“Holanda cogita autorizar suicídio assistido a
quem ‘cansou de viver’. Proposta do governo contempla ajuda para a morte de
pessoas que acham já ter vivido o suficiente, apesar de não estarem doentes,
nem enfrentarem sofrimentos”. Essa é a manchete e a abertura de um artigo no
site brasil.elpais.com e a matéria foi escrita por Isabel Ferrer. Postada no
facebook pelo escritor e jornalista gaúcho (brasileiro) Paulo César Teixeira,
conhecido como Foguinho, gerou um debate reproduzido aqui, em formato editado pelos
participantes. Direito, inovação ética? Cruel abandono?
Paulo César Teixeira - Reconheço que é uma questão complexa, que
abala profundamente estruturas culturais e religiosas, mas também tendo a
aceitar como uma escolha irremovível do indivíduo. Não é na Holanda que os
templos estão sendo substituídos por livrarias, por falta de crentes? Não deve
ser por acaso. Soube também que em outro país avançado nestas questões
culturais - o Canadá -, a legislação passou a respeitar o costume de tribos
indígenas de o filho abandonar o pai, já ancião, nas geleiras do norte, para
que ele aguarde a chegada da morte. Penso que segue, de algum modo, uma trilha
paralela. Lembro de um professor de Antropologia canadense comentar isso quando
fiz filosofia na UFRGS nos anos 80. Há também relatos parecidos em comunidades
do Japão. Curioso, não? Diferentes geografias, costumes alinhados.
Dinah Lemos - Um
grande tema aqui. Eu não abro mão, não consigo pensar de outra maneira a não
ser que não posso abrir mão da referência fundamental de que um ser humano vivo
deve usufruir do direito de amar a vida e se entender com ela, com angústias e
medos, mas com histórias vividas sobre isso, e superações, até a hora em que
seja levado pela morte. A morte como um lugar dentro do território sagrado,
onde não devemos querer entrar. Sim, a passagem, o momento admite a intervenção
humana para a possibilidade de uma morte sem dor. Por outro lado, claro que uma
pessoa que tenha seu "território simbólico" totalmente desaparecido
deveria ter a possibilidade de morrer, mas, eu sempre pensaria em vê-la
encontrar novos espaços, novos encontros, ainda que em um lugar estranho. Acho
que uma pessoa levada para dentro de um "centro de encontro de velhos
solitários" poderia ter bons momentos com outros solitários. Mas não um
asilo depressivo. É claro que se o
território onde a pessoa solitária está é ruim, frio, desagradável, e se essa
pessoa tiver 80 anos ou mais, ela poderá vir a desejar a interrupção de sua
vida. Mas os esquimós e outras nações antigas tinham que lidar com a perda de
saúde dos velhos e o medo das doenças da velhice e das mortes terríveis. Era de
se esperar que houvesse uma tradição assim, deles buscarem eutanásias que os
protegessem dessas doenças terminais da velhice. Mas hoje o mundo é outro, a
medicina é outra. Não dá pra buscar exemplos da antiguidade e aplica-los em um
território tecnológico e simbólico totalmente distinto. Eu não falo no direito
sobre o próprio corpo, eu falo sobre o direito a ter oferecido para si e pela
coletividade afeto, qualidade de vida, solidariedade, ternura, vontade de
viver. Ora, se há um sentimento de abandono e a vontade de morrer para evitar a
solidão, eu penso que há algo muito errado e cruel na coletividade, e isso
deveria ser arrumado, antes de naturalizar a morte de velhos deprimidos. Mais
um indicador da minha opinião: prefigurações de um novo direito, no qual a
perda da qualidade de vida passaria a ser um acontecimento natural a produzir
um inédito direito à morte. Noções de administração dos fetos e dos velhos
antes da morte. A morte e o nascimento como acontecimentos agora fabricados,
disciplinados, controlados por um sistema higienizador das regularidades
humanas.
