A Verdade é a nossa única arma


                Qorpo Santo foi o codinome - nome de guerra - que um gaúcho considerado louco se deu, lá por 1865, época em que escreveu várias peças de teatro vindo a se tornar, cem anos depois, um dos ícones do teatro nonsense brasileiro. Lembrei-me dele quando comecei a investigar sobre a hipótese de que o que se abate sobre os brasileiros nada mais é do que um processo em parte planejado e em parte fruto de uma configuração relativamente autônoma das dinâmicas de nosso tempo de declínio de uma civilização chamada de “moderna”. Autônoma no sentido de ser resultado de uma configuração complexa e global de memórias em desabamento. Planejado no sentido de ser um novo tipo de guerra, consequência do que chamaram de globalização, mundial portanto.

   Da wikipédia: "Gaslighting ou gas-lighting é uma forma de abuso psicológico no qual informações são distorcidas, seletivamente omitidas para favorecer o abusador ou simplesmente inventadas com a intenção de fazer a vítima duvidar de sua própria memória, percepção e sanidade. Casos de gaslighting podem variar da simples negação por parte do agressor de que incidentes abusivos anteriores já ocorreram, até a realização de eventos bizarros pelo abusador com a intenção de desorientar a vítima.
           O termo deve a sua origem à peça teatral Gas Light e às suas adaptações para o cinema, quando então a palavra popularizou-se. O termo também tem sido utilizado na literatura clínica".


                                De certo modo, todo esse processo engendrado pela articulação do modo de gestão da "sociedade do espetáculo e das multidões", como um projeto de Guerra Mundial contra os "matáveis", os "humanos descartáveis", se utiliza de instrumentos que podemos verificar nos estudos sobre esse modo de assédio moral que a wikipédia apresentou acima. O modo como a repressão avança no Brasil tem essa matriz: ela anuncia os dissidentes, a oposição, como loucos, inadequados, retiráveis de cena. Do mesmo modo os escravos foram retirados de seus cenários na África, no início do escravismo brasileiro moderno. E eles só conseguiram resistir em Quilombos que nada mais eram do que criação de território real e simbólico. A maioria dos escravos que conseguiram reduzir os danos, ganhando qualidade de vida em meio ao sistema escravocrata, o fez aderindo ao branqueamento, que eram estratégias perversas de esquecimento da africanidade e de adoção de memórias elitistas, autoritárias, formadoras futuras de uma determinada "classe média" autoritária e transtornada, paranoica e estúpida, com a qual convivemos até hoje. 

                                    Entendo que o que sofremos hoje, no Brasil, não é uma ditadura, embora a gente possa xingar e chorar usando esse termo, não faz mal. Estamos sofrendo mesmo. Mas uma ditadura é um conjunto orgânico mais lento. Brincando um pouco: uma ditadura é um "troço" que é para ser um dinossauro, ela é um acontecimento de tipo "nacional" e ela acontece em países considerados inferiores, do ponto de vista da civilização moderna (que hoje desaba): latino-americanos, ou de predominância cultural dentro do espectro muçulmano, ou Islâmico, ou oriental (a grosso modo porque isso é infinitamente complicado). Mas como isso (que nos humilha tanto e impõe a nós a risada assustadora de verde-amarelos loucos e idiotizados) é uma guerra, isso é feito ao mesmo tempo em países de ponta da civilização moderna (França, Grécia, digamos a Europa inteira, quase), claro que em desenhos diferentes. Isso pode ter vários episódios assustadores para logo, logo se abrir em uma festa participativa e "democrática", claro, conduzida pelo reino da grande mídia. Uma guerra tem exércitos diferentes e tem trincheiras, que podem ser móveis. Uma guerra tem alvos imediatos e secundários, e obedece lógicas militares, de ocupação, de destruição das defesas inimigas. Isso que sofremos não é um regime, isso não é um acontecimento econômico explicável por planilhas de gastos, custos e produtividades. Hoje a Rede Globo só fala sobre Cuba, de um modo idêntico a uma ditadura, construindo uma imagem com se Fidel e Mussolini ou Franco fossem uma única e mesma alma, contorcendo-se para fazer isso, durante o dia inteiro. E toda a esquerda mundial dobra-se em reverência apaixonadas por aquele povo, daquela pequenina ilha, que se afirma (negramente) socialista. E a Globo precisou deixar um documentário mostrar um jovem cubano dizendo: "Não, não um novo socialismo. O mesmo socialismo. Seguiremos socialistas". 
