Querida Zeferina - carta 7.1 - Rosa Luxemburgo, Hitchcock e a lavajato



                             Que lei é essa, pensei, Zeferina. Eu que desde a juventude me interesso tão pouco pelos detalhes cotidianos de acontecimentos mensais e anuais. Não sei, mas acho que as mulheres portadoras do que eu prefiro entender como um enigma, já os psicólogos junguianos chamando de “complexo” e o senso comum adotando antigos manuais psiquiátricos para falar em “bipolaridades”, as mulheres cassandras não se interessam pela imagem formiga da realidade que corre como um rio todos os dias. Nós estamos sempre ligadas em algo que algumas chamam de “sextos sentido”, algo que surge como uma contra-intuição, uma percepção sobre o real diferente da de “todo o mundo” e, assim, não ligamos para o que é anunciado nas tevês. Muito menos nos jornais em meio papel, que não lemos e quando líamos a Folha de São Paulo, quando ela era o máximo do cosmopolitismo inteligente brasileiro, pescávamos apenas os grandes artigos de debates filosóficos-políticos, os ensaios psicanalíticos, as críticas de cinema, livros e teatros. As cassandras são viajantes, de olhares no horizonte, perdidas em interioridades milenares, referenciadas em uma tradição de isolamento da bruxa, da herética que ninguém entende. Talvez por isso, Zê, fui discutir com aquele menino de trinta anos o problema dessa confusão das carnes brasileiras e a operação da polícia federal e ele me disse: “mas desde que saiu a lei da transparência, a polícia federal e o ministério público ganharam essa atribuição de poder divulgar as investigações e os segredos de justiça começaram a cair”. Desde quando a grande mídia protege a circulação livre de verdades em debate e em cena? Eu braba, indignada, fiz um discurso que não cabe aqui. O menino respondeu: “Bom, mas aí é o capitalismo. Nós vivemos no capitalismo”. Como que dizendo que ele, o capitalismo, não pode ser denunciado. Fui ver que lei era essa, afinal, e estava lá, assinada pela Dilma, a derrubada sob linchamento da grande mídia: “LEI Nº 12.527, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências”.
                                                 Então isso tudo vem sendo costurado no congresso nacional desde o início dos anos noventa e esse debate não foi levado pela esquerda brasileira com a importância devida, nas escolas, nos partidos, nos sindicatos e movimentos sociais. A tal esquerda ficou divulgando e tornando populares ideias sobre pobres, indígenas, negros, mulheres, gays, todos esses e seus direitos a moradia, identidade e liberdades individuais, ficou divulgando sobre feiuras de uma classe média que não sabe ler livros inteligentes e não falou com a população sobre quem e como são controladas as circulações de informação no Brasil. Eu nem sabia dessa lei, porque quando ouvi falar em lei que obrigava a divulgar salários de servidores públicos e prestações de conta de órgãos públicos já achava tudo uma palhaçada, porque o capitalismo organiza todo o ambiente social por meio, principalmente, do que circula de capital e riquezas em engendramentos de propriedades privadas. Fiquei pensando, então, quando foi que aquela esquerda perdeu a capacidade de criticar a apropriação privada dos mecanismos de produção e circulação de riquezas, entre elas, a informação como um valor oficial dentro de um estado nacional? Tá certo que de 1989 até 1991, quando caem o muro de Berlim e quando a União Soviética foi abduzida por uma inexistência legal e formal retroativa a 1917 como imaginário popular e mundial, o comunismo bom foi tornado clandestino no planeta inteiro. Ser comunista passou a ser uma espécie de registro de sobrenome de antepassados. O cara pertencia à linhagem dos “comunistas”, mas agora ele era um sujeito sensato e ficava discutindo banalidades da gestão do capitalismo como se este fosse a única coisa possível no mundo do ordenamento político, econômico e social dos humanos.
O Harari, do livro Homo Deus, um mágico do Tarô, faz brilhantes malabarismos para passar como verdade absoluta a ideia de que o capitalismo é a própria civilização humana, que ele é uma engrenagem saída das entranhas dos limites humanos de inteligência cognitiva, uma inteligência advinda de uma consciência produzida por, digamos, sentimentos burros. Deriva daí que possivelmente as máquinas pensantes, os computadores, poderiam produzir uma conexão de uma teia de pensamentos lógicos exteriores a qualquer consciência individual ou coletiva humana, teia essa – ou redes sociais virtuais mergulhadas em algoritmos autônomos - capaz de engendrar soluções talvez até de saída desse tal capitalismo humanamente meio burro e arriscado quanto a desequilíbrios ecológicos e demográficos perigosos. Então sairíamos do capitalismo não para um controle social dos modos de produção da vida, um controle social sobre a iniciativa privada que restringisse o privado livre aos direitos de cada um ser o que quiser. Ou seja, uma versão democrática radical da ideia comunista de verdade republicana. Não, segundo o Harari, uma boa parte dos que adoram computadores e algoritmos estaria pensando em sair do capitalismo em direção ao fim da humanidade sapiens, enquanto adentraríamos em um planeta hegemonizado pelo pensamento sem consciência individual. No meio do livro, o Harari passa pelo comunismo tratando-o como uma loucura idêntica ao nazismo. Isso em meia dúzia de linhas, sem grandes explicações.
                                               Ainda sem saber da tal lei da transparência da Dilma, e de que essa lei era tramada desde o fim da URSS e a proibição mundial de qualquer validade e verdade humana dentro da palavra “comunismo”, que havia sido transformada em um sobrenome senil, achei Rosa Luxemburgo na estante da casa da minha mãe, sua bisneta, Zeferina, a filha da Nair, minha vó. No livro, sobre o problema da reprodução (simples e ampliada) do capital, um capítulo com o título “A Reprodução do Capital e seu meio ambiente”. Eu, triste por causa do ataque da polícia federal aos milhares de frigoríficos brasileiros, ação política que, por óbvio, dava pra ver conduziria os menores e mais frágeis a medos e prováveis perdas econômicas, e que uns caras da tal esquerda diziam que iria falir a indústria de carnes processadas e conduzir o Brasil a exportador de carne “in natura”; eu desanimada com o poder dessa polícia federal de ser governo nacional a partir de uma operação sua, copiei trechos da Rosa, para me acalmar:  ela escreveu que “ não conseguiria expor com suficiente clareza o processo global da produção capitalista em seu aspecto concreto, nem seus limites históricos objetivos” e que ela estava a tentar “formular com toda a exatidão científica esse problema”, isso em dezembro de 1912, quando nem em sonho delirante se poderia imaginar um planeta inundado pelos computadores e redes sociais virtuais. A Rosa escreveu um bobagem, a meu ver contra-intuitivo e feminista, a ideia de que “numa tribo agrária comunista primitiva, a reprodução e todo o plano da vida econômica correrão a cargo do conjunto total dos que trabalham e de seus órgãos democráticos”. A palavra “democráticos” da Rosa entrando em contradição com o texto posterior da Simone de Beauvoir, a feminista falando na odiosa e escravizada condição de coisa da mulher desde essa sociedade tão elogiada pela Rosa. A esquerda da Simone rejeitando a validade do trabalho doméstico como um lugar político, uma esquerda já abduzida pela ideia de valor no campo da produção de riquezas postas em mercadorias com valores calculados com “exatidão científica”, substituindo uma esquerda tão ingênua, a da Rosa, crente na veracidade absoluta do cálculo matemático, esse dos algoritmos do Harari, cálculo aparentemente exterior à produção consciente – e humana – de verdades circulantes em múltiplos níveis e escalas do real.
Lembrei, então, do Paul Virilio, no livro A Máquina de Visão, onde ele diz que o real só acontece como devir apreensível pela consciência quando ele é visto pelo olho humano. Mesmo que esse devir do real, digo eu, não seja apreensível como uma totalidade, essa totalidade não sendo apreensível nem mesmo pelo somatório de todos os olhares humanos, porque os olhares se comunicam entre si por meio de subjetividades no entendimento. Então achei neste livro essa frase impressionante, dado o que os brasileiros estão passando com o furacão chamado de “lavajato”: “ ‘Ao contrário do cinema’, dizia Hitchcock, ‘na televisão não há tempo para o suspense, nela só pode existir a surpresa.’ Esta é a própria lógica paradoxal do videograma. Uma lógica que privilegia o acidental, a surpresa, em detrimento da substância durável da mensagem, como era o caso na era desta lógica dialética do fotograma, que valorizava de uma só vez a extensividade da duração e a ampliação da extensão das representações”. Página 94, para quem lê, Zeferina.
Fico pensando, Zeferina, como essa esquerda que se deixou humilhar a ponto de perder o direito a falar em comunismo como um sonho esperançoso, um comunismo desejável, amistoso e sinônimo da palavra utopia, conseguiu deixar passar no Brasil todo esse processo de legislação sobre o acesso a informações, desde 1991, sem questionar a tremenda inverdade e obscuridade no modo como os conteúdos televisivos poderiam ser acionados dentro desse gerenciamento aristocrático das mídias grandes. Mais que isso, eu fico pensando agora que a própria ideia de “transparência” é corrompida, mentirosa, pois transparente é o vidro, mas o vidro da janela deixa passar o real perante os olhos de quem vê e a tela da televisão nunca, jamais, em tempo algum, é um vidro transparente, ela é uma composição tecnológica, como diz o Hitchcock, capaz apenas de veicular surpresas, porque nem nas novelas o acontecimento deixa de ficar contido em impactos de cenas a cada dia, e cada uma dessas cenas surpresas são articuladas em torno de um conjunto de linguagens faladas e apresentadas por atores pensados dentro de fórmulas semióticas descritíveis, distantes da inapreensibilidade do real.