Paulo César Teixeira - Como falei antes, Dinah, respeito a
complexidade do tema, antes de tudo. Mas não me sinto capacitado a analisar
culturas tão distintas apenas pelo viés tecnológico. Também não creio em
evolução histórica, no sentido de que os tempos atuais são necessariamente
melhores em comparação com os anteriores. Essa racionalidade me escapa. Por
fim, também não creio que as soluções buscadas pela coletividade irão
solucionar todos os impulsos e mistérios do ser humano. Em resumo, estou bem
longe de concordar contigo.
Dinah Lemos - Entendo o que você
fala e acho também que tem cabimento em nosso mundo. Também não quero dizer
que, em nome de um suposto "direito à vida" abstrato, uma pessoa
velha em agudo sofrimento psíquico de solidão não possa ficar tomando calmantes
fortes até seu coração parar enquanto ela está dormindo. Aceito sua opinião,
apenas, como historiadora, tenho a tendência a ler o processo histórico. Foi
isso que tentei fazer. Mas é um grande debate...
Paulo César Teixeira - Não
concordei com o modo apressado com que você fez a leitura do costume das outras
civilizações. Você as leu pela ótica e racionalidade de nossa cultura, o que
considero um erro crasso, que, no entanto, é bastante comum em nosso meio. Mas
estamos sempre juntos.
Dinah - Bom, eu digitei uma
resposta ligeira, Foguinho. Não é minha intenção resumir o olhar a um filtro
apenas. Registrei um significado que acredito estar lá, naquele acontecimento e
que não estaria aqui, não obstante acabe sempre estando, uma vez que os velhos
pobres morrem sofrendo muito e que os mais pobres sofrem desde os 40 anos, com
as perdas dos dentes e muitos sofrimentos. Eu vejo isso aqui onde vivo. Então
eu não fiz a leitura de toda a riqueza de conteúdos daquelas culturas, apenas
fiz um registro que se colava na minha subjetividade sobre o tema. Acho até que
esse tipo de eutanásia desvelaria a má qualidade de vida de muitos, nesse
século vinte e um terrível, eu não sou contra a sua reflexão, pensando bem.
Aceito a ideia em debate, sobre a lei que permite, mas defenderia que as
pessoas fossem estimuladas a tentar viver ainda e buscar algo novo, ainda.
Paulo César Teixeira - O que mais me atrai nesse tema _ e me levou a
compartilhar o post _ não é qual a melhor lei, a melhor política social a ser
aplicada, e sim o quanto uma iniciativa dessas, tomada por um governo
constituído, estremece as profundezas de nossas crenças e certezas mais
arraigadas. Entende? Não estou em busca de uma resposta. O abalo que a
discussão provoca me satisfaz, e é ele que vai abrir caminho para futuras
respostas.
Dinah Lemos - Sem
dúvida. Aliás, estão entrando falas mais "vivas" e deixando de ter
sentido as falas de propaganda de um conceito simples. Há algo novo
acontecendo, tá na cara...
Arlete Cunha -É uma grande discussão! Deixo aqui uma
HildaHilst: "Os cascos enfaixados para que eu não ouça o teu duro trote? É
assim, cavalinha, que me virás buscar? Ou porque te pensei severa e silenciosa,
virás criança num estilhaço de louças? Amante, porque te desprezei? Ou com ares
de rei, porque te fiz rainha!"
Paulo César Teixeira - Que ótimo!
Nico Sales -Existe também a motivação econômica de um
país (e um continente) com uma população cada vez mais idosa e longeva. De
certa forma essa proposta "dá conta" disso e todos os gastos públicos
com esse contigente crescente de pessoas..
Paulo César Teixeira - Gente, a
proposta não é de extermínio em massa de velhos. Pelo que entendi - e não estou
defendendo a proposta, apenas gosto do debate que ela provoca -, é uma brecha
na legislação para que seja possível o "suicídio assistido" em casos
rigorosamente excepcionais, em que a pessoa não deseja mais viver, ainda que
não esteja doente ou com dores insuportáveis. A bem dizer, é uma eutanásia da
alma. Não creio que possa ter qualquer impacto minimamente significativo nos
custos econômicos com a população idosa.
Nico Sales - Mas não parece
arbitrária a limitação etária? A mim parece, e por isso vejo pelo viés da
economia...
