carta 5.1 - Estado forte, ingenuidades democráticas e cerveja artesanal

                                          

                                               É carnaval, Zeferina, e não estou com vontade de me explicar direito para os que leem as cartas. Escrevo apontamentos acolherados, aqui, sobre a necessidade que os seres humanos humilhados têm de alguém que queira erguer um estado forte, um estado nacional, uma cidade forte, governos fortes e voltados para a proteção pública dos mais frágeis.  Estou lendo o Yuval Noah Harari, fazendo anotações indignadas nas beiradas das páginas dele. O guri é um mágico do tarô, um maravilhoso ilusionista. Ela fala de toda a história da humanidade, nos últimos vinte mil anos, e chama de “cooperação” aquilo que o revolucionário russo Vladimir Ilyich Ulyanov, o tal Lenin iria chamar de “centralismo democrático”, no início do século vinte. Não lembro de nada que eu tenha lido diretamente em Lenin, mas devo ter lido pilhas de textos de revistinhas, polígrafos e jornais pequenos da esquerda brasileira sobre esse assunto. Pois é, uma meleca mesmo, o pessoal da nova tecnologia descobriu que pode usar a fórmula que bem quiser, combinada com outras tantas inventadas em acontecimentos históricos muito distintos, que se isso puder depois ser reproduzido em ratos de laboratórios e, mais tarde, em humanos é ciência e admite qualquer engendramento de linguagem. E a filosofia e os demais ramos das ciências sociais que vão plantar batatas, mesmo, porque já temos uma moda muito recente e forte de que não se precise ensinar essas coisas abstratas e transcendentes nas escolas dos adolescentes, essas coisas que não podem ser reproduzidas e testadas em laboratório, esses assuntos de Sócrates, Platão, Kant, Schopenhauer, Foucault e Deleuze. Bobagens não científicas já que não cabem em ratos brancos dentro de jaulas de tortura ou tubos de ensaio. 
                                   Pois o guri, o Harari, diz o seguinte: “Quase invariavelmente a vitória vai para aqueles que cooperam melhor – não só nas lutas entre Homo Sapiens e outros animais, como também em conflitos entre diferentes grupos humanos (óbvio que o guri jamais vai usar a expressão “luta de classes”, ele já a desmereceu no início do livro). Assim, Roma conquistou a Grécia não porque os romanos tivessem cérebros maiores ou técnicas mais efetivas na fabricação de ferramentas, e sim porque eram capazes de cooperar (grifo meu) mais eficazmente. Em meio à história, exércitos disciplinados derrotaram com facilidade hordas desorganizadas, e elites unificadas dominaram massas desordenadas (grifo meu)”. Isso o guri botou na página 139.  
                              Essas hordas desorganizadas, aqui no meio do meu carnaval, parecem ser o pessoal do PT e dos outros partidos de esquerda, aqui pra nós. E ele segue falando que as revoluções “comumente são feitas por pequenas redes de agitadores, e não pelas massas”. E ele segue dizendo que os comunistas assumiram o controle do “vasto Império Russo porque se organizaram bem”.  Fica subentendido que os comunistas perderam a vez porque são menos eficazes do que o capital cognitivo, o exército disciplinado do nosso momento, tão bonitinho e emocionante em sua feição Obama e família, tão revoltado agora com sua incontinência Trump.
                                            Foi aí que eu fui ver uma parte do meu escrito chamado Tempos e Tutelas – contribuição à História do Direito e da Justiça do Trabalho no Brasil, apresentado em 1997, na universidade PUCRS. Aí, bom, Táta, é carnaval e eu só estou fazendo apontamentos antes de uma cerveja bem gelada.  Sim, estou super cuidando da bebida. Beber bem pouco, só hoje um pouco mais, aquela cerveja que nunca mais tomei. Para comemorar a grande festa das ruas e seus alegres gritos de foratemer. Então, escrevi sobre a lei do ventre livre, veja só, você, Zeferina, não é nascida ingênua? Fantástica essa palavrinha: não somos os mestiços todos nascidos ingênuos? Escrevi:

