Somos todos extraterrestres sem linguagem comum



 Você entende quando eu falo em "desmanchamento da sociabilidade"? As palavras não são só “cadeira”, “mesa”, “comida”. As palavras abrigam imagens que foram acontecendo na história da humanidade. As frases são entendidas por quem ouve quando elas carregam imagens que são comuns a todos que estão falando e ouvindo. Portanto, para que a linguagem exista e seja entendida é preciso que a realidade, o real, aconteça mais ou menos da mesma maneira para quem fala e ouve, para o grupo, comunidade, sociedade que fala uma mesma linguagem.
 Sociabilidade é a capacidade que um agrupamento, comunidade ou sociedade humana tem de possuir uma linguagem comum, construída por meio de uma história comum e narrativas inteligíveis por todos sobre essa história comum, ainda que divergentes. Por exemplo: a sociabilidade no Brasil colônia foi definida pelos portugueses machos adultos que aqui aportaram. Os indígenas foram perseguidos e aprisionados, os negros foram trazidos da África em algum momento subsequente (não lembro quando foi o primeiro navio negreiro), as mulheres brancas obedeciam às lógicas e formas de comportamento definidas pelos machos livres e adultos. Não havia uma sociabilidade entre os colonizadores e os negros chamados de "boçais". Eram chamados de boçais os negros recém-chegados na terra Brasil e que não sabiam falar o português e nem sabiam onde tinham vindo parar e porque tinham sido sequestrados, ou ao menos por quem, já que o sequestro para escravização era comum na África e as tribos o praticavam habitualmente. Era como se fossem ETs, os negros carregados pra cá e o “ser extraterrestre” só desaparecia quando se tornavam “escravos no Brasil”.  E a sociabilidade dos indígenas não interessava aos colonizadores, já que eles “sabiam de si” e tinham uma sociabilidade anterior aos portugueses. Eles eram, por isso, muito mais difíceis de escravizar. Porque tinham linguagem própria alicerçada nesse território onde viviam e porque tinham uma sociabilidade nativa. Então uma nova sociabilidade organizou o espaço público e os espaços privados. Cabia aos negros recém-chegados aprender a entendê-la e viver nela. Aí eles se tornavam os negros “ladinos”, aqueles que sabiam falar e entender as regras gerais e os modos de adaptação possíveis.
Agora vivemos em um mundo onde quase todos os humanos entendem o que está acontecendo a todos, porque há uma produção de imagens sobre o mundo todo para todo o mundo e há traduções das linguagens locais, narrativas gerais sobre cada lugar particular. Então, isso seria uma espécie de sociabilidade mundial. Muitos teóricos e pensadores chamam essa sociabilidade de “pós-moderna” porque ela se realiza principalmente a partir de modos de organização social que desorganizam estabilidades formais e fazem surgir mutações, hibridismos, nomadismos contínuos, mudanças sobre mudanças. Essa sociabilidade pós-moderna também é pensada pelos mais sábios do mundo como um mito antigo e bíblico que é a torre de babel, onde cada pequeno grupo fala uma linguagem e ninguém se entende.  Alimentam, como combustível, essa sociabilidade atual e global efeitos gerais acionados por algo semelhante a “categorias” (porque são entendidos como o próprio real, o lugar ontológico, aquilo que é independente do desejo humano) que são: a velocidade máxima, o controle máximo, a visibilidade máxima, a potência máxima, entre outros que se tornam menos importantes. Assim, os acontecimentos que antes formavam a história humana e, a partir da história, formavam linguagem dentro de uma sociabilidade passaram a ser conduzidos ao esquecimento e passaram a não ter valor simbólico na formação da linguagem.
 Vivemos em uma sociedade de múltiplos e contínuos desmanchamentos vorazes e visíveis a olho nu. Por isso a sociabilidade geral é corrompida por irrupções de desordens que brotam em camadas soterradas do inconsciente coletivo e dos subgrupos culturais. É uma espécie de enlouquecimento generalizado. Na falta de consistência das formas de agir e viver, na mudança permanente de imagens e seus significados, reside um derretimento da linguagem comum. Um sujeito fala uma frase e o outro sujeito entende de um modo diferente do que o primeiro entendeu quando estava falando. Na ausência de linguagem comum, ficamos todos jogados à condição do negro escravo boçal, aquele recém-chegado da África em um navio negreiro. Somos extraterrestres num país onde os donos, os que mandam, os que são terrestres, são o Neymar, a Gisele, o Brad Pitt e a Angelina Jolie, e os demais seres de máxima potência e visibilidade. Eles são imagens entendidas na linguagem como perfeitas e verdadeiras, sendo aquilo que se distancia deles, na condição de valor, acontecimentos imperfeitos e menos verdadeiros. Até chegarmos na máxima mentira e ausência de significado descritível que são os menos potentes seres humanos.  Todos esses seres de potência e visibilidade integram os significados da linguagem e da sociabilidade global e pós-moderna, ficando o real, real, ele mesmo, jogado em uma sopa confusa e mutante.
