A prostituta - Escravismo e Prostituição no Brasil da Era Lula - parte 11

Dizer que a prostituição é um modo deplorável de sobrevivência de um ser humano é tão óbvio quanto dizer que as prostitutas têm o direito de serem respeitadas em uma sociedade na qual todos os indivíduos são desrespeitados pela violência da guerra e do modo predador e antropofágico de vida engendrado na organização social.

 A regra é, portanto, todos os desrespeitados têm o direito de serem tratados como iguais em direitos. Claro, perfeito. O problema é pensar sobre o que significa o verbo "prostituir-se", como aquele que se prostitui vive em meio à sociabilidade e que poder ele tem. Isto é, não estamos estudando o que o seviciado pode fazer de sua vida, desde o momento em que se submete ou é submetido pela primeira vez a usar seu corpo como ferramenta de trabalho. Entre a criança torturada e o adulto que pode até formar patrimônio e escolher parceiros que lhe interessem e agradem, dentro de uma prática de compra e venda de seu corpo, há uma série com múltiplas variações. O fator que move a série, no entanto, é, precisamente, fazer do corpo um instrumento a serviço do usuário, independente do desejo do proprietário deste corpo. Há, na série deste acontecimento, uma incapacidade do dono do corpo em controlar a quantidade e a intensidade de violência a que é submetido, incapacidade esta diretamente proporcional ao tamanho e ao poder social que este corpo prostituído tem. Há sevícias, portanto, na origem e no fluxo deste acontecimento. Então, estudamos o que emana do seviciado como padrão de comportamento pregnante e difuso. 

Refletimos agora sobre a expansão e o predomínio de atitudes e desejos oriundos de um “ponto atrator estranho” (isso é física, e é um lugar no espaço onde o acontecimento inicia e sustenta seu percurso, o lugar onde, por exemplo, se forma e sustenta o furacão), ponto este no qual está a emersão à superfície da história humana, a cada momento, de um comportamento individual que é nomeado como prostituição.

Para entender o sujeito prostituído, é preciso fotografar suas várias formas camaleônicas, mutantes e construir narrativas sobre semelhanças e diferenças entre essas múltiplas imagens. Agora, vamos começar pelo mais abstrato, pelo que vemos com nossos olhos de águia, de lince, no lugar do predador. Ao olhar nessa escala, estaremos tanto no lugar do usuário que toma para si o indivíduo/objeto prostituído, quanto no lugar do que se prostitui e que acolhe o usuário como presa de seus objetivos de empoderamento ou de aquisição de bens materiais ou simbólicos. Se fôssemos ocupar a escala da presa não veríamos o predador como um objeto e sim como um ícone, um fantasma. E o predador é o pedófilo, o perverso, o solitário, o deprimido o viciado, mas também é a prostituta, o profissional do sexo, o que vende uma cena erótica fabricada, o que se vende em um teatro de externalidades falsificadas. O que alinhava a série é, então, a oferta de um prazer/poder unilateralmente recebido pelo comprador e vendido pelo sujeito que se prostitui, sem que haja uma reciprocidade como motor dos efeitos. O que move o efeito do ato da prostituição é a relação de compra e venda do corpo concebido como ferramenta deste efeito. E a prostituição não se dá necessariamente pelo funcionamento de órgãos sexuais estrito senso, genitálias, como todos nós sabemos. Ela pode se realizar por uma oferta de companhia, ou mesmo pela produção de um bem que não dependa do gosto, da opinião ou do desejo do sujeito que se prostitui. Poderíamos afirmar, a partir desse olhar, que o próprio trabalho subordinado e subalterno acaba sendo um ato de prostituição, e que a subordinação condicionada a um valor, um preço, envolve um princípio violento, explícito e integralizado nas sevícias cometidas contra o sujeito aprisionado.

A prostituição como lógica

A prostituta padece de uma “ausência de si”, pois manifesta um “eu” simplificado, reduzido à vontade do poder que a mantém cativa, capturada, ou comprometida. Uma vez ela foi aprisionada e destituída de direitos de sobrevivência, talvez na infância, provavelmente. Ou, ainda, uma primeira vez ela foi destituída do direito a cuidados, proteção e amor, ganhando a identidade de"personalidade indesejada" e dali em diante a sua sobrevivência passou a refletir o desejo do estuprador, do seu primeiro torturador, primeiro de uma série a partir daí sem fim. O desejo da prostituta se realiza em ela ser apenas objeto de desejo, e ela  muda de imagem ou de produto na medida em que seu usuário assim também o faz. A prostituição é um circuito que inicia no estupro e se mantém imune e circulante, estável, em organizações de modos diversos de poder sobre o corpo, os corpos humanos em sociedade.

Todos os seres humanos carregam múltiplos instintos e intuições, culturas díspares dentro de um mesmo indivíduo, linhagens diversas de caráter e personalidades. É sobre isso que a Astrologia se propõe a sistematizar em sofisticados ou simplórios mapas astrais e signos do zodíaco. É sobre as perturbações e distúrbios que emergem a partir desses sistemas que a psicologia e a psiquiatria constroem seus discursos competentes, mas muitas vezes ineficientes para qualquer tipo de “cura”, de retomada de fluxos mais “limpos”, nos quais o sujeito escolhe os modos de manifestação de seus desejos. Mas a prostituta é algo distinto do “louco” do “transtornado”, ela carrega diferentes linhagens de personalidades em movimentos cacofônicos também, porém integrados em diversos objetivos de obediência às ordens e aos desejos emanados do sujeito usuário. A prostituta é uma exímia malabarista manipulando significados éticos diferentes em relação ao desejo, ao prazer, ao poder, ao bem, ao mal, ao justo, ao injusto, ao belo, ao bom, à dor.

A prostituta é a metódica presença de um “ninguém”, de um “alguém” sumido no interior de seu corpo rigorosamente ordenado. Seria como se ela fosse uma estrangeira abrigada dentro de si, escondida embaixo de uma personagem que ela faz emergir à superfície do modo de produção da sociabilidade, superfície ordenada como espaço de estupro consentido e legal. Nesse sentido, a prostituta é o prolongamento de seu estuprador, ela é a imagem do indivíduo que manda refletida no sujeito que obedece.

A maior recompensa da prostituta é a solidão, onde ela descansa de ser reflexo e acontece como uma velha criança abandonada, manipulando brinquedos mudos e antigos, perdidos com ela em um fluxo de tempo sem memória.

Isso está um pouco em todos nós, mas se aglutina com mais eficácia na figura dos administradores menores, dos gerentes de distrito, dos pequenos comandantes de sistemas produtivos em um mundo autofágico e adorador da violência da guerra e do consumo predatório.

                                                            (versão  um, dez.2013, versão dois, ago.14 - começando algum desenho)