                                    Quando uma guerra termina? Quando o exército vencedor aceita parar de atacar e aceita fazer um acordo de gerenciamento do conjunto do poder sobre as sociedades envolvidas. Precisamos entender o que o conjunto das famílias que sustentam o tal G8 têm em mente. Onde eles pretendem chegar? Qual é o projeto deles para os próximos 50 anos (de redução populacional no mundo, por exemplo, ou de construção de um mundo jurídico para duas espécies humanas distintas). Não basta colocar a juventude na linha vermelha. A julgar pela dinâmica da primeira guerra mundial, onde as trincheiras eram matadouros permanentes, os jovens acabarão desistindo. Precisamos visualizar com nitidez o inimigo. E se essa guerra é apoiada em estratégias de gaslighting (enlouquecimento do cenário, do real) então precisamos imbuir-nos de espíritos de Qorpo Santo e precisamos construir territórios simbólicos imunes - quilombos emocionais e filosóficos - onde a resistência possa, como dantes, falar a verdade, sinceramente. Falar, por exemplo, que o Fidel Castro perdeu a voz ao microfone ao anunciar as nacionalizações e estatizações de grandes empresas estrangeiras, no início da revolução cubana vitoriosa, porque a grandeza de um país soberano foi grande demais para a garganta dele e seu frágil corpo humano, naquele infinito e eterno momento histórico. Um país soberano, ah, ah, diria Qorpo Santo, ah,ah,ah!!!

DEBATE – SOBRE EUTANÁSIA – Paulo César Teixeira, Dinah Lemos, Nico Sales e Arlete Cunha


 “Holanda cogita autorizar suicídio assistido a quem ‘cansou de viver’. Proposta do governo contempla ajuda para a morte de pessoas que acham já ter vivido o suficiente, apesar de não estarem doentes, nem enfrentarem sofrimentos”. Essa é a manchete e a abertura de um artigo no site brasil.elpais.com e a matéria foi escrita por Isabel Ferrer. Postada no facebook pelo escritor e jornalista gaúcho (brasileiro) Paulo César Teixeira, conhecido como Foguinho, gerou um debate reproduzido aqui, em formato editado pelos participantes. Direito, inovação ética? Cruel abandono?
Paulo César Teixeira -  Reconheço que é uma questão complexa, que abala profundamente estruturas culturais e religiosas, mas também tendo a aceitar como uma escolha irremovível do indivíduo. Não é na Holanda que os templos estão sendo substituídos por livrarias, por falta de crentes? Não deve ser por acaso. Soube também que em outro país avançado nestas questões culturais - o Canadá -, a legislação passou a respeitar o costume de tribos indígenas de o filho abandonar o pai, já ancião, nas geleiras do norte, para que ele aguarde a chegada da morte. Penso que segue, de algum modo, uma trilha paralela. Lembro de um professor de Antropologia canadense comentar isso quando fiz filosofia na UFRGS nos anos 80. Há também relatos parecidos em comunidades do Japão. Curioso, não? Diferentes geografias, costumes alinhados.
Dinah Lemos  -  Um grande tema aqui. Eu não abro mão, não consigo pensar de outra maneira a não ser que não posso abrir mão da referência fundamental de que um ser humano vivo deve usufruir do direito de amar a vida e se entender com ela, com angústias e medos, mas com histórias vividas sobre isso, e superações, até a hora em que seja levado pela morte. A morte como um lugar dentro do território sagrado, onde não devemos querer entrar. Sim, a passagem, o momento admite a intervenção humana para a possibilidade de uma morte sem dor. Por outro lado, claro que uma pessoa que tenha seu "território simbólico" totalmente desaparecido deveria ter a possibilidade de morrer, mas, eu sempre pensaria em vê-la encontrar novos espaços, novos encontros, ainda que em um lugar estranho. Acho que uma pessoa levada para dentro de um "centro de encontro de velhos solitários" poderia ter bons momentos com outros solitários. Mas não um asilo depressivo.  É claro que se o território onde a pessoa solitária está é ruim, frio, desagradável, e se essa pessoa tiver 80 anos ou mais, ela poderá vir a desejar a interrupção de sua vida. Mas os esquimós e outras nações antigas tinham que lidar com a perda de saúde dos velhos e o medo das doenças da velhice e das mortes terríveis. Era de se esperar que houvesse uma tradição assim, deles buscarem eutanásias que os protegessem dessas doenças terminais da velhice. Mas hoje o mundo é outro, a medicina é outra. Não dá pra buscar exemplos da antiguidade e aplica-los em um território tecnológico e simbólico totalmente distinto. Eu não falo no direito sobre o próprio corpo, eu falo sobre o direito a ter oferecido para si e pela coletividade afeto, qualidade de vida, solidariedade, ternura, vontade de viver. Ora, se há um sentimento de abandono e a vontade de morrer para evitar a solidão, eu penso que há algo muito errado e cruel na coletividade, e isso deveria ser arrumado, antes de naturalizar a morte de velhos deprimidos. Mais um indicador da minha opinião: prefigurações de um novo direito, no qual a perda da qualidade de vida passaria a ser um acontecimento natural a produzir um inédito direito à morte. Noções de administração dos fetos e dos velhos antes da morte. A morte e o nascimento como acontecimentos agora fabricados, disciplinados, controlados por um sistema higienizador das regularidades humanas.