Então, não se trata mais de “problemas dos negros”, “pautas das mulheres”, “a questão da pobreza”, “assuntos dos gays”. Trata-se de negros, brancos e amarelos que se utilizam da ideia “problemas dos negros” para falarem outras coisas; mulheres e homens que se utilizam da ideia “pauta das mulheres” para falarem outras coisas; negros, brancos, amarelos, homens e mulheres que se utilizam da ideia “assuntos dos gays” para criarem alguma condição similar ao “negro ladino” do tempo da escravidão colonial no Brasil, ou seja, terem algum poder sobre a produção de linguagem e, portanto, de ordenamento social.  
Então, o que os pensadores estão preocupados não é só um problema de “política equivocada” ou de “má-fé política” de grupos que conseguem produzir linguagem e sociabilidade. Os pensadores estão preocupados com a falta de consistência das linguagens e sociabilidade produzidas. Essas sociabilidades produzidas são voláteis e não se fixam em ordenamentos construtores de história. É quase como se todo mundo estivesse desejando e esperando o surgimento de uma grande ditadura mundial que obrigasse um “pão” a ser o mesmo pão para todos os habitantes do Planeta, um ser humano de tipo “x” ser o mesmo tipo humano em todos os lugares do mundo, um ser humano de tipo “y” ser o mesmo tipo humano em todos os cantos e ilhas. O que é a verdade com a máxima potência, velocidade e visibilidade é que não suportamos mais ver um jovem islâmico querer ser um estuprador e suicida militante no mesmo espaço-tempo-memória em que um americano quer ser um levantador de peso transformado num “Hulk” e operado para virar uma fêmea da espécie humana e se pensando uma lésbica que tem corpo de homem e gosta de transar com mulheres.
Isso é, o que os sábios estão vendo é um problema de corrosão geral da linguagem. A linguagem precisa de memória coletiva organizada. Sem essa memória o sujeito tende a migrar para aglutinações de bandos inaugurais, como os emos, os sertanejos universitários, os pagodeiros, os diversos formatos de religiões fragmentadas, os novos formatos de religiões tradicionais, etc. Bandos que se formam sobre uma perda de memória generalizada. É um grande equívoco chamar qualquer desses acontecimentos voláteis de fascismo. É muito mais profundo o colapso do que apenas uma psicose de um número limitado de memórias aglutinadas a partir de espaço-temporalidades diferentes, mas no campo de uma utopia moderna, como o fascismo. Luis Dumont analisa o caso alemão e explica como o povo alemão inteiro tornou-se nazista em um determinado momento. Mas é uma fratura específica na Alemanha, outra específica na Espanha, outra em Portugal e etc, mas todas de inconscientes primevos misturados com uma mesma utopia moderna: a que propõe a sociedade não capitalista de livre mercado, mas totalitária e industrial. Agora temos uma crise que cola memórias muito arcaicas com memórias pós-revolução da informática, memórias de quem não vê a vida real, apenas telas. Um real em processo permanente de desmanchamento não pode ser chamado de fascista, pois o fascismo foi um ordenamento rígido.