“A historiografia mais recente tem revalorizado a Lei do ventre-livre, a partir da apreciação das ações de liberdade que ela regula. Antigamente esta lei era considerada, pela historiografia, como ineficaz e até mesmo sem validade. Em nossa dissertação descobrimos um novo aspecto desta lei. Este aspecto está no seu próprio nome: o ventre-livre. A conquista da liberdade, por meio da alforria, vinha sendo obtida desde remotos tempos do Brasil colônia. Entre 1850 e 1871, esse fluxo das alforrias vai se somar a outros dois fluxos: as políticas derivadas do abolicionismo e a política da substituição dos negros escravos pelos imigrantes brancos europeus. O abolicionismo tem sua origem difusa, mas poderíamos fixar o final do século XVIII e início do XIX, como um tempo no qual o liberalismo se propaga, no Brasil. Entre 1850 e 1871, o abolicionismo vive um momento complexo. A partir de 1871 ele vai encontrar uma certa simplicidade, diante da solução econômica oriunda da imigração (italiana e alemã). A Abolição, neste enquadramento, passa a ser uma lei perversa imposta principalmente para desorganizar as possibilidades de ação dos negros e para joga-los para fora do mercado de trabalho. Além disso, a Abolição permite que os imigrantes iniciem sua vida de contratos a partir da ausência das conquistas dos negros, a partir dali apagadas nos cenários das linguagens jurídicas e políticas. Os negros adquirem apenas o direito de ir embora, enquanto os brancos pobres são tratados quase como escravos, em certa medida de suas vidas, embora possuidores da proteção da condição de trabalhador livre e, portanto, da vantagem imensa de se manterem agregados em famílias e clãs de suas origens europeias, com manutenção de linguagem e identidade étnica. Até 1871, ainda se discutia como incorporar os negros, no mercado de trabalho, como homens livres. [Era um enorme problema, pensa bem, como tu chega para um sujeito e diz: “tá, agora tu não é mais meu”; e isso para milhões de homens e mulheres negros.] A lei do ventre livre fez uma significativa diferença entre alforriados e ingênuos.  A ideia era de que os ingênuos deveriam nascer livres e como tal serem tratados desde o nascimento. [Bom, mas como é que uma barriga pode ser livre em um corpo escravo?] Os deputados daquele tempo pensavam que os libertos não poderiam jamais apagar as marcas de terem sido escravos um dia. [A vida toda, para muitos] A ideia era construir a cidadania integral dos negros, a partir de uma geração, a que nasce de ventre livre. A lei do ventre livre não teve eficácia porque se confundiu com o abolicionismo e as tratativas para a aplicação da fórmula da Lei da Abolição. Nessa fórmula estava inscrita a imigração de trabalhadores livres europeus”.