A Rosa queria ser científica, uma cientificidade a nos parecer tão ingênua para quem vê com os próprios olhos a imensidão desgovernada das tessituras dos algoritmos autônomos espalhados em redes virtuais. Mas ela era a Rosa Luxemburgo, amada pelos comunistas sobreviventes até hoje, esses neocomunistas que já entenderam ser necessário defender as memórias coletivas humanas, que essas memórias não são verdades absolutas e que dependem de conexões conscientes de muitos enredos de subjetividades conscientes e apaixonadas. E os nossos amores não são essas letras bobas de algumas músicas sem poesia que inundam as cenas comerciais das grandes mídias, o nosso amar apaixonado é real, sanguíneo, inusitado, pré-cognitivo ainda que consciente. O Harari diz que grande parte do capital cognitivo pensa ser o nosso amar mero acontecimento hormonal, químico, controlável pela indústria farmacêutica. Mas se assim fosse, como explicar o desejo apaixonado do velho sem hormônios? Pela memória, por óbvio, ele se lembra daquele sexo que ele fez na cachoeira, embaixo da água e em pé, segurando nos braços a amada. Bom, mais isso é consciência, certo? Isso é um acontecimento humano, certo? E não é transparente, é sensível e dele só se lembra quem viu e viveu com seu corpo imensamente humano.  Bom dia, Zeferina.

Querida Zeferina - carta dez - princípio da desceleridade, neo-escravismo e quilombos virtuais

                                             
   