Pois é... mas penso que em uma conversa estamos realizando linguagem. Estou escrevendo um texto sobre isso e vc está me ajudando a pensar. Vc e outro amigo antigo, que é meio estranho ao senso comum, mas se mantém lúcido sempre. Você e outro e mais outro amigo. Então, todos os lados da conversa são um pedaço de verdade. O juiz é um pedaço da verdade quando realiza o Direito, ele mesmo, a coação do coletivo dentro do ordenamento. E o juiz também é um pedaço da verdade quando ele realiza um poder que é limitado, que é criticado por novas ordens que irão lhe suceder. Assim, o sistema penal enfrenta crises de época e mudança de formato, conforme o surgimento de uma nova civilização. E o ladrão tem razão, o assassino também, porque no início ele não estava lá, no lugar de quem mata. Algo o conduziu ao lugar de quem mata e ele quer se diferenciar desse algo. Quando ele diz "não fui eu", ele está alinhando o seu suposto "si mesmo" ao lugar do ordenamento. Como quem diz: eu morro por um engano, o meu "si mesmo" pertence ao mundo da ordem. E assim ele relega a um "acidente" ou a um "outrem malvado" a condição de desrespeito. Porém, há um pequeno pedaço de verdade em um militante islâmico, um evangélico, um transgênero homem/mulher lésbica em corpo operado, um indígena, um juiz, um assassino.

 Querida pessoa que lê, estar em lugar de absoluta solidão em relação ao restante dos seres humanos, quando se é sábio, pode conferir a você uma paz de espírito grande que vem a ser um capital emocional arquetípico da velhice dos anciãos. O mundo precisa de nós, velhos que não precisam mais de psicanalistas, velhos que entram e uma espécie de "Olimpo" de quem finalmente entende a mais absoluta verdade da civilização que agora desmorona: ou somos bandos submetidos a ordenamentos frágeis e instáveis ou somos indivíduos com identidade única e por isso, tragicamente solitários. Ao entendermos, nós os velhos sábios, assumimos essa solidão dos deuses, esse absoluto estar só na percepção da beleza imensa do mundo. Deveria haver um diploma para velhos que realizam essa libertação da necessidade de um padre, de uma confissão, de um analista, de uma análise excludente, de uma culpa e de uma pena. Estou me sentindo linda e pronta.

Monólogos sobre o nadar



                        Era uma festa de juízes e juízas, com eles distribuídos em várias mesas de modos nada aleatórios. Diretores, assessores, chefes e seus respectivos maridos, esposas, noivos, namorados ou outra opção, inclusive, já que era todo mundo tão colorido, nos últimos tempos, em muitos lugares. Eis que aparece, no palco, um coral de treze pessoas, vestidas como loucas em pose absurda. Aplausos da festa divertida. Naquele cenário, eles eram seis mulheres, vestidas de ícones de moda de época, de um lado, um travesti alto e loiro portando um salto plataforma de trinta centímetros, no meio, e seis homens, vestidos como gaúchos da fronteira sul do Brasil, ou soldados de outra fronteira qualquer, no lado esquerdo de quem vê e direito de quem é. E tudo aconteceu assim: postura de mímicos, parados em estátuas. Luzes de palco. Aplausos protocolares. Os atores tossem e se coçam, atrapalhados, se acomodam, e dizem, de um modo anormal, todos juntos, intercalando solos de pequenas falas de uma, duas pessoas, ou um grupo determinado: “A humanidade viveu dez séculos sem manifestações teatrais, entre o final do Império Romano e o ressurgimento dessas práticas, na Idade Média. Então surgiu um teatro "vinculado ao ofício religioso", onde "o drama litúrgico não se distinguia da liturgia cristã". Procurando inspiração para escrever algo e concorrer a um prêmio, encontrei [essa palavra dita uma vez por uma mulher e outra vez por um homem, que se olham, disputando a autoria] esse recorte em O Texto no Teatro, Sábato Magaldi (2008). Na verdade, não estou preocupada (o) [outro casal diz a palavra, a mulher primeiro e o homem, só o “o”, em disputa de gênero] em escrever bem, [fala o travesti]. Ou em “sentir-me feliz comigo mesmo (a) [um homem e uma mulher] ao escrever o que me vem do fundo da alma [travesti]. Também não quero apenas ganhar um concurso de escritos para ter meu texto publicado em um livro, com direito a dar autógrafos [uma soprano canta esse predicado]. Talvez fosse pífio [diz o travesti, com uma risadinha]. O celular fez um barulhinho agora e já não corro mais para ver quem é, não penso mais que encontrarei alguma solução, para