Dinah Lemos - Adolescente se
matando já tem muito, os índices de servidores públicos também estão aumentando
no mundo inteiro. Há uma diferença entre suicídio e a tal de eutanásia, ou algo
do gênero. O suicídio não precisa de permissão. Ele ocorre. E de várias
maneiras. Esse acontecimento é uma morte induzida por medicação, algo não
traumático e indolor. E sem culpa de ninguém. Então, é realmente em uma
situação de dor emocional crônica, grave e sem recuperação e precisaria de uma
junta médica... Precisaria de um entendimento, um laudo, psiquiátrico de que o
sujeito esta em pleno gozo de sua capacidade de escolha, de que ele está
convencido de que sua dor emocional não tem cura (que conversa, eu vi algo
parecido no diretório nacional do PT, em 1986, quando as feministas levaram a
bandeira do aborto e alguns dirigentes mais jovens se botaram a comparar com
esse debate, sobre a autanásia. Conversas sobre limites da vida. Na época, eu
fiquei furiosa e decepcionada. Pensava eu que eles estavam atrapalhando ao
“aumentar o tamanho do conjunto temático”).
Nico Sales - Pois é. Mas acho
interessante de qualquer forma a discussão também. Li algumas opiniões sobre essa
notícia e fiquei me perguntando, nessa mudança de paradigma sobre a morte e a
relação disso com o Estado: suicídio assistido é mais autonomia ou mais
regulação?
Dinah Lemos - Aí entra o que o
Foguinho colocou em debate. O suicídio, creio eu, ocorre, ponto. A palavra
carrega um tabu e uma natureza paradigmática. O que o Paulo César Teixeira
colocou em análise, creio, foi algo dentro da seguinte dimensão: o sujeito é
mais velho e infeliz de um modo crônico. Bom, se o Estado regula isso (sim, é mais regulação estatal), então a figura
da pessoa cronicamente infeliz, de um modo devastador, ganha o direito (isso é filosofia do direito) a
sair de cena com o apoio da sociedade
civil e de sua Cultura (coloco em maiúsculo para diferenciar do
significado mais diminuto, de um conhecimento adquirido ou de memórias étnicas.
Falo de um conjunto paradigmático presente no senso comum). Entra aí um
conteúdo cultural que é totalmente distinto do que o cristianismo instalou no
mundo desde dois mil anos. A vida passa a não ser apenas 'vida nua"
(Agamben), ela se torna um acontecimento político mais complexo e o Estado
poderá favorecer, em sua regulação jurídica, outros quadros de final da vida e
começo da morte.
Nico Sales - Sim.. a minha dúvida é qual o embasamento
filosófico que limita essa assistência à terceira idade. Não porque me
interessa que haja uma ampliação da lei, que nem sei se concordo, mas porque
não vejo justificativa que não me faça ver a limitação como uma hipocrisia e
como uma medida de alívio dos gastos públicos.
Paulo César Teixeira - Sob esse ponto de vista, estou inteiramente
de acordo com a perspectiva que o Nico abre para a discussão, muito mais
abrangente em comparação ao ângulo meramente econômico. Não bastasse regular
todos os aspectos da vida, o estado também se julga capaz de regular a morte do
indivíduo. Muito Foucault isso, hein?