Paulo César Teixeira  - Como falei antes, Dinah, respeito a complexidade do tema, antes de tudo. Mas não me sinto capacitado a analisar culturas tão distintas apenas pelo viés tecnológico. Também não creio em evolução histórica, no sentido de que os tempos atuais são necessariamente melhores em comparação com os anteriores. Essa racionalidade me escapa. Por fim, também não creio que as soluções buscadas pela coletividade irão solucionar todos os impulsos e mistérios do ser humano. Em resumo, estou bem longe de concordar contigo.
Dinah Lemos - Entendo o que você fala e acho também que tem cabimento em nosso mundo. Também não quero dizer que, em nome de um suposto "direito à vida" abstrato, uma pessoa velha em agudo sofrimento psíquico de solidão não possa ficar tomando calmantes fortes até seu coração parar enquanto ela está dormindo. Aceito sua opinião, apenas, como historiadora, tenho a tendência a ler o processo histórico. Foi isso que tentei fazer. Mas é um grande debate...
Paulo César Teixeira - Não concordei com o modo apressado com que você fez a leitura do costume das outras civilizações. Você as leu pela ótica e racionalidade de nossa cultura, o que considero um erro crasso, que, no entanto, é bastante comum em nosso meio. Mas estamos sempre juntos.
Dinah - Bom, eu digitei uma resposta ligeira, Foguinho. Não é minha intenção resumir o olhar a um filtro apenas. Registrei um significado que acredito estar lá, naquele acontecimento e que não estaria aqui, não obstante acabe sempre estando, uma vez que os velhos pobres morrem sofrendo muito e que os mais pobres sofrem desde os 40 anos, com as perdas dos dentes e muitos sofrimentos. Eu vejo isso aqui onde vivo. Então eu não fiz a leitura de toda a riqueza de conteúdos daquelas culturas, apenas fiz um registro que se colava na minha subjetividade sobre o tema. Acho até que esse tipo de eutanásia desvelaria a má qualidade de vida de muitos, nesse século vinte e um terrível, eu não sou contra a sua reflexão, pensando bem. Aceito a ideia em debate, sobre a lei que permite, mas defenderia que as pessoas fossem estimuladas a tentar viver ainda e buscar algo novo, ainda.
Paulo César Teixeira -  O que mais me atrai nesse tema _ e me levou a compartilhar o post _ não é qual a melhor lei, a melhor política social a ser aplicada, e sim o quanto uma iniciativa dessas, tomada por um governo constituído, estremece as profundezas de nossas crenças e certezas mais arraigadas. Entende? Não estou em busca de uma resposta. O abalo que a discussão provoca me satisfaz, e é ele que vai abrir caminho para futuras respostas.
Dinah Lemos  - Sem dúvida. Aliás, estão entrando falas mais "vivas" e deixando de ter sentido as falas de propaganda de um conceito simples. Há algo novo acontecendo, tá na cara...
Arlete Cunha  -É uma grande discussão! Deixo aqui uma HildaHilst: "Os cascos enfaixados para que eu não ouça o teu duro trote? É assim, cavalinha, que me virás buscar? Ou porque te pensei severa e silenciosa, virás criança num estilhaço de louças? Amante, porque te desprezei? Ou com ares de rei, porque te fiz rainha!"
Paulo César Teixeira  - Que ótimo!