algo, em uma mensagem das redes sociais. Não sou tolo (a) [todos juntos, menos o travesti que duvida, olhando em volta]. Voltando [travesti]. Como conseguiram passar mil anos sem fazer teatro? Bom, isso deve ser na Europa. No Oriente os caras fazem teatro desde sempre, em religião, mesmo que chovam canivetes [as mulheres dizem, olhando para os homens] por lá. Como os descendentes foram fazer [travesti] teatro litúrgico, [travesti] depois de mil anos do fim de uma civilização? [duas mulheres, olhando para o traveco, em desafio] duas folhas, para contos, é o regulamento [homens e mulheres]. Bom, então: eu queria escrever um dos textos mais lindos do mundo [só as mulheres, olhando para o público com ar idílico], ganhar com ele um concurso [os homens], em 2015, no Brasil [traveco, com cara de comportado], ser publicado (a) [um homem e uma mulher, em disputa de gênero] e encantar o mundo, as pessoas que lessem [travesti, irônico]. Tornar-me “ah” [travesti], “a (o) [disputa de gênero] que escreveu aquilo”. Entraria para o seleto clã [travesti] de pessoas que realizaram algo que importa na vida. E se eu fizesse de conta que só estou participando e penso algo disso que já foi dito, em tudo o que já apareceu por aqui, aí, acolá? Tipo: o sucesso é inútil, todas as pessoas são importantes, todas as vidas são belas, e tal e tal? Escrevi essa coisinha bonita só porque me deu autoestima (todos), e mandei e aí está. Obrigada a todas e todos (mulheres). Somos normais? Somos bons (dois homens e duas mulheres)? Normalmente o normal não é bom (travesti, com tédio). Vai acabar o espaço e eu [travesti] dizendo o de sempre, nada. Como os caras conseguiram ficar mil anos sem escrever e fazer teatro? Como fazer para que desse mar de coisas escritas e divulgadas, nas redes, em livros, nas telas de televisão, em filmes, em teatros, atualmente, surja um conjunto de escrituras que faça sentidos para todo o mundo [cada um diz uma palavra até o todo mundo, onde todos dizem juntos]? Porque se muita gente escreve e lê alguma coisinha, não estaremos lendo todos, coisas significativas, juntos. Kkk [todos juntos]. Escrever e ler importaria se fosse um momento de comunicação. Não existe linguagem sem isso, porque a linguagem não é só um alfabeto, ela é uma constelação de fluxos de entendimento. E divulgar uma porcaria dessas que todo mundo lê, e gosta, tipo falar em tons, adiantaria [só mulheres]? Não [só homens]. Vai acabar o espaço e eu [travesti] não disse nada. Calma, veja bem [mulheres, consolando o travesti]: que transcorram mil anos, desse nosso mundo demente, mas alguém, um dia, dará à luz escrituras importantes para todos e entendidas por todo o mundo. Quais escrituras [travesti]? Vai terminar esse tempo e eu preciso dizer alguma coisa que preste [travesti, olhando para o público, desce do cenário do coral, vai para um solo na beira do palco. Olha, tímido e meigo].  O travesti se prepara, tímido, um minuto, dois, e as mulheres falam, juntas: um minuto! De um modo imperativo. O travesti, então, olha para o público e diz, tenso, “nada, nada, nada...”. Depois pensa e decide dizer: Nadar é bom! E espera aprovação, infantil e sorridente. O público ri, de um modo moderado e disperso. O travesti olha, vai se tornando irado de um modo bipolar, se impõe ao público e diz: “vocês vão repetir, até dizerem direito”. E o coral repete, primeiro só as mulheres, depois só os homens e, depois, todo o coral: direito!  Os juízes e as juízas e seus assessores e diretores, maridos, esposas, namorados e outros falam, de um modo desorganizado e estridente: Direito! E foi assim que tudo se realizou, no fim:
            O travesti se põe como um maestro e rege o público, contando “é um, é dois, é três” como um vocalista de banda de rock, e o público enuncia, em uníssono, de um modo retumbante: nadar é bom! Juntos, perfeitos, indefectíveis. Depois o travesti repete a cena, com mais intensidade e mais rapidamente, como maestro apaixonado, e a turma do público levanta, uns, outros não, fazem poses de ópera e dizem, muito rapidamente: Nadar é bom! Nadar é bom! Nadar é bom!
            Todos aplaudem, o coral e o público, gritam “brabo, bravo”, assobiam, e aplaudem muito tempo. O coral se retira e o público se põe a beber e a comer, ruidosamente.  E o travesti ergue então uma placa de The End, escrito com flores do campo, mostrando para quem vê. E eles ganharam o melhor prêmio do mundo. Daquele mundo.