                                            Querida Zeferina,

                                       Essa carta começou a ser escrita em 2012 e era apenas uma anotação despreocupada: "O Galvão Bueno disse, hoje, na corrida da fórmula um, “vai trabalhar, é bom trabalhar!”, a respeito da ação de uma das equipes em disputa. Ontem fui buscar as lajotas que faltavam, para o deque de cima da minha casa, lá na região urbana da ilha, e a dona da loja, estava muito abatida. Eu disse pra ela: tão dizendo que a classe média tá trabalhando mais de 12 horas por dia, doze na média, e estamos ficando doentes; acho que estamos em uma ditadura da mídia. Ela adorou meu comentário e respondeu: 'só os bem miseráveis tão bem, porque o governo tá dando comida pra eles. Nós estamos falindo, os donos de lojas, e estamos ficando com depressão'. Eu penso: se estamos, evidentemente, em uma ditadura, porque os meus conhecidos de classe média silenciam? Que houve com eles? Vou continuar o texto sobre os manifestos feministas; estou costurando, à mão, uma cortina para a janela da cozinha da minha casa. Estou fazendo isso faz meses, cheio de pedaços de panos diferente, um patwoork lindo. Essas costuras manuais são verdadeiros mantras, orações à religação com valores pela vida e pelo equilíbrio da espécie humana com o restante do Planeta. Credo, foram século de evolução do mundo fabril para o mundo informatizado e nunca foi descoberto esse milagre: o da lentidão, da calma, do cuidado com a vida. Zeferina é um lugar de esperança para os seres humanos redescobrirem estes valores".
                                           Olha que gracinha, eu estava a pensar sobre memórias coletivas de longa duração e potências de rastro forte e não sabia, ou não tinha coragem, de falar sobre isso, então eu chamava tudo o que me dava paz e segurança sobre o meu "si mesmo", a minha consciência sobre o meu próprio ser no mundo, de Zeferina. Amada, amada... O pequeno texto carregava o título de "produtividade abusiva" e eu estava, na época, tentando afirmar uma ideia de conceito para os pensadores no campo do Direito, a de que depois de um certo ponto de velocidade no trabalho, na ação do corpo do operário subordinado, começa a haver um prejuízo gerador de doenças. Pensava eu que isso poderia estar articulado à jornada trabalhada, tipo o número de horas associado à velocidade do agir. Ou seja, depois de um certo tempo trabalhando rápida e ininterruptamente, a(o) trabalhadora (o) começa a sofrer emocionalmente e em sua estrutura de cartilagens, ossos, músculos e tecidos macios e internos. Mas hoje, 2017, o que eu quero falar é muito mais amplo, e eu falo diretamente para ti, tatavó. Conscientemente, pratico um certo número de heresias neste momento. A principal delas é que estou a falar sobre um complexo de conceitos no campo do "mundo jurídico" e, claro, os juristas poderão ou me fuzilar semioticamente, ou me chamar de louca. Mas, considerando que ontem aprovaram uma lei no Brasil que praticamente revoga a lei da abolição, aquela da princesa Isabel em 1888, eu me sinto no direito - e essa palavra usada nessa situação já é uma teoria - de falar grandes pensamentos sobre o Direito.
                                             Estou a escrever, nessa carta, o seguinte: existe, na história de setenta mil anos da humanidade, a produção de fontes materiais que instituíram vários princípios jurídicos e, dentre eles, o mais importante no momento histórico em que o mundo humano sapiens se encontra, é o princípio da desceleridade. Sim, eu inventei essa palavra hoje, não sei se existia já. Vou explicar. Existe o princípio da celeridade que é mais ou menos assim: um julgamento, uma decisão sobre direitos, normas, deveres, faltas, atos ilícitos e punições pode só ser justa se for aplicada no tempo certo. Por exemplo: se um salva-vidas decide correr em direção a uma pessoa que levanta o braço no mar, supondo que ela está passando mal, precisa tomar a decisão de ir até ela em um tempo certo necessário para, caso tenha sido verdade o pedido de socorro, ele tenha tempo de salva-la. Normalmente os salva-vidas começam a correr para a beira do mar olhando ao longe e quando o afogado ergue novamente o braço ele acelera a corrida, caso o suposto acidentado pare de acenar e demonstre controle – nadando, por exemplo - o salva-vidas desacelera e continua a olhar, a confirmar a segurança do banhista ele começa a caminhar até mais próximo e finalmente para. Esse princípio tem sido muito falado no Brasil, e creio que no mundo, nesses tempos de grandes acelerações na vida cotidiana dos brasileiros. O que estou a dizer aqui é que esse princípio é verdadeiro, mas dentro do campo de existência dele estão sendo acionados acontecimentos iluminados pela maldade, e pela vontade de humilhar seres humanos subordinados, ou seja, as ideias de rapidez de procedimentos que vemos serem alardeadas na atualidade são derivadas de práticas construídas nas tradições de memórias coletivas humanas no campo da tirania.
                                                O que permite esse entendimento claro sobre lugares do mal, no caso das velocidades no agir, é um outro princípio erguido pela humanidade e que se apresenta no mundo atual como sendo o princípio da desceleridade, qual seja, o entendimento de que para efeitos de justiça na realização do bem comum há uma velocidade máxima para a realização de qualquer ato justo, além do que o ato perde o significado pretendido. Não estou falando em um direito a ser lento, ou em um direito a desaceleração. Vc pode estar quase em “câmera lenta” e ainda pode desacelerar. A aceleração é um acontecimento que vai do parado até o que se torna invisível a olho nu. Mais até, os físicos que sabem sobre esses acontecimentos de velocidades da luz e tempos-espaços. Sei muito pouco sobre o que não sei a esse respeito. Estou pondo em relação um conjunto de outros princípios jurídicos, como o da razoabilidade, com o princípio da celeridade e todos eles vistos sob a ótica dos evidentes e visíveis genocídios que estão sendo praticados no mundo humano atual.
                                                Esse princípio que eu identifiquei (princípio a gente não inventa, eles estão lá, em sociedade, emanam de construções coletivas e estáveis de memórias humanas de longa duração e eles podem ser enunciados e reconhecidos pelo conhecimento jurídico de qualquer sociedade em um ambiente de uma civilização) ilumina fontes materiais do direito que são milenares, como o desejo de usufruir do ócio, do lazer, do tempo livre, da apreciação fortuita dos cenários agradáveis. Tanto humanos quanto outros animais sentem esses desejos e se esforçam em apreciar esses prazeres. Mas ele só ilumina essas fontes materiais no exato momento em que elas se tornam ameaçadas em sua existência, ou seja, quando a capacidade de humanos usufruírem dos benefícios do exercício desses prazeres é proibida, para algum número significativo de indivíduos reunidos em coletividade. Portanto, quando um número suficientemente grande de indivíduos humanos organizados em modos de produção e reprodução da vida se  vê proibido de apreciar uma fração mínima necessária de conforto psíquico em razão de excessos de aceleração dos acontecimentos que o integram, em sua vida cotidiana, no interior de uma determinada sociedade, então o princípio da desceleridade emerge ali para iluminar direitos tais como o de desconexão, o de limitação de uma jornada de trabalho diária, o de regramento de intervalos entre as jornadas e de dias de descanso semanais e anuais.
                                                 Vou ler, Zê, um cara chamado Franco Berardi, que tem um livro com esse nome: A fábrica da infelicidade: trabalho cognitivo e crise da new economy. Não sei se nesse livro, mas em algum lugar ele diz que os suicídios de jovens entre os 18 e os 34 anos está aumentando em uma velocidade assustadora, nos últimos quarenta anos. Isto significa que vários outros acontecimentos destrutivos semelhantes – acidentes de trânsito, formação de gangues violentas, depressões endêmicas e pandêmicas, reduções dos índices de acasalamentos e práticas sexuais estáveis e com envolvimento afetivo – estão aumentando também. Vou escrever mais sobre isso. Por ora, importa saber que esse princípio seria, a meu ver, o iluminador das identidades daquilo que estou chamando de “quilombos virtuais”. O quilombo foi um tipo de comunidade em um específico lugar, no Brasil colonial e imperial escravocrata, onde um agrupamento de humanos de maioria negra - alguns índios e brancos pobres fugitivos - inaugurava um cenário com uma lógica jurídica, política e cultural apartada da sociedade da qual se fugia. Eles tinham clareza sobre qual era essa sociedade: ela era escravista no sentido milenar tradicional, ou seja, o escravo é sequestrado e seu corpo mantido em cativeiro no mundo real. No nosso caso, precisamos identificar do que fugimos para determinar quem somos. Tudo ficou mais iluminado, aos meus olhos, quando li o best seller Homo Deus. Ele tem, nas sua entrelinhas e nos seus silêncios, a omissão do sofrimento em massa dos humanos do século vinte e um motivado pelo excesso e velocidade abusiva da produção de informações e procedimentos em situação de trabalho subordinado e vida controlada por sistemas panópticos. Este livro publicado pela Companhia das Letras divulga para o senso comum a existência de três ideologias - ele chama de seitas - o liberalismo, o humanismo e o dataísmo. Essa última ideologia é a do capital cognitivo de ponta, ou ao menos de parte dele: nanotecnologia, biotecnologia, robótica. Ele afirma que a robótica pode estar em um desenvolvimento que produza a extinção da espécie homo sapiens. Reinterpretando ele, à luz da tradição do pensamento crítico humanista, eu diria que os dataístas que são fundamentalistas vão conseguir matar uma parte da humanidade, porque eles dominam a crença coletiva na velocidade da expansão tecnológica e conseguem impregnar, com essa religião, o princípio da celeridade. Mas eles não dominam os efeitos disso. O autor do livro Homo Deus levanta esse problema: os dataístas não dominam os efeitos da revolução que fazem. Para um enorme problema a solução é simples. No caso, a velocidade que é imposta ao cenário do pensamento coletivo é grande demais, esse pensamento está se fragmentando, se espatifando. Então, nesse caso, o quilombo deve abrir seu território buscando a desaceleração do pensamento. Precisamos pensar lentamente, ler menos e de um modo mais selecionado, ter certeza sobre as palavras que usamos, trocar conversas sobre elas. Precisamos usar palavras escolhidas e acordadas em seus significados possíveis. Por exemplo: tem ou não tem esquerda? E se tem, quais são os seus limites e suas configurações? E conversar calmamente. Essa seria a regra básica na inauguração de um quilombo virtual, porque os quilombos precisam ser imunes ao contágio pelas regulações das quais estão fugindo. O quilombo ou é uma ilha, ou território simbólico cercado por muros e imunidades simbólicas, ou não é um quilombo.
                                            Creio que todos os descendentes de escravos brasileiros sempre carregaram quilombos em suas constituições emocionais. Eu me entendo como nascida quilombola. Somos mais solitários, mais intransigentes, irreverentes, ariscos.

