Fazendo feijão

Virgínia Woolf  entrou na minha casa na forma de um livro parado na estante e assustador. Deram-me um livro chamado "Os diários de ...", justo no momento mais devastado da minha vida, quando eu havia perdido quase todas as relações afetivas até então construídas; e veio o livro parar na prateleira como se ficasse lá, me olhando, com uma intenção de denúncia.  Eu tinha um medo horrível de ser como ela, de ficar esperando a morte todos os dias, nada mais importando. Na mesma época, alguém me segredou: há quem acredite que você será a próxima; diziam isso sobre Dóris, uma feminista inteligente e intelectual, exitosa em seu suicídio, nos idos de final dos anos 80, início dos 90. Aquilo tudo teve a força do afeto, por mais incrível que pareça, ligando meu famoso botão da rebeldia; não vou me matar, não serei nunca o que querem que eu seja, não honrarei expectativas banais. Como é lindo o movimento feminista, doce e lento, corpo-a-corpo, tão lento como uma tartaruga de duzentos anos.

O Zézinho falara, lembro-me perfeitamente do sorriso irônico e impaciente dele naquela hora, olhando pra mim como se eu fosse exageradamente ingênua: -"o feminismo é obra da burguesia!", referindo-se à luta pelo direito ao voto feminino, à invenção da pílula anticoncepcional e à bandeira da igualdade de direitos entre gêneros; dizia ele que a guerra levara o Capitalismo a necessitar das mulheres no trabalho assalariado e em atividades públicas, externas ao mundo doméstico. Lembro-me de tê-lo olhado com indignação, sentindo a opinião dele como má fé própria dos homens que fazem política, eu não suportando a pressão dos homens de esquerda para consagrar uma interpretação do mundo na qual as mulheres adequadas e respeitáveis eram as que pronunciavam solenemente a desimportância, a secundariedade dos desejos femininos diante dos desejos operários revolucionários. E isso tudo foi antes daquela Virgínia Woolf invadir minha estante, denunciando-me em meu solitário fracasso.

Choro, soluçando, agora. Seco os olhos, as lágrimas caindo aos borbotões, com a manga da camiseta verde musgo. Choro de alívio por ter conseguido passar por todas as ameaças dos últimos 30 anos. O José Carlos  Oliveira (não lembro se é "de Oliveira"), o Zézinho, era chamado, de modo pejorativo, Zé-guerrilha, nem sei por quem, era uma fofoca, um comentário que eles faziam entre si, os meninos do Setor Jovem do MDB, lá por 1978, quando eu convivia com eles. Parece que "inimigos" o nomeavam dessa maneira, ao estilo que hoje chamam de buylling. O Zézinho provavelmente defendia Cuba e a Revolução Russa com unhas e dentes, daquele modo ansioso e agitado como ele era sempre, mas era, na verdade, um trotskysta, daqueles que apareciam na história da esquerda brasileira como não tendo nunca, jamais, pensado em guerrilha. Na solenidade de réquiem dedicada à ele, na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, Brasil, lembro-me do Adão Villa Verde e do Gerson Almeida falando, devastados por uma emoção grandiosa, repetirem as últimas palavras do Zé, pronunciadas no hospital onde morrera, antes da infecção pelo HIV se tornar uma enfermidade controlável: ele havia dito ser urgente e decisiva a imersão radical do conjunto dos militantes da esquerda no espaço institucional. O Zézinho queria uma ocupação pacífica e persistente das estruturas do Estado: era um democrata-socialista, defensor do que foi tentando e ainda é objetivo do Partido dos Trabalhadores: ganhar eleições e,digamos, virar o jogo por meio de uma conquista de espaços de hegemonia, ao estilo do que dizem que pensou Gramsci, que eu nunca li.

Ganhei o livro da Virgínia Woolf  na época em que senti, sem entender nada, que a esquerda gaúcha estava se deixando sensibilizar por ambições pessoais, pequenos desejos de notoriedade e sucesso profissional; eu querendo gritar essa denúncia, eu exageradamente lúcida, cazuziana, cassandramente "Amy Winehouse" do feminismo gaúcho da década de 1980. O livro dos diários de Virgínia como que me acusava, da prateleira: você é incompetente para o futuro que se anuncia, você será sempre descrita como megalomaníaca, desajustada e vaidosa. Mais tarde percebi ser o desespero destino de muitos daqueles jovens com vinte anos em 1977, principalmente os que teimavam em buscar um devir libertário em meio a discursos de tomada de poder.
Como aparecem os saqueadores em um momento de mudança civilizacional?  Como os bárbaros invadem?
Durante muitos anos acordei, invariavelmente, com um sentimento de medo, um incômodo grande, como se  não quisesse ter despertado. Acordei muitas manhãs com pena de ter acordado. Só voltei a gostar de acordar quando encontrei a solução do exílio, a ilha e a distância eficiente daqueles labirintos sem ética da cidade natal. Aqui, finalmente, li o livro da Virgínia Woolf e a achei uma mulher comportada, inteligente, criativa e vítima da depressão; se ela vivesse nos dias de hoje tomaria antidepressivos e faria análise. Prefiro Clarisse Lispector. A tradição de comprimir as mulheres em limites mórficos redutores é devastadora, compacta e só pode ser quebrada no exílio das bruxas.  Chega, por hoje, esses assuntos são muito complicados e preciso cortar o charque e a linguiça.  Estou fazendo feijão.

                                                                      versão três: meio desobediente e inconclusa



O novo ascetismo: anarco-eremitas



Antigamente as pessoas escreviam e-mails, agora só vemos a utilização de mensagens curtas em redes sociais e em celulares. Você percebe como a tecnologia evoluiu com uma velocidade a cada ano maior? Você entende que a transformação constante das formas de ver, ouvir, falar e sentir cria um sentimento latente, sub-reptício, de ausência de importância para os significados de todas as coisas que não são grandes, fundos e definitivos rastros? Os ídolos, os governantes, as celebridades, os grandes cientistas, empresários, inventores, modelos, atrizes, atletas, os grandes traficantes, os mais terríveis criminosos, as vítimas mais famosas. Ainda escrevemos e-mails, no trabalho, ou para comunicações mais formais; talvez alguém na contramão dedique-se a compor longas cartas em correspondência eletrônica. Você sabe, isso vai parar,  essa velocidade cada vez maior vai bater em um muro, esse limite é quase visível. Teremos de nos acalmar.

Adiantaria construir, com cuidado e retidão, uma teoria esclarecedora de que isso é um totalitarismo de proporções inéditas e, portanto, de desmanchamento inimaginável? O remédio poderia ser uma enorme, fantástica e rigorosa explicação? Um grande livro para ser distribuído ao mundo inteiro, explicando que não podemos continuar vivendo dessa maneira?  E se fosse possível encontrar um sujeito imune e munido de um discurso inaugurador, a quem ele remeteria sua linguagem? Pensar se o sujeito acontece, se ele brota de si, se ele nasce de intersecções coletivas e realiza uma nova sociabilidade confundindo-se com ela seria um caminho de entendimento? Por meio de que atitudes podemos ter esperança de mudar o desmanchamento cruel desse mundo no qual vivemos?

Parece haver o caminho da oração, do abandono do"ego" em osmoses de entrega absoluta a devires de quem quer que impulsione os acontecimentos, seja quem for e como se pareça. Mas não estamos  vendo os caminhos de oração interferirem na velocidade com a qual o mundo é desorganizado pela tecnologia sempre em mutação. Além das entregas a deuses nomeados há, sem dúvida, uma entrega generalizada à drogadição, cada vez em maiores proporções, isto é, aumentam os que rezam e aumentam os que se tornam dependentes da adição de algo, para fazerem as suas vidas valerem a presença no mundo, seja o uso de drogas ilegais, seja o uso de álcool, de tabaco, de açúcar, de gordura, de refrigerantes, de objetos comprados alucinadamente em castelos/igrejas do deus Consumo, chamados "shopping". 