Nico Sales  -Existe também a motivação econômica de um país (e um continente) com uma população cada vez mais idosa e longeva. De certa forma essa proposta "dá conta" disso e todos os gastos públicos com esse contigente crescente de pessoas..
Paulo César Teixeira - Gente, a proposta não é de extermínio em massa de velhos. Pelo que entendi - e não estou defendendo a proposta, apenas gosto do debate que ela provoca -, é uma brecha na legislação para que seja possível o "suicídio assistido" em casos rigorosamente excepcionais, em que a pessoa não deseja mais viver, ainda que não esteja doente ou com dores insuportáveis. A bem dizer, é uma eutanásia da alma. Não creio que possa ter qualquer impacto minimamente significativo nos custos econômicos com a população idosa.
Nico Sales - Mas não parece arbitrária a limitação etária? A mim parece, e por isso vejo pelo viés da economia...
Dinah Lemos - Adolescente se matando já tem muito, os índices de servidores públicos também estão aumentando no mundo inteiro. Há uma diferença entre suicídio e a tal de eutanásia, ou algo do gênero. O suicídio não precisa de permissão. Ele ocorre. E de várias maneiras. Esse acontecimento é uma morte induzida por medicação, algo não traumático e indolor. E sem culpa de ninguém. Então, é realmente em uma situação de dor emocional crônica, grave e sem recuperação e precisaria de uma junta médica... Precisaria de um entendimento, um laudo, psiquiátrico de que o sujeito esta em pleno gozo de sua capacidade de escolha, de que ele está convencido de que sua dor emocional não tem cura (que conversa, eu vi algo parecido no diretório nacional do PT, em 1986, quando as feministas levaram a bandeira do aborto e alguns dirigentes mais jovens se botaram a comparar com esse debate, sobre a autanásia. Conversas sobre limites da vida. Na época, eu fiquei furiosa e decepcionada. Pensava eu que eles estavam atrapalhando ao “aumentar o tamanho do conjunto temático”).
Nico Sales - Pois é. Mas acho interessante de qualquer forma a discussão também. Li algumas opiniões sobre essa notícia e fiquei me perguntando, nessa mudança de paradigma sobre a morte e a relação disso com o Estado: suicídio assistido é mais autonomia ou mais regulação?
Dinah Lemos - Aí entra o que o Foguinho colocou em debate. O suicídio, creio eu, ocorre, ponto. A palavra carrega um tabu e uma natureza paradigmática. O que o Paulo César Teixeira colocou em análise, creio, foi algo dentro da seguinte dimensão: o sujeito é mais velho e infeliz de um modo crônico. Bom, se o Estado regula isso (sim, é mais regulação estatal), então a figura da pessoa cronicamente infeliz, de um modo devastador, ganha o direito (isso é filosofia do direito) a sair de cena com o apoio da sociedade civil e de sua Cultura (coloco em maiúsculo para diferenciar do significado mais diminuto, de um conhecimento adquirido ou de memórias étnicas. Falo de um conjunto paradigmático presente no senso comum). Entra aí um conteúdo cultural que é totalmente distinto do que o cristianismo instalou no mundo desde dois mil anos. A vida passa a não ser apenas 'vida nua" (Agamben), ela se torna um acontecimento político mais complexo e o Estado poderá favorecer, em sua regulação jurídica, outros quadros de final da vida e começo da morte.
Nico Sales -  Sim.. a minha dúvida é qual o embasamento filosófico que limita essa assistência à terceira idade. Não porque me interessa que haja uma ampliação da lei, que nem sei se concordo, mas porque não vejo justificativa que não me faça ver a limitação como uma hipocrisia e como uma medida de alívio dos gastos públicos.
Paulo César Teixeira  - Sob esse ponto de vista, estou inteiramente de acordo com a perspectiva que o Nico abre para a discussão, muito mais abrangente em comparação ao ângulo meramente econômico. Não bastasse regular todos os aspectos da vida, o estado também se julga capaz de regular a morte do indivíduo. Muito Foucault isso, hein?