Moro e as aulas chatas - receita para não enlouquecer



Uma vez, quando eu era professora, dei uma aula que as crianças de dez e onze anos adoraram. Chamei de “aula chata”. Falei para elas aguentarem uma aula bem longa e expositiva minha, na qual eu escreveria algumas frases no quadro verde. Falei: “vocês vão ficar com sono e chateados, então eu quero que vocês comecem a anotar no caderno somente as palavras que mais chamarem a atenção, ou porque gostaram dela, uma palavra bonita, ou porque não gostaram, uma palavra feia ou incompreensível. Fiquem fingindo que estão atentos, mas somente se liguem em palavras que se destacarem no que eu estiver falando”. Eles adoraram a brincadeira e imediatamente se colocaram a postos para brincar. No outro dia, entrei na sala de outra turma e estavam todos faceiros quando um perguntou: “você vai dar a aula chata pra nós, professora”? Algumas professoras provavelmente não gostaram da minha brincadeira. Depois, as crianças precisavam trazer uma redação, na aula seguinte, com um texto composto com as palavras que elas haviam selecionado e copiado.
Pois bem, li a postagem do Jean Wyllys, sobre o que eu chamei de “a batalha dos frigoríficos”, e imediatamente me lembrei da aula chata. Foi daí que marquei os seguintes recortes, em um grande texto do deputado de esquerda:
“aumentar seus lucros sem aumentar a produtividade ou a inovação”
“corrompendo funcionários públicos”
“incompetência para fiscalizar as irregularidades”
“os reais interesses das bancadas do boi, da bala e da bíblia, articuladas em uma série de retrocessos para o país”
Fiquei um tanto chocada porque sei que a produtividade e a inovação estão sendo utilizadas, mais ainda da década de noventa pra cá, mas desde sempre, contra os operários e operárias. A produtividade não tem sido construída pela adoção de máquinas mais eficientes, ao contrário, a adoção de máquinas novas acaba criando um cenário inaugurador e sem lei onde os subordinados se veem em situação de neo-escravismos, com adoecimentos e mutilações de novos formatos, a começar pelos perigosos índices de depressão, contidos por adições químicas criadas pela indústria farmacêutica de última geração, incapaz de inibir os índices alarmantes de suicídio e transtornos em populações jovens e adultas.
Depois, a ideia simplória de corrupção, e ainda de funcionários públicos, como erros exteriores à engrenagem econômica e praticados por comportamentos desviantes de uma normalidade suposta como um bom padrão. Depois a ideia de “incompetência” e “irregularidades” para identificar um acontecimento dentro do qual está deixando de entrar no mínimo 74 milhões por dia, no país, sem falar na projeção de um fracasso generalizado da indústria de carnes processadas dentro do Brasil e o consequente e futuro desemprego em massa. Confesso que fiquei besta. Tirando a última frase, sobre a bancada boi, bala e bíblia, o resto é idêntico à fala que a Marina Silva fez sobre o mesmo acontecimento. Uma fala que em nada se opõe à condução da lavajato pelo modo operacional e cognitivo de uma vertente do conhecimento jurídico, o Direito, representada no país, até agora, pelo juiz que dizem que está por sair da condução desse processo, o Moro.
Sou uma Cassandra, isto é, aprendi desde a mais tenra infância a não acreditar em nenhum outro humano e a olhar o mundo com meus próprios olhos. Deriva desse modo fóbico e febril a condição de usar frequentemente o pensamento contra-intuitivo e recortar os cenários a partir de bricolagens pré-cognitivas, ou seja, acreditando mais em entendimentos inventados pela minha especifica subjetividade do que naquilo que os sacerdotes oficiais escrevem em seus papiros e tábuas.  Eu brinco com as palavras de um modo autônomo desde o primeiro vovô viu a uva. Foi isso que ensinei às crianças, nos idos de 1997.
A vantagem desse comportamento intuitivo e criativo é que, em situações de esculhambação generalizada de quem deveria ocupar o lugar –lacaniano- do “pai”, o lugar do discurso crível, a fala e a escrita de quem se pode seguir, o praticante desse comportamento autônomo pode ser virar para entender o mundo sozinho, sem sofrer tanto em cenário de abandono.
Eu não vou nem falar aqui de uma outra postagem que vê o Moro como um malvado, também incompetente, que sairá como que “guilhotinado”, como se o que vem agora antecedesse o surgimento de um Napoleão qualquer. Eu não li o 18 de Brumário, mas imagino o que pode estar escrito lá somente por uma vivência prática sobre a frase famosa do Marx.
Tentando consolar meus amigos mais próximos, vou dizer o seguinte: quando alguém chegar perto de você falando essas palavras chaves: “competência”, “produtividade”, “inovação tecnológica”, “corrupção”, “irregularidades”, sorria e finja que está ouvindo todo o restante do discurso da pessoa. Depois caia fora, discretamente, e procure a sua turma, nem que ela tenha apenas meia dúzia de humanos, entre crianças e velhos. Mas, olha, se mesmo com tudo isso, esse caos político, as turmas todas de uma suposta e indescritível esquerda brasileira conseguirem entrar na fase dois desse game mundial, saindo do golpe contra a Dilma, e se a gente puder seguir vivendo, pensando e fazendo redações com as palavras chaves que lemos e ouvimos, “tamo” no lucro. Porque, sinceramente, eu nunca vi uma degradação simbólica dessas proporções. Começo a lembrar de um texto inteiro, sobre o qual não é necessário defender-se e ficar recortando palavras-chaves. Trata-se de Franco Berardi, quando ele diz:
“A comunicação alfabética possui um ritmo que permite ao cérebro uma recepção lenta, sequencial, reversível. São estas as condições da crítica, que a modernidade considera condição essencial da democracia e da racionalidade. Porém, o que significa “crítica”? No sentido etimológico, crítica é a capacidade de distinguir, particularmente, de diferenciar entre a verdade e a falsidade das afirmações. Quando o ritmo da afirmação é acelerado, a possibilidade de interpretação crítica das afirmações reduz-se a um ponto de aniquilamento. McLuhan escreveu que quando a simultaneidade substitui a sequencialidade — ou seja, quando a afirmação se acelera sem limites — a mente perde sua capacidade de discriminação crítica, passando daquela condição a uma neomitológica. O verdadeiro problema é que as mentes individuais e coletivas perderam sua capacidade de discriminação crítica, de autonomia psíquica e política”.
Volto, então, a chamar a atenção dos amigos para a necessidade de refletir sobre a ideia de “quilombos psíquicos e cognitivos”, ou seja, arcas de noés de gente que detém duas qualidades: não é dono de capital e não desistiu de pensar criticamente. Eu heim...vade retro...