Há alguém que saiba o que (ou quem) está resistindo a isso, a essa grande colisão? Defender tribos ou animais em extinção é resistir? Protestar em redes sociais é algo que bloqueia a profusão de inaugurações sem controle de quem quer que seja? Existe alguma possibilidade, diante da colossal violência praticada por um por cento sobre noventa e nove por cento da população humana, e, de resto, sobre os demais viventes no Planeta Terra, a mais ínfima possibilidade de que o espaço virtual amplie a liberdade de expressão dos indivíduos e aumente os entendimentos coletivos propiciando uma contenção do desmanchamento generalizado das memórias? O espaço virtual pode abrigar o dom de consolidar memórias e entendimentos?

E se isso for um único e devastador redemoinho? Um furacão só não desordena aquilo que não atinge.
Percebe? Quantas pessoas neste mundo se mantém descrentes de toda essa parafernália produzida pela maneira capitalista de organizar o Planeta e se sentem habitando um tempo que não é o seu? Os eremitas, as múltiplas formas do ascetismo hodierno onde estão?

Você deve estar pensando em monges passando fome no deserto.  Ascetismo: "Prática da abstenção de prazeres e até do conforto material, adotada com o fim de alcançar a perfeição moral e espiritual. O asceta submete-se a dieta rigorosa e a frequentes jejuns, sendo que os antigos cristãos se sujeitavam até a castigos físicos, como a flagelação". Do dicionário on-line. Não, não é isso. Todas as formas de sujeito e de coletividade conhecidas foram tragadas pela metamorfose compulsiva, isto é, os antigos eremitas estão por aí, pendurados em ausências enfeite, eles mesmos um prenúncio de um nada. Falo de uma nova espécie de ascetismo, não sei bem sobre o que falo, sinto, sinto ardentemente, convicta, apaixonada. Quero descobrir o que seria isso: uma subjetividade não egocêntrica surfando na inconstância dos acontecimentos, na perda de memória; abrigando entendimentos invioláveis, pétreos, inesquecíveis.


Vocês estão aí, eu sei. Não sou única. Não tenho tempo para estudar  a Bíblia e os outros livros sagrados; não me é permitido ter tempo para ler com calma os filósofos: Hegel, Marx, Nietzsche, Adorno, Lacan, Deleuze, Guattari, Safatle e tantos outros. Mal consigo estar atenta e forte. Não sei afirmar por onde anda o sujeito e no que ele configura coletividades ou é posto por elas. Sei que passa por mim uma recusa intensa do que é o mundo hoje, do que são as diversas ordens simbólicas da propriedade concentrada, da formação do Capital. Meu ascetismo não se manifesta na disciplina da abstenção dos prazeres materiais, ele é mais uma recusa constante de aceitar esse mundo do consumo e da velocidade, da guerra e do desperdício, da crueldade e da imposição; meu ascetismo é meio louco e passa, às vezes, pelo vinho, pelo cigarro, pela comida com carne e molho. E pelos remédios para suportar o medo e a tristeza de ser obrigada, todos os dias, a trabalhar de um modo insano, para sustentar uma cultura insana que nos subordina. A perfeição moral e espiritual, para mim (o meu "mim" se sente existindo, embora tenha quem diga que somos todos objetos afetados por um destino) é querer tudo e todos tranquilos, pacificados, criativos, fluentes, exatos e cheios de esperanças. 

Somos anarco-eremitas, todo mundo sabe que somos criadores de uma nova experiência de recusa do que nos é oferecido como "prazer mundano". E estamos por aí, sós. Significado de só: único. Sujeito? Será? Sim, acho que sim, o que está acontecendo vem de dentro de nós, novos ascetas, e é criação. 

                                                               versão 4 (escrita a versão 1 em 2009, melhorada, um pouquinho, em 19.01.2013)


As meninas e Nosferatus



Aquela mulher era uma escritora, sem dúvida, porque a única coisa que a deixava em paz era escrever. Escritores não são as pessoas aplaudidas em suas publicações, são todos os que têm necessidade de escrever para continuar vivendo, são escritores, são da casta dos escritores. Só isso. Não importa se escrevem mal ou bem, apenas precisam escrever para se sentirem tranquilos. Ela era uma escritora porque somente as palavras a tratavam com normalidade. Entenda-se: quando completou 20 anos, percebeu que o grupo ao qual tinha se vinculado rapidamente, com entusiasmo e lealdade, a achava estranha: foi um breve momento em que não a escolheram para participar da chapa do diretório acadêmico da faculdade. Ninguém disse o porquê e todos sabiam que ela desejava muito estar naquela diretoria. Porque ninguém disse o porquê ela entendeu que o motivo era ela mesma. Ela mesma era inadequada. Ponto. Foi por essa época o nascimento de seu vínculo com as palavras escritas. O renascimento, porque desde os dez anos de idade seu pai já a avisara: você escreve como gente grande. Foi a arma que seu pai lhe deu. Um pai não precisa dar mais nada a um filho, apenas uma única arma ele deve oferecer: o filho andará mundo a fora, para sempre, empunhando aquela ferramenta. E só isso importa. Os filhos desarmados perambulam sem sentidos, ao vento dos acontecimentos mais inconsistentes.
Depois daquele aviso, de que ela não era normal, de que não era percebida como normal sentiu, no meio de uma calçada, atravessando uma rua do centro da cidade natal, sentiu um instante de desaparecimento de sua condição de indivíduo. Sumiu, por um instante, de si mesma. Entendeu que era um horror e que deveria esquecer, com-ple-ta-men-te, no minuto seguinte, aquele instante de lucidez: não vou conseguir vencer, eu não sou capaz de conter o monstro que me habita. Esqueceu imediatamente.
Mais tarde, já vitoriosa em sua sobrevivência heróica, carregava o consolo de saber que os monstros de cada um acabavam por emergir, cedo ou tarde. Vingativa? Sim, era, mas isso era um direito seu. Aqueles monstros camuflados um dia iriam gostar de mim, ela pensava. Todos sempre foram intensamente solitários, era uma questão de tempos diferentes o aparecimento da solidão de cada um. Como aquele amigo dela, rejeitado toda a juventude por todos. Agora ele era um belo homem de quase cinquenta anos, acostumado a ser só, mantendo cotidianos cuidados intensos consigo mesmo, para conseguir ficar vivo e lúcido e vendo, agora, aquela gente viver decadências de diversos tipos. Quem sobrevive a uma juventude estigmatizada e se mantém lúcido e saudável vê os outros decaindo e não tem a menor piedade. É mesmo um luxo só o encontro entre duas pessoas humilhadas na infância e na juventude, quando elas se tornam adultos tranquilos e consistentes. Elas riem juntas do sofrimento dos seus algozes, sem pena. Penso que os jovens rebeldes foram usados para erguer os partidos de esquerda no Brasil da ditadura militar; penso que os adultos que os utilizaram não estavam preocupados com a segurança, o futuro e o bem estar daqueles jovens. Penso que alguns daqueles adultos fizeram sexo com meninas sabendo que não iriam se responsabilizar pela segurança emocional e física das garotas.
Pois bem, as garotas cresceram, entenderam, tiveram filhos, os educaram, limparam e alimentaram do modo como podiam, cheio de precariedades. Seus filhos casaram, as criticaram, herdaram algum instrumento de defesa e estão por aí, em alguma trincheira, quase todos desprezando os adultos que manipularam suas mães e pais.
Vou escrever um livro chamado “Nosferatus”: um cristal de reflexos de acontecimentos masculinos violentos e solitários; tenho de reler Bom dia para os defuntos de  Manuel Scorza, e O outono do patriarca, do Vargas Llosa.
Ah...tenho de rever o filme Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia.
Olho o meu reflexo no vidro da prateleira e vejo, feliz, realizada, que estou velha, estou velha.