Nico Sales - Pois é. Tensionei a questão da idade para
pensar a base ética da proposta e suas ressalvas (e o que isso revela de
interesses nela contidos), não por acreditar que a lei deva ser ampliada. Até
porque nisso tudo me parece que há mais uma nova tecnologia de controle em
curso do que qualquer outra coisa... Por que não interessa ao estado investir
em meios que dêem conta de valorizar a vida desses que agora ele "autoriza"
a morrer? De qualquer forma o debate tem mil nuances que infelizmente é difícil
de dar conta por aqui :/
Dinah Lemos - Não precisamos ‘dar conta’, só levantar
problemas. Estamos em um momento civilizacional, de passagem de um modo de vida
a outro, em que os centros de pesquisa estão começando a fabricar seres humanos. O primeiro feto com material
genético de três pessoas foi produzido no México. As elites tecnológicas vão
produzir seres humanos. Então o início da vida está deixando de ser natural. Teremos, por óbvio, o debate
sobre o fim da vida. Mas eu acho que
o direito de morrer não reduz o
direito de viver do sujeito velho. O indivíduo velho não vai morrer sem ter
certeza, em caso de escolha. Ou então estaremos supondo que esse indivíduo não
tem mais capacidade de decidir, digamos assim, que ele seria uma espécie de
‘menor incapaz’. Começamos a ver pessoas
viverem mais de cem anos e fora de uma comunidade que dá valor a essa
longevidade. Há tecnologia para prolongar a vida, mas a sociedade estimula uma
Cultura na qual o jovem, o novo, a inovação é o mais inteligente, lúcido e
desejável. O velho longevo vira plateia de um mundo que não é mais seu. Acho um
debate pertinente.
Paulo César Teixeira - Sei que essa conversa já foi longe demais, mas
gostaria de acrescentar algo sobre o tal "romantismo mórbido" ao qual
me referi antes. Recordo que, em minha juventude, no final dos anos 70, havia
casos recorrentes de jovens que se matavam, pelo menos nos círculos sociais que
eu frequentava. Ou se jogavam do alto de um prédio na Borges de Medeiros, ou
fechavam portas e janelas e abriam o gás da cozinha, por aí vai. Certamente,
para tal frequência de casos de suicidas entre a juventude da época, que -
pelos relatos que dispomos - não se restringiu a Porto Alegre ou ao Brasil, foi
um fenômeno aparentemente bem mais amplo, contribuía o ambiente de desolação e
falta de perspectivas da época, assim como o abuso do consumo de
"drogas". De qualquer modo, este é um assunto que, até hoje, não vi
ser analisado em profundidade, talvez porque a morte e o suicídio, em
particular, sejam temas ainda desconfortáveis para nós. A propósito, abaixo
transcrevo um trecho que fala exatamente sobre isso, do Esquina Maldita:
“O fascínio da humanidade pela
ideia do suicídio sempre existiu, mas em alguns períodos pareceu ganhar maior
amplitude, como na parte final do XVIII. José Antônio Silva chama atenção para
o fato de que, de acordo com relatos históricos, consta ter havido nesse
período uma onda de suicídios na Europa supostamente motivada pela publicação,
em 1774, de Os sofrimentos do Jovem
Werther, de Goethe – obra que
narra os extremos de uma paixão cujo limite é a própria morte. Em certa medida,
o fenômeno talvez tenha se repetido na década de 1970.
Sem dúvida, um dos componentes
trágicos dos anos 1970 é o saldo de jovens que enlouqueceram ou cometeram
suicídio. As drogas, certamente, contribuíram muito com esse processo. “Perdi
amigos que nunca mais voltaram”, relata José Antônio, usando a gíria da época.
O poeta e compositor piauiense Torquato Neto, um dos idealizadores do
Tropicalismo, por exemplo, se matou em 1972, um dia após completar 28 anos. “A
paisagem não sustenta o teu lirismo”, escreveu ele. No meio underground, o
exemplo do tropicalista se tornou emblemático. “Era comum ouvir alguém citando
Torquato no Alaska”, recorda José Antônio.(...)
Em busca de explicações para a
onda de loucura e suicídios que se abateu sobre a juventude ao longo da década
de 1970, Giba Rocha lembrou uma entrevista que realizou como repórter da Folha
da Manhã com o cantor Gilberto Gil. Em certo momento da conversa, o artista
baiano contou que Caetano Veloso (amigo e parceiro da Tropicália) mal conseguiu
balbuciar uma palavra quando experimentou pela primeira e única vez a maconha,
de tão impactado que ficou com os efeitos da erva. “Esse exemplo me vem à mente
quando percebo que pessoas com uma percepção de vida muito aguçada nem deveriam
se drogar. Muitos dos que piraram ou se mataram nos anos 1970 tinham uma
hipersensibilidade por natureza, que foi levada ao limite pelo uso de drogas.
Provavelmente tenham sido vítimas de uma overdose de sensibilidade.”