versão um. sem revisão

Querida Zeferina - carta 6.1 - ventre livre


                                              Querida Zeferina,


                                             Essa carta era sobre como acontece de os escravos o serem em cada uma de suas células e sentimentos, de como isso se arrasta por várias gerações e não muda se não houver muito investimento em escolas e recuperação de danos nas famílias herdeiras das dores e traumas dos escravos. Seria sobre como um bom número de pessoas carrega uma mistura entre células de escravos e células de donos, sendo a célula também o lugar das memórias subjetivas. Mas aí lembrei e resolvi procurar aquele livro incrível, de 1875, Manual do Elemento Servil, escrito por Miguel Thomaz Pessoa e editado por Eduardo & Henrique Laemmert, e no meio da procura encontrei a revista IBIÚNA, escrita em 1977, parece. Naquela época a juventude não registrava direito as datas em seus documentos, hoje não sei se eles já aprenderam que tudo o que fazem só terá potência se for lido quarenta anos depois, então precisariam deixar claro as datas e os seus modos de pensar imprecisos, como de fato brotam os pensamentos. Os jovens tendem a afirmar verdades claras, mantras, rezas, palavras de ordem. Isso faz parte, no Brasil, daquele caleidoscópio cultural escravocrata sobre o qual vou escrever várias cartas para ti, Táta. Uma sociedade erguida sobre e sob o chicote de feitores e donos doutores vive um nível e uma constância de humilhações que a fazem esquecer muito, esquecer todos os dias. Desse esquecimento nascem jovens querendo brincar, cantar lendas, dançar, tentando alegrar seus pais, tios, vizinhos. Jovens que aprendem muito pouco com os mais velhos, até para se defenderem da melancolia de velhos desprezados em suas memórias por todos os adultos. Em sociedades escravocratas os poucos velhos sobreviventes e com mais de oitenta anos são vistos como monumentos, são “tratados”, como era e ainda é a linguagem dos e sobre os analfabetos no país, tratados como se trata gado, mas deles não se esperam entendimentos lúcidos e esclarecedores. Um país de tradição cultural escravocrata que tenha passado pelos séculos dezenove e vinte sob a pressão de “modernizar-se”, “desenvolver-se”, “tornar-se primeiro mundo”, só poderia ter sido mergulhado em mitologias girando em torno da ideia mestra da “mudança”, movendo suas comunidades, sua sociedade civil, em rituais de recomeços, novos pactos, reinaugurações. Assim, os jovens são empurrados para as ruas, à direita e à esquerda, cantando mantras, dançando alegrias pensadas em slogans banalizados. Uma sociedade escravocrata aprende a não pensar muito. É uma forma de resistência, mas também é uma forma de acomodação. A isso podemos chamar de genética da sociabilidade.
                                              Achei a revista de Ibiúna no mesmo cantinho de prateleira onde estavam as seguintes cartilhas: um texto do “Combate Sexual da Juventude”, do Wilhelm Reich, “Os Conselhos Operários e a Transição para o Socialismo”, de Hugo Sacchi, publicados em 1978/9 pelo setor jovem metropolitano do MDB de Porto Alegre e “Universidade e Poder”, de Tomás Vasconi e Inês Reca, texto extraído da Revista Latino-americana de Ciências Sociales, nº4, dezembro de 1972, Chile. O primeiro editorial da Ibiúna(1977- reorganização da UNE) começa assim: "Vivemos um momento complexo na conjuntura política do país. Configura-se, de forma cada vez mais clara, uma nova 'virada'. A crise econômica continua sem solução a curto prazo, permanecendo como pano de fundo da conjuntura. Mas, já há algum tempo, e cada vez mais, deixou de ser seu aspecto principal. A crise política tem sua dinâmica própria e avança a passos largos. Agora, já não resta dúvidas que a polarização política no seio da classe dominante não se dá mais em torno da questão institucionalização do regime (o abre não abre) corporificado na briga Geisel X Médici e, posteriormente Geisel X Frota. A candidatura de Euler Bentes e a Frente Nacional pela Redemocratização começam a delinear uma outra alternativa burguesa como saída à crise da ditadura, e que vai bem além da simples institucionalização, da reforma de fachada. Pela força que expressa dentro de setores da burguesia, e inclusive das Forças Armadas, começa a aparecer como uma alternativa viável à ditadura militar, toma iniciativas e polariza a oposição liberal e significativos setores da pequena burguesia democrática". A revista tem quatro editoriais creio que representando grupos distintos dentro do movimento estudantil brasileiro reunido em frente contra a ditadura militar. A foto da capa da revista é um caminhão com um amontoado de jovens em pé na caçamba, sendo conduzidos presos, após tentativa de realização do 30º Congresso Nacional da UNE, em São Paulo. Era o ano de 1968, na França aconteceriam as revoltas estudantis de maio, com bandeiras como “é proibido proibir”.  No editorial 4 há a defesa da tarefa fundamental da construção do Partido dos Trabalhadores.
                                         Fico pensando, Zeferina, nessa nossa falta de memórias coletivas que nos faz retomar falas idênticas em cenários tão diferentes, essas falas sobre “crises” e sobre “frentes nacionais por redemocratizações”, incluindo aí sempre uma borda mais descontente a denunciar os pactos como conciliadores. Em 1977/78, a bandeira mais radical do “governo dos trabalhadores”, a partir das greves do ABC paulista, a ideia de erguer um partido ainda socialdemocrata, mas mais radical, incorporando ideias do maio de 68 francês, da esquerda trotskista internacional e outros autonomistas europeus vindos do pós-estruturalismo. Um partido dos trabalhadores perante o qual alguns jovens do meu tempo estiveram dispostos a morrer, a dar seus corpos a projetos arriscados. Alguns morreram mesmo, alguns estão presos, outros doentes, pobres ou tristes, alguns estão muito bem em suas profissões.