                                                       versão dois: (ainda em elaboração, inconclusa, imprecisa, íntima, frágil)


Funck feminista




Um programa de televisão com uma linda mulher loira, magérrima e irônica, mais uma mulher velha e  professora e mais uma comediante risonha. Elas dizendo que o orgasmo que se tem só, chamado "clitoriano" é fácil demais e pode virar vício. Todas convencidas e ensinando: mulheres podem e devem buscar experiências mais interessantes e atingir orgasmos vaginais e prazer no corpo inteiro. Acompanhadas de um parceiro masculino. Plin, plin.


Uma história real de orgasmos vaginais breves com homens jovens aos vinte anos, namorados e maridos, delicados  amores  alegres e superficiais.  Elas tendo filhos e trabalhando duro, e sentindo ir-se a juventude até a separação e a irremediável solidão. Todas tendo orgasmo clitoriano:  sem homem, nem ninguém, só a fantasia de um coito muito viril e de longa duração sustentando esse agora enorme gozo. Avalanche inundando a  percepção. Vida nua.

A perfeição totalitária é um doente depressivo e paranoico falando, compulsivo, diante do analista: todos devem ser como ela quer. Assim, a democracia atual vomita uma profusão discursiva em elogios a si mesma e abocanha todos os enunciados possíveis de um passado onde existiam atores sociais em disputa de idéias e propósitos. Agora, todos devem amar, viver e trabalhar na mais perfeita ordem. Os orgasmos devem bater continências  vaginais. 

As notícias de desastres, matanças, assassinatos vêm pela manhã e à noite as novelas e o futebol. Na janta é proibido sofrer e todos devem ser felizes, conformados e esperançosos. Depois deve ser feito sexo, duas ou três vezes por semana, com preliminares e orgasmos vaginais. É proibido divulgar ou denunciar a ausência de orgasmo; é proibido dizer desaforos no facebook, penalizada a ocorrência de xingamentos a nomes próprios de pessoas dignas.

Uma velha gorda e bêbada que manda emails histéricos parecendo estar feliz e realizada sempre, sempre, sempre e, no entanto, sofre kafkianamente. “Ademais, a mulher também possui uma região sexual convexa – o clitóris, menor, mas talvez mais potente em prazer do que o órgão masculino (orgasmos cada vez mais sustentados)"  diz Mary Jane Alan Watts, que as intelectuais só podem ler escondido e no banheiro. Está me dando vontade de ler Virgínia Woolf.

Uma elite política da era do cara que quis ser uma espécie de filho de Getúlio, e todo mundo adorou de um modo tão paraguaio. Uma multidão de jovens negros em prisões imundas e seus filhos fumando crack nas ruas ou sobrevivendo bem, limpos e dançando funck, uma música que vem do jazz e tem uma letra terrorista muitas vezes:  fala de um sexo estúpido, boçal. As senhoras estudadas odeiam: devem ter educados orgasmos vaginais. Com homens.

                                                                                  versão dois

Cinquenta tons de vermelho




A casa estava silenciosa. Ela aproveitava para arrumar  arquivos naquele notebook já antigo.  Rever e repensar tudo o que foi guardado era uma tarefa fundamental, sem a qual não se poderia erguer uma forte memória pessoal, útil a pesquisas mais qualificadas no futuro (o que mais importava era o que fosse preservado como rastro, como prova). Acordara sonhando estar escrevendo uma carta para o diretor associado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, São Paulo, Brasil. Por que tinha aquele desejo/sonho em estabelecer um contato milagroso com pessoas influentes?  De onde vinha aquela sensação de que poderosos podem ser convencidos a serem bons e generosos por uma "Sherazade" qualquer? Sonhando com aquele encontro, mágico e decisivo, foi pesquisar, no Google e em páginas de academias consagradas, sobre o tema "arquivo pessoal".  Encontrou diversos textos em uma conceituada revista acadêmica. Acordando, de súbito, para a realidade nua e crua, achara todos aqueles conteúdos muito falsos e improfícuos. Tinha essa ânsia em conquistar uma pessoa inscrita nos círculos do poder e achá-la potencialmente lúcida, embora posicionada em situação antagônica aos pensadores excluídos, no jogo do Capital. Desde muito cedo tentara seduzir homens montados em armaduras do arquétipo do general do exército de ocupação. Ela era constituída em uma estrutura/sintoma, uma ex-prisioneira, outrora cooptada pelo torturador bonzinho, como se poderia ler no livro de Flávio Koutzi, "Pedaços de Morte no Coração", aquilo que fizeram com alguns dos presos políticos que conseguiram sobreviver à ditadura argentina, uma dissociação no centro de suas estruturas lógicas de ética: "eu caminho em uma corda bamba, entre dois julgamentos sobre a atitude de um dominador/ agenciador/ gerente/ comandante; isso me faz obter alguma genialidade, mas também me faz incomunicável, incoerente, esquizofrênica, isolada enfim". Ela não deveria esquecer nunca (embora estivesse sempre esquecendo, a todo momento):  não tinha que contatar com quem quer que seja no campo dos que ficaram no poder enquanto ela era conduzia progressivamente ao exílio, territorial e simbólico. Interessante era mesmo aquele seu amigo íntegro e exilado, no meio da cidade natal;  e exilado da sua maneira esquizoparticipativa. Ela adorava aquela definição do Deleuze & Guattari que diz ser o esquizofrênico uma vibração para fora, na borda das significações da cultura desta civilização que decaí e morre, no final do segundo milênio cristão.
                                        
                                                                             (versão dois : em análise, não divulgue)



Confissões sobre psiquiatria


                     Andei por vários psiquiatras desde o início da medicação com Anafranil. Foi esse remédio que me  tirou da situação de "morte interna", uma experiência xamânica, eu diria. Dom Juan Matus, o mestre de Castañeda havia escrito que a experiência sagrada, quando vivida sem a proteção de um guia, um mestre, pode matar (digamos que pode até facilmente matar). Na medicina, a "morte interna" é uma incrível sensação de vazio por dentro, como se você visse com seus próprios olhos um corpo por fora, o seu, sem que ele tenha você por dentro. Como se você visse um filme, em close, e teus olhos fossem a câmera e teu corpo e tudo em volta a imagem na tela. Eu deixei de existir e, ao mesmo tempo,  vi meu próprio corpo, com meus próprios olhos. E andei pela cidade natal, atrás de um psiquiatra, assim, sem ninguém dentro. Falei com o primeiro psiquiatra da minha vida assim, cavaleira inexistente munida apenas da armadura e de uma consciência plena e lúcida: estou muito doente, aquele sofrimento virou um instante antes da morte e se cristalizou assim, deixei de existir e estou viva, ainda.

