar subjetivo do humano, um olhar relacional, que pode se colocar em diálogo com o outro, o conceito diferente. Algoritmo é “uma sequência finita de regras, raciocínios ou operações que, aplicada a um número finito de dados, permite solucionar classes semelhantes de problemas”. Penso que o algoritmo é um instrumento para a reprodução de um dado, ele é um cálculo sempre fabricado por algum ser humano ou máquina. O algoritmo pode entrar em ação em um determinado banco de dados, ele se relaciona com um contexto formal e não com uma subjetividade complexa e humana de tipo relacional. O algoritmo não tem amor em sua composição, não como potência incalculável, pode até ter “amor” como palavra representando um cálculo de tipos estritos de acontecimentos formais. Os algoritmos podem movimentar multidões de humanos reunidos em maiores efeitos na medida em que esses humanos estiverem afetados por uma disposição de alienação tal que em vez de um “eu” complexo e incalculável, relacional, de cada um deles, eles disponham, para agir no mundo, de um conjunto de modelos comportamentais estritos, calculáveis e reprodutíveis em conexões limitadas de estéticas e éticas de grupo. O grupo com regras claras e limitadas é muito mais vulnerável à invasão de algoritmos que podem até transforma-lo em “franquias”. A franquia é um modelo de mercadoria composta por um conjunto limitado, ordenado e rígido de algoritmos. Os grupos invadidos por algoritmos são ferozes defensores da inutilidade do “eu” solitário e realizam contra os indivíduos isolados intenso combate. Os produtores e inventores de algoritmos são indivíduos isolados, mas os grupos invadidos não tem capacidade de identificar esses indivíduos criadores como diferenciados do grupo. Os conceitos e os algoritmos só se relacionam para se enfrentarem e contaminarem uns aos outros. Eles são construções distintas e incompatíveis porque o conceito carrega conteúdos não mesuráveis, subjetivos. O algoritmo contaminado pelo afeto incalculável desaparece magicamente: ele ou se deteriora, perdendo seu objeto, ou sai do sujeito ou objeto, evapora. O conceito contaminado carrega o algoritmo contaminante em uma atuação subsidiária, de um modo “mestiço” e com pequena mobilidade. Os grandes conceitos, ou grandes tessituras conceituais invadidas por algoritmos tornam-se muito mais pesados do que já eram antes, mas tem enormes possibilidades de acoplarem em torno ou dentro de mitos.  O mito é um registro permanente e imutável de um determinado tipo de acontecimento na história dos humanos. É uma memória coletiva resistente, consistente. Ele é o conteúdo de um monumento, a energia de um objeto grande e pesado. Ele pode ser empurrado por um conjunto de conceitos em direção a um determinado lugar, mas os conceitos novos ou se dissolvem dentro dos que já estavam lá no mito ou evaporam e se desligam do mito depois de realizado um determinado objetivo. E o mito segue navegando nas memórias coletivas humanas. Um mito só perde a sua visibilidade de superfície se outro mito disputar o mesmo espaço com ele e retira-lo de sua função social. E o objeto que carrega o mito pode ser invadido por algoritmos e, por meio da invasão lógica, ser conduzido a um determinado lugar. Dependendo do conjunto de operações de algoritmos, o objeto que carrega o mito poderá ser tão tensionado a ponto de o mito retirar-se do objeto, ou o objeto ser destruído como lugar à superfície dos acontecimentos humanos”.

                                                   Esse texto sobre algoritmos e conceitos acabou parecendo um roteiro-coreografia de um balé de um jazz misturado com dança de rua. Estou também pensando no Lula, no mito que ele carrega e que esteve dentro do corpo de Getúlio Vargas e, antes dele, no corpo de outros salvadores surgidos no Brasil e no mundo. Os lençóis ficaram prontos. Vou pendurá-los e fazer uma comida. Os cachorros estão dormindo, o marido está no andar de cima do sobrado.


versão um. foto: eu, irmão e avô trepados em árvore, aproximadamente entre 1964 a 67, Porto Alegre.



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