                                         O livro de 1875, o Manual do Elemento Servil, achei na internet, depois de ter passado uns dois dias limpando prateleiras e revirando baús do sótão dos gatos do barracão da garagem, sem encontrar a cópia que uma professora da AMATRA-RS me deu em 1995, mas encontrando cartas e manuscritos meus e de outros militantes das décadas de setenta e oitenta. Ele é uma compilação de versões da lei do ventre livre, quando essa lei estava sendo pensada e depois emendada e votada na assembleia de deputados brasileiros da época do Império. Agora, Táta, tenta imaginar a situação, compara com o que vivemos hoje. O relator do primeiro projeto de lei, apresentado em 1968, foi Joaquim Nabuco. A lei versava sobre indenizações aos donos de escravos, alforrias e normas de direitos e deveres dos donos e dos nascidos de ventre livre e suas mães. Mais tarde inventaram que essa lei era uma porcaria inútil e que a lei da abolição é que foi boa e forte para o povo brasileiro. Na década de oitenta, alguns historiadores começaram a publicar livros dizendo que a lei de abolição tinha sido algo do tipo mandar todos os escravos embora sem indenização ou reparação alguma, manda-los às ruas, abandonados, expostos às políticas de um estado policial que viria a trata-los como vagabundos e bandidos desocupados, nas repúblicas subsequentes a 1889. Mas a lei do ventre livre, pensa bem, Zeferina, você pode ter sido filha de ventre livre. Teu filho, meu bisavô, nasceu lá por 1890, digamos que tu tinhas 19 anos, pois você teve filhos talvez com quinze e tiveste mais de dez, creio. Então você poderia ter nascido em 1871, antes da abolição e durante a vigência da lei do ventre livre.
                                        Bom, se hoje a gente tá exausto com tantas transformações jurídicas, políticas e materiais na vida em sociedade, na sociabilidade e suas tramas de grupos, comunidades e multidões, creio que entre 1860 e 1889 também foi uma confusão enorme, com grupos de elites brigando muito entre si e com movimentos e agrupamentos abolicionistas e de escravos e alforriados também tentando sobreviver e diminuir a violência que se abatia sobre eles. Então, a lei do ventre livre tinha oito artigos, em seu primeiro projeto, o de 1868.  Um deles, o quarto, era assim: “São declarados libertos: §1º, os escravos da nação, dando-lhes o governo a ocupação que julgar conveniente; §2º, os escravos das ordens regulares gradualmente e dentro de sete anos, providenciando o governo sobre a colocação dos libertos; §3º, os escravos do evento; §4º, os escravos das heranças vagas; §5º, os escravos que salvarem a vida de seus senhores, dos descendentes e ascendentes destes; §6º, os escravos que licitamente acharem e entregarem a seus senhores alguma pedra preciosa cujo valor exceda ao da sua redempção; §7º os filhos da escrava destinada a ser livre depois de certo tempo ou sob condição; §8º, o escravo que por consentimento do senhor, expresso ou tácito se casar com pessoa livre, ou se estabelecer por qualquer fórma como livre”. Na lei assinada em 1871, pela princesa Isabel em nome de Dom Pedro II, esse artigo passou a ser assim: “Art. 4º - É permitido ao escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver de seu trabalho e economias. O governo providenciará nos regulamentos sobre a colocação e a segurança do mesmo pecúlio”.
                                              Então, Zeferina, a lei do ventre livre foi, na verdade, uma discussão nacional sobre um código, ou consolidação de direitos e deveres dos escravos e dos senhores seus donos, do governo, de toda a sociedade civil organizada da época. Era para ser uma lei com obrigações de tutela de parte do governo e dos senhores escravocratas em sentido indenizatório e de integração progressiva do contingente populacional escravizado, e suas bordas, na sociedade civil livre e articulada em torno de um mercado de trabalho e outras instituições republicanas. Claro, naquele momento de tentativa de um pacto nacional das diferentes elites, algumas abolicionistas, havia a previsão de indenização paga aos donos dos escravos pelo governo. Era a ideia de emissão de títulos de dívidas públicas, com juros de seis por cento, se estou lembrada (não vou lá procurar agora, mas era isso). Todo aquele cenário, em projeto inicial apresentado por Joaquim Nabuco erguia um princípio jurídico dos mais importantes em toda a história do Direito dos humanos, decisivo para a dignidade humana, o Princípio da Tutela, segundo o qual as sociedades civis devem erguer cidades ou Estados e manter governos onde o objetivo de proteção dos indivíduos mais frágeis seja a norma fundamental. Por óbvio, os indivíduos mais frágeis são os velhos, as crianças, os doentes e os deficientes; as mulheres mais frágeis do que os homens por decorrências da história.
                                                   Vou escrever mais cartas sobre essa lei, Táta, para os que me leem. Há jovens lendo as cartas que escrevo a você. Memória é tudo, sem ela não somos capazes de limpar o traseiro sequer. Destruir memórias é a parte principal das ações dos genocidas atuais. Botar todos os jovens a executar algoritmos é o grosso do projeto das grandes máquinas das gerências mundiais que preferem robôs a humanos, preferem escravos desesperados e tementes, a pessoas esperançosas. Mas alguns de nós são como os elefantes: recordam os caminhos.