                   O psiquiatra achado por mim disse que depois de uns dois dias dormindo por causa do Valium, e tomando Anafranil, eu acordaria comigo dentro de mim e para sempre. E para sempre tomando bloqueadores do Pânico. Foi meu primeiro psiquiatra, antes dele uma psicóloga, antes dele e dela eu ainda achando que só quem fica louco (sentindo essa idéia do mesmo modo como sentimos as idéias "assim como quem pega Aids" ou "assim como quem pega um câncer devastador), quem pega "loucura",  precisa de psiquiatra.  Depois de "pegar loucura" estive em mais seis ou sete psiquiatras. Larguei o primeiro porque ele, mais tarde, me pareceu um tanto insano; larguei a segunda porque tive a sensação, a uma certa altura, de que ela era muito mais infeliz do que eu; larguei o terceiro porque ele era maravilhoso, o pai que eu queria ter tido e ele queria que eu virasse uma moça adorável para um bom homem intelectual e culto me adotar como esposa. Um dia o velho comentou, a respeito de um intelectual conhecido na cidade e que tinha saído comigo umas vezes, "ele não é esquizofrênico, ele é ..." e disse algo sobre o cara ser um pouco abaixo da frequência que garantia relações saudáveis. Aí eu larguei o velho.

                      Estive,durante um ano, em uma psicóloga e pegando antidepressivos com um psiquiatra que ela indicara. A mulher foi embora da cidade e o psiquiatra também. Passei, então, por um perfeito idiota, que nem vale a pena contar agora (ele devia ser ligado à maçonaria - sou louca, quis experimentar a indicação de um maçom - e eu falei que a maçonaria perseguia pessoas como eu, e ainda perseguia junto com o pessoal do PT, nas gestões do serviço público depois que o Lula se elegeu, a maçonaria e o PT perseguiam a resistência de esquerda, que lutava - lutávamos - contra a exigência de produtividade abusiva, nos governos de 1990 em diante); o cara me deu um remédio para esquizofrenia. Eu achei ele doido e tomei para experimentar que barato dava; fiquei tendo momentos catatônicos, nos quais eu esquecia tudo o que estava a dizer e perdia a  conexão com a pessoa com a qual estava falando. Disseram: larga essa porcaria...vai num médico decente, mulher....

                      Fui num médico decente e comecei a tomar Fluoxetina e, mais tarde, Citalopram. Tomo 20 mg por dia. Tentei parar uma vez e comecei a ter arrepios em ondas e, antes que explodisse a adrenalina, voltei a tomar o bloqueador.

                        Adoro a Cidade Natal tanto quanto adoro ter ido embora. Ela é Blade Runner, um lugar do qual se deve ir embora, ainda que um dia se possa voltar. Esse é um sentimento- tango, meio Gardel.

                      No meio dessas aventuras, uma vez, fui a um psiquiatra bonito e em torno de 35 anos (aquela idade dos homens heróis das revistas Sabrina e das novelas de canal aberto) com cara de judeu. Ele falou que havia confusão no meu relato, que esta confusão me impregnava em razão do sofrimento ao qual eu havia sido exposta durante a minha vida. Diante da minha calma decepção com o que ele estava afirmando, ele falou: -“tu sabe, né? Tu sabe o que eu estou dizendo, tu é lúcida, tu entende que existe uma confusão e que tu luta para lidar com ela...tu é muito intelectualizada, tu percebe....”. Ele falou tudo isso com uma cara de "hamrãmm..heim?...te peguei, não?..confessa...". Esse cara tá dizendo que eu sou louca, pensei. Mostrei, tranquila, minha  decepção: você tá me chamando de louca, ele ficou nervoso, não deu certo, fui embora.
                     Depois fui ler Michel Onfray e seu “Tratado de Ateologia”. Não concordo com muita coisa mas me identifiquei com os ateus históricos descritos por ele como perseguidos.
                    Vinte e cinco anos depois de eu ter "pegado loucura" e dessas minhas andanças por psiquiatras entendi que loucura se pega quando somos submetidos a agressões súbitas e devastadoras, ou a agressões sutis e mascaradas mas contínuas e durante décadas; muitos de nós herdaram uma loucura pegada por seus pais e avós e mantiveram ela escondida na memória adquirida, até que uma violência qualquer a vertesse para o exterior de seus corpos. Os que não pegam loucura acabam pegando outra coisa: ninguém fica igual perante a tortura, a crueldade a perversidade, sejam elas visíveis ou dissimuladas.







Nada é parado, nada é seguro, nada é infinito ou puro.


De como era difícil ser militante revolucionário:

 [ O texto abaixo foi escrito em 1982 por uma moça de 24 anos já com alguns sintomas daquilo que mais tarde seria diagnosticado como "Síndrome do Pânico" associada à depressão. O original, apresentado em uma reunião de célula de uma organização pretensamente clandestina, chamada Organização Revolucionária Marxista Democracia Socialista, continha um número grande de erros em ortografia e gramática, comprometendo a força do conteúdo, embora a moça tivesse sido uma ótima aluna no primeiro e no segundo graus. Além disso, era um texto datilografado em máquina portátil mecânica, o que fazia com que os erros de datilografia e ortografia fossem bastante definitivos. Ela já estava com a memória muito abalada (embora nem desconfiasse), pela ansiedade crônica e pelo consumo intenso de álcool, maconha e nicotina, além de uma incapacidade de atenção e foco adquirida em seis anos de descoberta de um mundo não mais seguro do que o mundo no qual ela havia crescido:  estava prestes a reconhecer o tamanho  da sua desproteção e fragilidade. A moça se chamava Dinah e, depois de dois abortos em clínicas clandestinas, estava a uma distância muito curta de tornar-se mãe; não era intelectual, tinha pouca leitura e abandonara a universidade em 1980. Carregava possibilidades de transtornos emocionais já decorrentes do histórico das famílias de seus pais. Tinha uma bagagem boa de leitura dos clássicos do chamado "realismo mágico latino-americano" e das coleções de Agatha Christie e George Simenon, além da literatura brasileira necessária a uma boa aprovação no concorrido vestibular da UFRGS. Havia sido aprovada na classificação geral nº 435 (mais ou menos isso) no vestibular e ingressara na Arquitetura da federal gaúcha, em 1977.  Não obstante a pouca leitura acumulada, muito do conteúdo do texto revela um pensamento que, vinte anos mais tarde, viria a ser encontrado, em leituras de uma mulher amadurecida sentimental e intelectualmente, em autores como  Michel Foucault, Deleuze e Guattari, Derrida e mesmo Nietszche, rejeitado pela moça assustada e desejosa de participar em uma organização política de esquerda. O texto mostra também uma intuição aguçada de que o caminho da esquerda brasileira não estava mostrando consistência filosófica. O título do original era: nada é parado, nada é seguro, nada é infinito ou puro. Havia  a colagem de um recorte de revista, em preto e branco, na montagem do documento original apresentando um operário com capacete de obra, macacão e feições de extremo cansaço e melancolia. A citação de Marilena Chauí abria o documento. A versão abaixo apresenta  correções na ortografia e mantém o conteúdo intacto.]


“O DISCURSO COMPETENTE É O DISCURSO INSTITUÍDO. É AQUELE NO QUAL A LINGUAGEM SOFRE UMA RESTRIÇÃO QUE PODERIA SER ASSIM RESUMIDA: NÃO É QUALQUER UM QUE PODE DIZER A QUALQUER OUTRO, QUALQUER COISA EM QUALQUER LUGAR E EM QUALQUER CIRCUNSTÂNCIA. O DISCURSO COMPETENTE CONFUNDE-SE, POIS, COM A LINGUAGEM INSTITUCIONALMENTE PERMITIDA OU AUTORIZADA, ISTO É, COM UM DISCURSO NO QUAL OS INTERLOCUTORES JÁ FORAM PREVIAMENTE RECONHECIDOS COMO TENDO O DIREITO DE FALAR E OUVIR, NO QUAL OS LUGARES E AS CIRCUNSTÂNCIAS JÁ FORAM PRÉ-DETERMINADOS PARA QUE SEJA PERMITIDO FALAR E OUVIR E, ENFIM, NO QUAL O CONTEÚDO E A FORMA JÁ FORAM AUTORIZADOS SEGUNDO OS CÂNONES DA ESFERA DE SUA PRÓPRIA COMPETÊNCIA.”