Nico Sales -  Pois é. Tensionei a questão da idade para pensar a base ética da proposta e suas ressalvas (e o que isso revela de interesses nela contidos), não por acreditar que a lei deva ser ampliada. Até porque nisso tudo me parece que há mais uma nova tecnologia de controle em curso do que qualquer outra coisa... Por que não interessa ao estado investir em meios que dêem conta de valorizar a vida desses que agora ele "autoriza" a morrer? De qualquer forma o debate tem mil nuances que infelizmente é difícil de dar conta por aqui :/
Dinah Lemos  - Não precisamos ‘dar conta’, só levantar problemas. Estamos em um momento civilizacional, de passagem de um modo de vida a outro, em que os centros de pesquisa estão começando a fabricar seres humanos. O primeiro feto com material genético de três pessoas foi produzido no México. As elites tecnológicas vão produzir seres humanos. Então o início da vida está deixando de ser natural. Teremos, por óbvio, o debate sobre o fim da vida. Mas eu acho que o direito de morrer não reduz o direito de viver do sujeito velho. O indivíduo velho não vai morrer sem ter certeza, em caso de escolha. Ou então estaremos supondo que esse indivíduo não tem mais capacidade de decidir, digamos assim, que ele seria uma espécie de ‘menor incapaz’.  Começamos a ver pessoas viverem mais de cem anos e fora de uma comunidade que dá valor a essa longevidade. Há tecnologia para prolongar a vida, mas a sociedade estimula uma Cultura na qual o jovem, o novo, a inovação é o mais inteligente, lúcido e desejável. O velho longevo vira plateia de um mundo que não é mais seu. Acho um debate pertinente.
Paulo César Teixeira -  Sei que essa conversa já foi longe demais, mas gostaria de acrescentar algo sobre o tal "romantismo mórbido" ao qual me referi antes. Recordo que, em minha juventude, no final dos anos 70, havia casos recorrentes de jovens que se matavam, pelo menos nos círculos sociais que eu frequentava. Ou se jogavam do alto de um prédio na Borges de Medeiros, ou fechavam portas e janelas e abriam o gás da cozinha, por aí vai. Certamente, para tal frequência de casos de suicidas entre a juventude da época, que - pelos relatos que dispomos - não se restringiu a Porto Alegre ou ao Brasil, foi um fenômeno aparentemente bem mais amplo, contribuía o ambiente de desolação e falta de perspectivas da época, assim como o abuso do consumo de "drogas". De qualquer modo, este é um assunto que, até hoje, não vi ser analisado em profundidade, talvez porque a morte e o suicídio, em particular, sejam temas ainda desconfortáveis para nós. A propósito, abaixo transcrevo um trecho que fala exatamente sobre isso, do Esquina Maldita:
“O fascínio da humanidade pela ideia do suicídio sempre existiu, mas em alguns períodos pareceu ganhar maior amplitude, como na parte final do XVIII. José Antônio Silva chama atenção para o fato de que, de acordo com relatos históricos, consta ter havido nesse período uma onda de suicídios na Europa supostamente motivada pela publicação, em 1774, de Os sofrimentos do Jovem Werther, de Goethe – obra que narra os extremos de uma paixão cujo limite é a própria morte. Em certa medida, o fenômeno talvez tenha se repetido na década de 1970.
Sem dúvida, um dos componentes trágicos dos anos 1970 é o saldo de jovens que enlouqueceram ou cometeram suicídio. As drogas, certamente, contribuíram muito com esse processo. “Perdi amigos que nunca mais voltaram”, relata José Antônio, usando a gíria da época. O poeta e compositor piauiense Torquato Neto, um dos idealizadores do Tropicalismo, por exemplo, se matou em 1972, um dia após completar 28 anos. “A paisagem não sustenta o teu lirismo”, escreveu ele. No meio underground, o exemplo do tropicalista se tornou emblemático. “Era comum ouvir alguém citando Torquato no Alaska”, recorda José Antônio.(...)

Em busca de explicações para a onda de loucura e suicídios que se abateu sobre a juventude ao longo da década de 1970, Giba Rocha lembrou uma entrevista que realizou como repórter da Folha da Manhã com o cantor Gilberto Gil. Em certo momento da conversa, o artista baiano contou que Caetano Veloso (amigo e parceiro da Tropicália) mal conseguiu balbuciar uma palavra quando experimentou pela primeira e única vez a maconha, de tão impactado que ficou com os efeitos da erva. “Esse exemplo me vem à mente quando percebo que pessoas com uma percepção de vida muito aguçada nem deveriam se drogar. Muitos dos que piraram ou se mataram nos anos 1970 tinham uma hipersensibilidade por natureza, que foi levada ao limite pelo uso de drogas. Provavelmente tenham sido vítimas de uma overdose de sensibilidade.”