 versão um. foto: Joaquim Nabuco, da web.

carta 4.1 - as coisas, os humanos e as avós




                            Querida Zê,


                           E se o mundo humano estiver sofrendo o final de uma civilização sem que o olhar comum possa perceber e dimensionar o tamanho do problema? Se estivermos sob o efeito de um gigantesco e imperceptível desmanchamento das relações afetivas, pela destruição das memórias tradicionais dentro das estruturas produzidas pelos humanos no decorrer dos últimos setenta mil anos em suas nações e tribos? Um desmanchamento progressivo ou aos saltos das subjetividades organizadas dentro das ideias-formas “família”, “estado”, “homem”, “mulher”, “jovem”, “velho”? Uma destruição produzida por máquinas, como as redes sociais na web, ou armas de destruição em massa, como as comidas contaminadas por químicas e a enorme quantidade de plásticos em produtos domésticos? E se muitos estiverem ficando loucos a ponto de a própria relação entre normalidades e exceção ficar corrompida?

                           Aquilo que Simone de Beauvoir e Fernando Henrique Cardoso estavam a dizer, em meados do século vinte - quando usaram a palavra “coisa” para descrever a mulher –em toda a história – e o negro como escravo moderno das grandes plantações americanas, foi muito polemizado pelos pensadores sobre o escravismo brasileiro ocorrido de 1500 a 1888, da colônia e império. Estudei isso, Zeferina, ao escrever Tempos e Tutelas, em 1997. As grandes universidades públicas brasileiras recebiam polêmicas quentes sobre a condição de sujeito do escravo, embora o debate feminista incipiente sobre a condição de coisa da mulher fosse colocado em outras dimensões de entendimento. Falo sobre as mulheres e Simone mais adiante. Acontece que uma parte dos pesquisadores dizia ser a divisão entre “coisa” e “pessoa” uma abstração jurídica e econômica ilusória. Em 1960, Fernando Henrique Cardoso havia afirmado serem os escravos coisa. Em 1980, pensadores ligados principalmente à UNICAMP teriam afirmado o sistema escravista brasileiro como efetuado a partir da construção de pactos sociais, sendo os proprietários e os escravos partes em um acordo sistêmico. Pensando a partir de Gramsci e suas reflexões sobre hegemonia e consenso, Ronaldo Vainfas teria dito que a escravidão não poderia funcionar mediante o uso exclusivo da violência, supondo um pacto, um tecido social de contratos entre pessoas. Jacob Gorender se opunha a essa corrente para afirmar que a condição de pessoa só emergiu no mundo humano a partir da “universalidade e igualdade das normas legais para todos os indivíduos”, e que essa condição só apareceu dentro do direito burguês. Então Gorender via os conceitos de contrato, individual ou coletivo, e o decorrente conceito de pacto (individual ou social), gerados apenas a partir do contexto civilizacional das sociedades igualitárias do trabalho regulado pelas mesmas leis para todos os humanos. Já Silvia Hunold de Lara escrevia que “a relação entre o senhor e o escravo era uma relação pessoal de dominação, o que nos permite pensar em uma certa reciprocidade” (1988, 346).

                                                    Estou trazendo esses recortes nesta carta, Táta, para que você me ajude a pensar os acontecimentos atuais, no Brasil, que apontam para um novo tipo de escravismo e, não obstante, novos e propagandeados pactos sociais. A presidente deposta, Dilma Rousseff, falou – eu me lembro – de que havia sido quebrado um pacto feito para retirar do governo a ditadura militar, e que apenas um novo pacto poderia restaurar o que nós nos acostumamos a ouvir falar como sendo o estado de direito, talvez a mesma coisa que o Jacob Gorender chamava de direito burguês. Sei lá, esses conceitos eram sempre ideias complexas e ainda são. O Harari, esse professor israelense autor do Best Seller Homo Deus, resolveu afirmar, em 2015, que “Na essência, nós humanos não somos diferentes de ratos, golfinhos ou chimpanzés. Como eles, tampouco temos alma. Como nós, eles também têm consciência e um complexo mundo de sensações e emoções. É claro que todo animal tem traços e talentos exclusivos. Os humanos têm suas aptidões especiais”. E, ainda, o Harari diz que “humanos são algoritmos que produzem não copos de chá, e sim cópias deles mesmos (como uma máquina de venda automática que, se tiver os botões pressionados na ordem correta, produz outra máquina do mesmo tipo)”. Então, nesse debate sobre a escravidão no Brasil, temos a ideia do objeto como coisa e a ideia do objeto como animal não humano. E, ainda, novos pensadores como o Harari introduzem, no século XXI, a ideia do homem como um animal no qual a consciência de si é uma ilusão. Fico pensando, Zeferina, se não daria para falarmos em dois tipos de loucura, a loucura dos pobres loucos trancados em suas casas ou em clínicas psiquiátricas, e a loucura de Hitler, Stalin, Pinochet e outros tantos representantes do mito do tirano. E fico pensando se entremeado a esses pensamentos importantes e falados pelos governantes, tais como os das grandes universidades federais brasileiras, não existem ideias e imaginações que agregam loucuras, pensamentos que em vez de diminuir aumentam o sofrimento das populações subordinadas aos diferentes governos. As diferentes loucuras são, ou viriam a ser no final de um caminho de dor, uma espécie de coisificação do ser humano?

                                                        Não creio que possa ser um risco falar para uma tataravó e em casa. Exceto as velhas doentes e muito más, verdadeiras aberrações, as avós jamais verão seus netos ou netas como “coisas”, mesmo se eles forem escravos ou mulheres desimportantes. Os homens já não, né, Zê? Os avôs podem ser muito malvados, podem ser cruéis com seus próprios filhos. Mas o meu avô, o Gentil, foi um cara legal, do jeito da sua época. Ele cuidava e brincava com os netos.