 [MARILENA CHAUÍ       EM CULTURA E DEMOCRACIA]






                Nem Hollywood, nem Woodstock

A ideologia burguesa não pode ser apenas identificada como um conjunto de regras de normalidade, daquilo considerado como sadio, puro e certo. Para além da norma, o que a ideologia dominante naturaliza é a oposição entre o bem e o mal, o normal e o anormal, o culpado e o inocente. Um justifica a existência do outro e sem ele não sobrevive. O que explica a inevitabilidade da pobreza e da fome é o direito à riqueza e à fartura; o ato de amar alguém é medido na mesma escala em que se mede o ato de odiar a outro. A comparação estabelece vida aos opostos caracterizados como eternos ou infinitos. O tempo como “transformar”, como fazer História não existe. O tempo é o passar das horas, que ninguém pode alterar, e que a cada minuto significa novos minutos iguais que se impõem como eternidade. Essa eternidade estabelece o significado do ato de ser alguma coisa. O que é sempre será, e quem não aceita, automaticamente não vê e não sabe. O não saber é apenas a negação do ser natural e o justifica. O patrão é a negação do empregado. O explorador é a negação do explorado e explica a sua existência. A ideologia burguesa institucionaliza a revolta como descontentamento pela existência do contente, do satisfeito. É nessa medida que a revolta passa a ser parte da ideologia burguesa, quando o que lhe dá vida é a existência daquilo que ela repudia. A luta revolucionária propõe a extinção dos opostos “explorados e exploradores”. Nega o maniqueísmo do estabelecido e propõe algo novo.

                O novo é inaugural e fora do controle e da iniciativa da norma


              A ideologia dominante também está presente no modo de pensar e agir daqueles que se propõem a construir a organização e mobilização dos oprimidos, a dirigir o processo de transformação social. Desde que nascemos fomos educados para o ajuste aos valores da classe dominante. Convivemos a maior parte do dia com estes valores expressos como “normalidade”. Não é por desejarmos a transformação e nos dedicarmos a ela que nos transformamos em seres de outra época, da noite para o dia.
Queremos um novo tempo, mas pertencemos ao tempo que queremos destruir. Compreender esse limite nos põe diante do desejo do “Homem Novo”, que não somos nós, que é um futuro para ser construído. Somos campo de batalha também. De luta de classes. Cada um que se percebe limitado quer transformar a si próprio e se capacitar à mudança daquilo que o cerca. Permanentemente. Revolucionar é mudar sempre, e não estabelecer um novo padrão. Portanto, mãos à obra para descobrir os velhos e novos tabus, desvendar o maniqueísmo onde ele se expressa. Levar à práxis a inauguração é nossa tarefa.

Hollywood – o bom militante


O bom militante ensina os outros a fazer revolução. Exerce uma relação unilateral no que pensa ser o ato de transformar: ele se propõe a transformar os outros. Decorre que o bom militante não pode admitir nenhum referencial novo questionando o seu próprio modo de agir e pensar, o que faz com que ele tenha, nas questões essenciais, a si próprio como referência e seu comportamento com padrão. Isto não acontece de forma absoluta, pois seria muito fácil de ser combatido, isto é, o bom militante até admite ter limitações e por isso se propõe como padrão possível
Na medida em que necessita justificar a si próprio, ele estabelece uma distância intransponível entre o possível e o desejado. Quanto mais o desejado possa questionar o status quo social e político do bom militante, mais este coloca o desejado como sinônimo de impossível. O possível e o desejado são, para ele, perseguidos por caminhos diferentes. O caminho do possível é pedregoso, mas bem sinalizado. É o caminho da prática sem teoria, do empírico. É o caminho da tática com vida própria, independente ou até contraditória com a estratégia. O caminho do desejado é posterior e só é alcançado pelos bem aventurados militantes que galgam o sacrificado e insosso caminho do possível. O desejado, por vezes, se metamorfoseia em discurso de idolatria do futuro, a estratégia transformada em dogma, a esperança que adoça o banal necessário do presente.
Melhor um pássaro na mão do que dois voando. O bom militante nunca se arrisca, guia-se pelo bom senso e isto lhe basta, é suficiente. Esqueceu que o bom senso suficiente emerge do senso comum – ideologia dominante. Para poder preservar o seu modo de vida intacto, o bom militante dicotomiza a luta ideológica da luta econômica. Em decorrência secundariza o político da luta e compartimentaliza o movimento revolucionário em somatório de lutas necessariamente hierarquizadas. Não consegue identificar a ideologia dominante presente em todos os acontecimentos, o que o impede de perceber e estimular a luta ideológica presente em todos os movimentos e lutas.
Não consegue visualizar o movimento como uma coisa dinâmica, onde a principalidade de uma luta é peculiar a um determinado setor. Uma metalúrgica negra que milita carrega consigo pelo menos estes três fatores de inserção enquanto oprimido: sexo, raça e classe. Não deixa de ser mulher e daí por diante, vice-versa. Portanto, a sua prioridade de militância depende da dinâmica circunstancial do movimento e da especificidade da sua inserção nele. Se o movimento feminista vive um "Ascenso", esta metalúrgica pode cumprir um papel fundamental como mulher – metalúrgica, e isto significa uma prioridade em seu trabalho. Cada setor social encerra em seus indivíduos componentes um sem número de contradições com o sistema que podem se expressar no movimento relativo ao setor. Se o movimento operário vive um momento explosivo, a nossa metalúrgica pode vir a cumprir um papel, prioritário em sua militância, de dirigente sindical. E mais, o movimento sindical, neste instante, pode se enriquecer de tal forma que a leve a cumprir um papel combinado, de classe, sexo e raça: na mobilização de um dissídio pode despontar o classismo, a negritude e o feminismo, na metalúrgica mulher negra.
Um partido político que queira se colocar como dirigente e construtor do movimento deve entender esta dinâmica e construí-la. O prioritário deve ser entendido como a síntese circunstancial do secundário que o alimenta. Não de uma forma hierárquica e sim dialética. Um exemplo: para o bom militante, a luta pela contracepção livre não derruba ditaduras, não trata com as relações de produção, não é movida pela “luta de classes”, não diz respeito às necessidades do “conjunto do proletariado”, portanto é secundária, embora importante luta a ser tratada com seriedade. A seriedade do bom militante é uma qualidade religiosa e intrínseca, que ele distribui proporcionalmente à importância do que está sendo tratado. No caso que estamos analisando ele dá um pouquinho ínfimo, acidental, da sua muita seriedade. Na verdade, o bom militante (homem ou mulher) se esforça por ignorar algo que lhe é inquietante e incômodo: a discussão da sexualidade liberta, que teimosa e maliciosamente impregna a luta pela contracepção livre. A discussão sobretudo do exercício da sexualidade, que tanto fere os pilares da família moderna, instrumento vigoroso de dominação. Amor e sexo são questões de “foro íntimo” para a ideologia dominante. E para o bom militante também. Ele conserva, sem questionar, o registro de uma dicotomia que conheceu na infância: o sexo/pecado, discutido num tom comadresco, inodoro e ingênuo pelas mulheres e de forma patriarcal, truculenta e epidérmica pelos homens. Isto não pode ser sério.
O bom militante é másculo e sóbrio, higienicamente contido. É heterossexual por princípio e monogâmico por opção. Defende a libertação da mulher como quem reza o pai nosso mascando goma (chiclete), mas, bem no fundo do rasinho ele/ela acha que gravidez e nenê é coisa que só mulher entende direito. Nada mais natural para o bom militante que a mulher ficar com as crianças e o homem ir à reunião, pois isso corresponde a um fato eventual e concreto dele ser importante e da reunião ser fundamental, ora. O bom militante é contra a discriminação ao homossexual, mas acredita - sinceramente - que no comunismo não vai ter dessas coisas, coitados, produtos da sociedade capitalista que são. O bom militante é um lutador incansável contra a família e demais instituições burguesas, embora se orgulhe do número de anos que está com seu companheiro e pense que o tempo/minuto define a profundidade de uma relação. O bom militante é possessivo no amor e exaure-se em suas contradições emocionais e físicas, na madrugada, para limpa-se dos resquícios do “íntimo” ao amanhecer e sair na incansável, conhecida e cotidiana revolução dos outros. O bom militante é, sobretudo, um militante competente.