                                          Daí vem a frase que eu queria trazer aqui, Zeferina, nesta carta: “Ela não poderia ser aplicada [lei do ventre livre] se não houvesse um Estado forte, que obrigasse as relações individuais e privadas a seguirem a lei. Um Estado que atuasse no sentido da proteção do menor, descendente de ventre livre”.
                                      Não encontrei fonte alguma que pudesse me informar se você era ingênua, alforriada, ou se sua condição jurídica nem era levada em conta em seu ambiente familiar, quando você era uma menina pequena, Táta querida.  Porque, afinal de contas, boa parte desse enredo não chegava a muita gente pobre e plantada em lugares distantes da Corte e depois da nascida república velha. Penso que te pergunto se você era ingênua e você ri, às gaitadas, e pensa: “ingênuos são vocês aí, guria”! Depois volto neste maravilhoso assunto das ingenuidades de múltiplos tipos dos brasileiros, mas agora eu falava sobre o Estado forte, sobre os exércitos disciplinados das “elites unificadas” de quem o Harari fala tão bem. Estes sabedores da tal cooperação em larga escala. Estou pensando na tal globalização. 
                                      Então, em outro ponto do meu texto de 1997 estava escrito que a capacidade de contrato livre dos trabalhadores brasileiros começa a ser ampliada a partir da lei nº62 de 1935, no processo de erguimento da ideia da “Justiça do Trabalho”, durante – justamente – a ditadura do Getúlio Vargas chamada de “Estado Novo”. Essa lei chamava-se “lei da despedida injusta”, e foi ela, e sua experimentação nos formatos embrionários de juntas de conciliação e julgamento e no formato experimental do Conselho Nacional do Trabalho, ainda vinculado ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, essa lei que fez deslanchar uma profusão de jurisprudências garantindo diversas interpretações à estabilidade no emprego. Analisando decisões dos conselhos regionais do trabalho da época e decisões do CNT acabei afirmando que o pico da capacidade de contrato dos trabalhadores livres foi em 1941, depois disso as negociações em prol da democracia e de pactos para viabiliza-la produziram o que seria a futura Consolidação das Leis do Trabalho, a primeira versão em 1943, quando a estabilidade já aparece contida pela hipótese de uma indenização em valores monetários. Antes disso havia até interpretações sobre o lugar do trabalho, individualmente considerado, tornar-se posse vitalícia do trabalhador após dez anos ininterruptos trabalhados no mesmo local. É preciso entender que quando surgir a lei nº62 de 1935 um número significativo de trabalhadores tinham dez anos de trabalho na mesma empresa, esse grupo adquiriu essa estabilidade em debate durante o período autoritário de Vargas.
                                    Vamos dar uma olhada na Wikipédia, sobre o Getúlio Vargas: “Foi presidente do Brasil em dois períodos. O primeiro período foi de 15 anos ininterruptos, de 1930 até 1945, e dividiu-se em 3 fases: de 1930 a 1934, como chefe do "Governo Provisório"; de 1934 até 1937 como presidente da república do Governo Constitucional, tendo sido eleito presidente da república pela Assembleia Nacional Constituinte de 1934; e, de 1937 a 1945, como presidente-ditador, durante o Estado Novo implantado após um golpe de estado. No segundo período, em que foi eleito por voto direto, Getúlio governou o Brasil como presidente da república, por 3 anos e meio: de 31 de janeiro de 1951 até 24 de agosto de 1954, quando se suicidou”.
                                    Então, foi no tal “governo provisório” que produziram a invenção da lei 62 de 35, depois foi no período autoritário do tal “presidente-ditador” que começaram as experiências com essa lei nos conselhos estaduais e nacional da justiça do trabalho em formação, e foi quando essa ditadura é enfrentada para ser transformada em um pacto democrático que essa lei começa a sofrer restrições, em sua interpretação jurisprudencial (ainda que fosse em caráter experimental, já que a tal justiça do trabalho era uma elaboração embrionária e dentro do executivo, mas reunindo em seu formato juristas de notório saber, que viriam a organizar a primeira CLT de 1943). Entendeu, Zeferina? Os autoritários do período da ditadura do Estado Novo queriam defender a estabilidade no emprego para os trabalhadores brasileiros. Eles sonhavam em construir, por meio de um “exército disciplinado de uma elite unificada” uma nova dignidade para o povo brasileiro, para retira-lo tanto da condição de alforriados, quanto da condição de ingênuos e abandonar, com essa cooperação nacional organizada, os registros oriundos da escravidão negra.
                          Hoje o Yuval Noah Harari pode defender calmamente essa ideia, da gerência centralizada de um modo disciplinador em larga escala, mas agora referindo-se aos grandes gerentes do grande capital mundial. Eles podem, Hollywood deixa, respeita e representa, como elite unificada que é.  Nós temos que ficar aqui, atordoados, hordas desorganizadas esperando uma democracia qualquer, imprecisa, indefinida. Nós, ingênuos.
                                      Mas é carnaval, Táta, e eu vou cair na cerveja artesanal: pouca, cara e boa.


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