                                                         Há uma tristeza grande espalhada no Brasil, agora, em março de 2017, porque o número de pessoas sabedoras da condição terminal dos espaços de dignidade em sociedade só aumenta e nesse aumento, no modo como esse aumento de lucidez se dá, fica plantado um rastro de desistência de ilusões. Ouvimos falar, antigamente, de sofrimentos enormes em cenários de guerras e tiranias, aqui no Brasil e no mundo, sofremos doenças, perdas, mortes, cada um de nós, uns muito mais do que outros, mas viemos vivendo desde 1950, mais ou menos, dentro de uma expectativa generalizada de que o mundo humano conseguisse traçar um caminho de redução das guerras, das ditaduras, das doenças, das misérias dos lugares mais violentos e sofridos. Isso acabou. Essa expectativa positiva deixou de existir e mergulhamos vertiginosamente em uma normalidade decadente e derrotada, dentro da qual o melhor lugar é um exílio nosso, nos afastando do espaço político e uma imersão em acontecimentos de “ilha deserta”: um recolhimento ao lar, ao centro religioso ou de pesquisa, ao grupo cultural, à tribo, à organização privada. Ou então um nomadismo permanente, viagens, visitas a festas, shows, malas e cidades novas. Alguns se preparam para tornarem-se invasões dos lugares onde antes era o espaço público, invasões rebeldes e expostos à violência de agentes policiais de filmes de efeitos especiais, invasores do bem visando o erguimento de um espaço contra hegemônico.

                                                     Ando pensando sobre o que são os algoritmos, Táta. Eles estão por todos os lugares e nós estamos até com medo deles, para falar a verdade. Escrevi o que segue, pensando em um domingo, enquanto lavava lençóis. Vou mostrar só pra ti, porque temo que me chamem de louca, ou arrogante. Sempre me chamam assim, faz décadas. Chamam-me assim apenas porque eu só me sinto bem pensando. É talvez um vício, uma obsessão. Eu olho o mundo como se em fala ou escrita alguma estivesse presente uma verdade que pudesse me proteger. Sinto como se minha vida, minha proteção, dependesse do meu pensamento pessoal:

                                                    “Conceito é uma palavra que tem a ver com ‘conceber’. A mãe concebe. Assim, a palavra conceito está ligada a ideia de modo subjetivo de ver o mundo. Um modo de amar. É uma palavra ligada à veracidade do olhar subjetivo do humano, um olhar relacional, que pode se colocar em diálogo com o outro, o conceito diferente. Algoritmo é “uma sequência finita de regras, raciocínios ou operações que, aplicada a um número finito de dados, permite solucionar classes semelhantes de problemas”. Penso que o algoritmo é um instrumento para a reprodução de um dado, ele é um cálculo sempre fabricado por algum ser humano ou máquina. O algoritmo pode entrar em ação em um determinado banco de dados, ele se relaciona com um contexto formal e não com uma subjetividade complexa e humana de tipo relacional. O algoritmo não tem amor em sua composição, não como potência incalculável, pode até ter “amor” como palavra representando um cálculo de tipos estritos de acontecimentos formais. Os algoritmos podem movimentar multidões de humanos reunidos em maiores efeitos na medida em que esses humanos estiverem afetados por uma disposição de alienação tal que em vez de um “eu” complexo e incalculável, relacional, de cada um deles, eles disponham, para agir no mundo, de um conjunto de modelos comportamentais estritos, calculáveis e reprodutíveis em conexões limitadas de estéticas e éticas de grupo. O grupo com regras claras e limitadas é muito mais vulnerável à invasão de algoritmos que podem até transforma-lo em “franquias”. A franquia é um modelo de mercadoria composta por um conjunto limitado, ordenado e rígido de algoritmos. Os grupos invadidos por algoritmos são ferozes defensores da inutilidade do “eu” solitário e realizam contra os indivíduos isolados intenso combate. Os produtores e inventores de algoritmos são indivíduos isolados, mas os grupos invadidos não tem capacidade de identificar esses indivíduos criadores como diferenciados do grupo. Os conceitos e os algoritmos só se relacionam para se enfrentarem e contaminarem uns aos outros. Eles são construções distintas e incompatíveis porque o conceito carrega conteúdos não mesuráveis, subjetivos. O algoritmo contaminado pelo afeto incalculável desaparece magicamente: ele ou se deteriora, perdendo seu objeto, ou sai do sujeito ou objeto, evapora. O conceito contaminado carrega o algoritmo contaminante em uma atuação subsidiária, de um modo “mestiço” e com pequena mobilidade. Os grandes conceitos, ou grandes tessituras conceituais invadidas por algoritmos tornam-se muito mais pesados do que já eram antes, mas tem enormes possibilidades de acoplarem em torno ou dentro de mitos.  O mito é um registro permanente e imutável de um determinado tipo de acontecimento na história dos humanos. É uma memória coletiva resistente, consistente. Ele é o conteúdo de um monumento, a energia de um objeto grande e pesado. Ele pode ser empurrado por um conjunto de conceitos em direção a um determinado lugar, mas os conceitos novos ou se dissolvem dentro dos que já estavam lá no mito ou evaporam e se desligam do mito depois de realizado um determinado objetivo. E o mito segue navegando nas memórias coletivas humanas. Um mito só perde a sua visibilidade de superfície se outro mito disputar o mesmo espaço com ele e retira-lo de sua função social. E o objeto que carrega o mito pode ser invadido por algoritmos e, por meio da invasão lógica, ser conduzido a um determinado lugar. Dependendo do conjunto de operações de algoritmos, o objeto que carrega o mito poderá ser tão tensionado a ponto de o mito retirar-se do objeto, ou o objeto ser destruído como lugar à superfície dos acontecimentos humanos”.

                                                   Esse texto sobre algoritmos e conceitos acabou parecendo um roteiro-coreografia de um balé de um jazz misturado com dança de rua. Estou também pensando no Lula, no mito que ele carrega e que esteve dentro do corpo de Getúlio Vargas e, antes dele, no corpo de outros salvadores surgidos no Brasil e no mundo. Os lençóis ficaram prontos. Vou pendurá-los e fazer uma comida. Os cachorros estão dormindo, o marido está no andar de cima do sobrado.


versão um. foto: eu, irmão e avô trepados em árvore, aproximadamente entre 1964 a 67, Porto Alegre.