              Woodstock - O Jovem Rebelde


             A classe dominante se capacita para responder de duas maneiras diferentes àquele que se rebela: ou reprime drasticamente ou absorve descaracterizando a crítica, incorporando novas características aos valores tradicionais, revitalizando a velha linguagem, remontando a sua ideologia e instituições. No fundamental, a liberdade - no discurso dominante -  não é o significado do ato, é o sentimento imanente ao fato do ato ser individual. Liberdade se opõe à coletividade. O que é livre é particular, específico, incomparável. Os indivíduos podem estar inseridos em classes, raças ou grupos que definem, homogeneízam e padronizam os seus comportamentos e dão significado a sua existência. Isto não conta para a busca da liberdade. Se o que é livre é individual, o que não é livre também é individual. Liberdade não é ser diferente do que se é, pois implicaria em identificar o que se é, saber-se inserido num determinado coletivo que é da mesma maneira, e buscar que este coletivo seja diferente. Liberdade é sentir-se diferente, existindo num coletivo igual.
        A liberdade que a ideologia dominante prega defende as diferenças individuais abstratas, para mascarar as igualdades no interior de uma mesma classe e esconder as diferenças concretas entre as classes, sexos e as raças. Os oprimidos deixam de existir porque “todos são iguais perante a Lei”, o que determina a culpa ou inocência individual. Qualquer pessoa pode individualmente se fazer respeitar, embora a mulher seja “um animal de cabelos longos e idéias curtas (Nietzsche) e o negro “quando não c... na entrada, c... na saída”. Garantido o princípio, a aparência se renova e adéqua. A ideologia dominante refaz a sua aparência quando esta é questionada. A classe dominante garante a essência de sua ideologia mediante a repressão. Se a revolta aponta a crítica à guerra imperialista e à matança dos jovens nos exércitos nacionais em defesa de determinados interesses do capital, opondo a tudo isso a “paz e o amor” (movimento pacifista da década de 60), enfrenta-se definitivamente numa luta contra o poder burguês, luta que aponta para a radicalização.  Ou a revolta se cola à perspectiva da classe oprimida e busca sua organização no combate ou será absorvida. A ideologia dominante absorve a revolta da juventude quando incorpora e institui um padrão de rebeldia juvenil, que se opõe à luta coletiva. Recria-se o prazer, o amor, o ócio e a alegria como imanências do individual. Renasce, vigorosa, a velha liberdade: uma calça velha, azul e desbotada, que você pode usar do jeito que quiser. Não usa quem não quer. Aí a juventude é institucionalizada pelo discurso burguês. A rebeldia e o descontentamento aparecem enquadrados num esquema de “diferença de gerações” que se completam, criando a harmonia da sociedade da ordem (estática) e do progresso (dinâmico). Aparece assim: o jovem e o velho vivem o impasse entre duas impotências que se opõem. Um carrega a possibilidade do futuro, o desejo de novas descobertas, as perguntas sem respostas, a vontade de ação. O outro é o conhecimento acumulado, a experiência, a tradição justificada, a explicação do passado. Um tem a potencialidade da ação, mas não detém o saber que a viabiliza. O outro detém o conhecimento alienado da capacidade de ação. Os dois não podem ser sujeitos e são imprescindíveis instrumentos de sua síntese e superação, o adulto. O adulto é o status quo em desenvolvimento progressivo e linear.
               Assim estabelecida, a rebeldia do jovem conquista o seu lugar na ideologia dominante, deixa de ter explicação histórica, econômica e social e passa a existir como um fator biológico, etário. Admitindo-se a “juventude” como um setor social determinado, que expressa um descontentamento específico em relação ao sistema vigente, é necessário buscar formulações desta opressão específica, no interior de uma análise marxista, que possibilite propostas de organização e militância para este contingente dos oprimidos (Trabalhos como os de Reich trazem importantes contribuições neste sentido). Não sendo assim, estaremos correndo o risco de reforçar um novo (velho) tipo de “militância” que mais interessa à burguesia do que aos trabalhadores: o jovem rebelde.
             O jovem rebelde é a negação do bom militante, é o seu complemento, se justifica por ele e o justifica. Deixa aflorar o “ser revolucionário” que lhe é inerente. Não se constrói, libera o já pronto (e quem puder que libere a si próprio). Saboreia a sua liberdade individual e preserva a sua condição de exceção à regra. Estabelece uma hierarquia entre o intuitivo (emoção) e o elaborado (razão) e privilegia o primeiro. Opõe o mundo real (o cotidiano, a aula, as tarefas, o trabalho, a família....), ao imaginário (a melodia, a poesia, o prazer sexual, a graça, a piração, a festa, a dança, o canto, a guloseima, o ócio). Na verdade, o jovem rebelde preserva o real, que nega, ao buscar a satisfação fora dele. Não intervêm em sala de aula no sentido de transformá-la, mas pratica uma espécie de “terrorismo” – destaca-se do coletivo em posição de confronto tipo –“vocês são uns medíocres”. Ao se “liberar” sem se construir, sem construir os outros e sem permitir ser construído, revela o medo e recusa ao enfrentamento de suas próprias contradições. Nega a família, mas constrói guetos familiares com outros jovens rebeldes. Para pertencer a uma família é preciso ter a competência genética da consangüinidade. Para pertencer ao gueto é preciso ter a competência também imutável, inata e não apreensível de ser jovem rebelde. Ao utilizar padrão semelhante incorre no reforço da família tradicional. Dissocia a construção de relações, do prazer sexual. Relaciona-se com todo mundo para ocultar que não se relaciona. Transa com todos para negar a não transa. Em decorrência permanece tendo como referenciais (embora ocultos no inconsciente) afetivos o pai e/ou a mãe.
            O jovem rebelde desacredita em todo e qualquer coletivo organizado que pareça para ele subordinar o interesse individual ao interesse do conjunto. O coletivo com o qual se identifica revela-se como somatório de interesses individuais (dos jovens rebeldes) embora semelhantes. Em essência, o jovem rebelde carrega o individualismo que a ideologia dominante lhe ensinou a preservar. Defende a liberdade individual que oculta a opressão coletiva. Exerce com competência a rebeldia permitida.

                                                                                                                     Setembro/82






O lixo do edifício

     
       

Morei vinte anos em uma rua calma e arborizada, chamada "República", em Porto Alegre no Rio Grande do Sul, em um edifício de cinco andares com uma escada estreita e elevador pequeno. Entre 1978 e 79,  fui embora desse lugar onde vivia no andar térreo, com a mãe, o pai e os dois irmãos. Desde os quatorze anos, tive um quarto só para mim, no meio da casa reformada para ganhar uma peça e privacidade para a menina-moça, entre a cozinha e a sala. Sentia-me só, afastada do lugar certo dos quartos, mais próxima do perigo de encontrar baratas e ratos. Era uma família envolvida em um ambiente temeroso, desconfiado, silencioso, em grande parte gerado pelo fenômeno estúpido e cru das ditaduras militares na América Latina, posteriores aos governos e movimentos consagrados como "populismos" da primeira metade do século XX. Mais tarde, em 1980, usávamos essa expressão "populismo" de um modo irreverente, nós os jovens fundadores do Partido dos Trabalhadores, entendendo a palavra como o nome do problema fatal do PTB do Getúlio - e depois da Alzira -, problema herdado pelo time do Brizola (e de Dilma Linhares) e seu PDT - Partido Democrático Trabalhista.  Lembro de oitenta como um tempo no qual eu ouvia falar em um trabalhismo de novo tipo, inaugural, a ser inventado dentro do PT, mas lembro de não dar muita bola para problemas ou dificuldades dessa invenção porque tudo, para mim, era festa, paixão, prazer. Em oitenta, eu tinha uma confiança igual a que vejo nos crentes evangélicos em 2016, ou nos adeptos enraivecidos do MBL, o movimento brasil livre, que fez manifestações para derrubar Dilma e o PT. A diferença - fundamental - é que nós éramos propositivos, alegres, e nossas bandeiras eram predominantemente nossa auto-afirmação como modelo e não o repúdio a um outro projeto. Éramos iluminados, amáveis, e nossa luz irradiou para toda a população do Brasil. O PT era, claro, os metalúrgicos paulistas e as pastorais da terra, seus pilares. Mas havia um terceiro pilar, que talvez tenha escorrido para o Psol, em um novo formato adaptado ao início do século XXI, que era a juventude libertária brasileira. Mas isso é outra história. Antes disso, falo aqui da década de setenta e do edifício da República.

Minha mãe acalmava e ordenava a turma toda por meio de um grande objetivo dela, tornado de todos nós dado o grau de poder coativo que a forte mulher - filha de militar de baixa patente e dona-de-casa tomada pela ideologia positivista - tinha sobre todos, lá em casa. Era apaziguador, calmante: estudar, ler, pesquisar e apreciar boas músicas clássicas para ser alguém forte na vida, no mercado de trabalho. A televisão - ainda ingênua e parcialmente delicada em sua potência de mensagens - anestesiava a turma pra crer no progresso, no desenvolvimento, na ordem social criada pela ditadura e, subliminarmente, em uma democracia futura, mas tínhamos um tempo para vê-la e não apenas por imposição da mãe, mas porque ela não era mais importante que os estudos ou os brinquedos na rua, na calçada, no edifício sem porta e com entrada aberta. O socialismo era um sonho para muita gente, um acontecimento aparentemente imune à degradação, perenemente positivo, uma esperança vivida na metade do mundo onde ele não era um acontecimento real. Talvez a guerra fria tenha provocado  secretos desejos de pertencimento ao outro, ao mundo do outro lado do muro, nos dois campos contrários. Não sei. Sei que tive uma professora jovem e linda, lá por sessenta e oito, que era ruiva e eu a adorava. Vinte anos depois, fiquei sabendo que essa professora havia denunciado uma outra, velha e feia aos meus olhos, porque esta havia reclamado dos treinamentos com marchas para os desfiles da semana da pátria. Minha mãe então me contou que achava ser  brizolista essa profe acusada. E eu havia sido chamada para depor contra a professora feia e braba, na secretaria da escola.  Lembro do meu sentimento, na ocasião, de querer ajudar a linda contra a feia e braba. Não sei o que aconteceu, mas parece que a professora denunciada foi protegida pelos colegas e tudo se acalmou. 
                
               No edifício de número 432, onde morávamos no apartametno um,  existia um fosso vertical correndo por todos os andares, ao lado do meu apartamento, até o último andar. No térreo, no fim do fosso, ficava um enorme latão dentro do qual acabavam caindo os lixos que eram jogados em gavetinhas de metal, em cada andar. Ficava uma imundície, todos os dias, e a zeladora e seu marido juntavam toda a porcaria apodrecida e levavam o latão para a frente do edifício, para ser recolhido pelo caminhão da prefeitura.  O fosso propriamente não era lavado e apenas o lugar do latão era objeto de higienes regulares.  Então aquela sujeira toda sustentava criações de ratos e baratas que invadiam o nosso apartamento. Por isso o meu quarto ficava sempre fechado, venezianas fechadas, na tentativa de evitar a entrada dos ratos. Um dia acordei com um deles, cinza, pequeno, na minha cabeça.


          Quanto tempo durou aquela maneira de lidar com o lixo? Era uma imundície verdadeiramente medieval, compactada em um formato urbano moderno. Como as pessoas não conseguiram pensar em levar o lixo pela escada, até o térreo e colocá-lo na rua, como se dispuseram a jogá-lo do alto? Lembro agora de uma outra cena estúpida nas mesmas proporções: produziam aquela imundície toda e, ao mesmo tempo, viam filmes da década de 1930, Hollywood, nos quais os casais de protagonistas fumavam às pencas antes, durante e depois do encontro sexual "romântico". Na época de final desta década, sessenta, nos grandes festivais de música popular brasileira era possível ver os jovens cantores e compositores fumando no palco junto com os apresentadores. Fumava-se às pencas. 

         Não sabíamos o quanto éramos irracionais, na segunda metade do século vinte, agora sabemos; não tínhamos "retorno", ou seja, capacidade de ver-se a si próprio em sua própria caricatura, percepção das nossas dimensões limitadas de consciência e conhecimento da multiplicidade de sentidos ilógicos em nosso modo de agir. Éramos uma sociedade em êxtase com sua mitologia do desenvolvimento industrial e tecnológico. Nunca passou pela cabeça de alguém, naquele edifício, a possibilidade lógica da separação dos restos limpos de vidros, plásticos e embalagens; de que talvez até pudéssemos jogar o lixo limpo buraco abaixo, mas o lixo da comida poderia ter sido levado em sacos até o andar térreo, até à rua. Teria sido um raciocínio simples e tão útil. Mas ainda que muitos tenham adquirido sensibilidade para uma contra-intuição contrária à produção de lixo (tanto no mundo exterior, quanto em nossos próprios corpos), essas formas insanas de sociabilidade onde a produção de lixo é hipertrofiada parece que só aumentaram e vivemos em um século vinte e um tão poluído por imundícies de todos os tipos.
     
                Durante todo aquele período estava se gestando a solução de saída daquele mundo: a primeira era da informática, impulsionadora de uma nova e formalmente devastadora onda tecnológica. Um tsunami. Os acontecimentos políticos e de sociabilidade da época não "sabiam"  nada do que iria acontecer. As ditaduras e os socialismos eram totalmente ignorantes de um destino humano de dimensões virtuais imersas em potência tão diversa das potências acontecidas até meados do século XX. Voamos todos para um outro planeta: pequeno, frágil, assustado, uma enorme colmeia de humanos-abelhas com as mãos grudadas em teclados e os olhos fixos em telas/janelas para todo e qualquer lugar do mundo. Mas aquela capacidade de jogar o lixo por um poço imundo continua lá, aquela incapacidade de "retorno" continua quase intacta. Estamos todos, ainda, morando em ruas Repúblicas, só que agora em edifícios trancados em muitas chaves e grades, com muitos policiais e porteiros em volta. E alguém ainda carrega nossos latões de dejetos. Rejeições e esquecimentos de objetos facilmente descartáveis, restos de comida de pouca importância, e seres humanos jogados ao desastre e à melancolia. Conforta-me saber da existência, ainda e sempre, de mães que têm poder para ajudar seus filhos a estudarem, têm vontade de ver estudantes adquirirem conhecimento e sabedoria, mais do que as disciplinas das marchas marciais, sejam elas de que lado do mundo forem, sejam elas feitas ao som de coturnos batendo no chão ou ao som de músicas comerciais, do tipo sertanejas, ou funk, ou ainda um hip-hop despido de sua potência original ou um pagode para bobos da corte.

                                                                               











Querida Zeferina - carta onze - como e quando vendemos a alma ao diabo


Querida Zeferina,


O Mal é burro, no fim das ilusões sobre ele: “como puderam nos fazer tanto mal?” fica sendo a sua lembrança. O Mal, esse com eme maiúsculo, é o diabo, um deus a ser vencido, disposto à vingança, a maltratar muitos viventes, à guerra. O Mal é uma doença simples que quando é novidade, não tem antídoto. Assiste o sofrimento da maioria dos seres vivos se espalhando diante de seus olhos e justifica dizendo que não há outro caminho. E o Mal sabe que mente e os humanos que se deixam contaminar pelo Mal sabem que ele mente. Pode acontecer de se passarem mil anos sombrios, mas quando nasce a flor-de-lótus, a luz, a beleza, todo o mundo vê e o Mal passará a ser contado como um deus vencido, “aqueles tempos sombrios”. Eu sou humana, Zeferina, uma fêmea sapiens, e só posso entender a nossa história, a do gênero humano, inventada nesses setenta mil anos alcançados pela minha consciência, não posso falar sobre uma hipotética história de uma “nova espécie não mais sapiens”. Só humanos capturados pelo Mal poderão falar em “novas espécies mais inteligentes que os sapiens”, porque eles são sapiens e estão mentindo sobre quererem ver todos iguais a eles, todos seus descendentes, mortos em uma guerra. São neonazistas. Uber nazistas, ou os mesmos nazistas de sempre, agora disfarçados de radicais libertários, programadores e pesquisadores bem sucedidos. Nós, humanistas republicanos, entendemos assim: a beleza está nas formas que alegram, dão prazer, acalmam, nos fazem sentir paz, desejo de “mais daquilo” ou simplesmente o encontro de um ócio, um soninho, um sonho bom. Então, uma hora o Mal será vencido e serão realizadas festas, comemorações, danças e cantorias para dizer “viva! O Mal maior sumiu, finalmente”. E nesse momento alegre serão contadas histórias de como o grande tirano foi derrubado, como foi derrotado e por quem. O Bem, assim mesmo com bê maiúsculo, são os heróis e eles poderão deixar de ser um sujeito super forte e único, um super humano, porque afinal já sabemos que esses caras acabam sendo ou ditadores ou apenas personagens de um filme caro. Mas não precisamos ser ingênuos e tecer teorias enfadonhas para dizer que “oh, não queremos mais os heróis”, “queremos ser nós mesmos, sem deuses”. Bobagens, porque desde aí, se conseguirmos matar o mal, ou ao menos prendê-lo em uma tumba, mesmo sendo só nós mesmos, pensaremos “oh, somos heróis!” e é isso. E os bons momentos serão os nascimentos, os renascimentos, o fim das guerras, a prisão do Mal e nós mesmos. Viva nós mesmos!
Mas para chegar ao ponto em que o Mal é preso ou destruído, não basta evitar praticá-lo ou não se deixar contaminar por ele, porque alguém precisa ficar vivo para contar a história e depois juntar outros para ir lutar contra o mal. Então há que se vender a alma ao diabo, em alguma medida, quando tudo é escuridão e o deus sumiu. Sim, o deus não precisa ser um velho barbudo sentado numa nuvem branca no céu azul. Numa cadeira de rei. Pode ser um monte de deuses de tudo quanto é sexo e variações misturadas que andam chamando de gêneros, tipo misturas de os e de as que uns aqui, nesse tempo sem luz do Mal absoluto, chamam de xis. Pode ser um monte de divindades entre animais e coisas humanas. Tanto faz. Eu queria escrever “uarever”, gosto tanto dessa fala do tanto faz em inglês, o tal “uarever”, mas como estão querendo acabar com o português brasileiro e criar um dialeto de inglês e português misturado, e ainda um português só falado, com gírias e sem uma escrita cheia de significados complexos, eu peguei nojo e estou me esforçando para não falar nada em inglês, nem uarever, porque afinal, partir para uma língua mutante e definida por uma oralidade volátil e desnacionalizada é mesmo o reino do Mal. Mas não vou falar em línguas hoje.
“A difamação de virtudes como o cuidado, a compaixão e a generosidade vai de mãos dadas com a crença, especialmente entre os pobres, de que ganhar é a única coisa que importa e de que ganhar – por qualquer meio necessário – é, em última instância, a coisa certa”, escreveu Achille Mbembe, um historiador africano divulgado em 2017 no facebook. Não concordo, não acho que é “especialmente entre os pobres”. Os pobres falam abertamente sobre isso, talvez defendam essa ideia de um modo ingênuo, sorridente, piadista. Mas eles acabam por se ajudar, não sobra outra escolha: cai o telhado de um numa chuva, todo mundo ajuda; outro foi abandonado pelo cônjuge, todo mundo releva e não faz drama, o trágico perdoado. Os pobres perdoam seus presidiários. O pobre não tem quase nenhuma chance de vender a alma ao diabo. Ou, por outra, ele vende a alma ao maldoso quando cai numa cachaça, gasta o dinheiro do gás na partida de futebol, entra em um romance que é certo que vai dar errado. Mas não passa disso, via de regra. Quem vende caro a alma ao diabo é aquele sujeito que pode conseguir melhorar de vida, deixar de ser tão pobre, conseguir a alforria. É sobre isso que quero falar, sobre conseguir a alforria. Mas o que era a alforria no Brasil de 1870? E o que era a alforria no Brasil de 1600? O diabo de 1600 creio ter sido mais poderoso do que o das vésperas da lei do ventre livre, 18 anos antes da abolição. Imagino que a venda da alma ao diabo em 1600 era muito mais necessária para a sobrevivência do que em 1870. As alforrias em 1600 deveriam ser muito raras e para conseguir sofrer menos o esquema provável era o mesmo narrado por Primo Levi, sobre o campo de concentração na Alemanha onde para ganhar comida o prisioneiro precisaria estar disponível a delatar, torturar, queimar e fazer os serviços de limpeza dos corpos. Levi contou só terem sobrevivido os que venderam de alguma maneira a alma ao diabo. Deve ter sido assim para o início do acontecimento “alforrias”, no Brasil de 1600. Depois, em 1870, já havia espaços de dignidade mais significativos, a julgar pelas ações de liberdade, os processos judiciais onde escravos provavam ter direito a alforria e eram representados por advogados abolicionistas. Ali já havia a presença de alguma alma, portanto algum deus, ou deuses e deusas, cenários de direitos padronizados, leis a protegerem todos os capazes de construir esperanças para si e os seus. Contratos, vamos dizer assim. "Você trabalhou a vida inteira para mim, dedicado, confiável, você é humano como eu, dá pra ver, merece a alforria, ter sua vida em família”. Já havia, em 1870, a ideia de proteção aos escravos velhos e essa ideia – proteger a velhice – está sendo destruída agora, em 2017.
Fico me perguntando sobre o quanto o Harari, o autor israelense do livro Homo Deus, vende sua alma ao diabo, quando fala sobre a alma humana e quando fala que: "Na essência, nós humanos não somos diferentes de ratos, golfinhos ou chipanzés. Como eles, tampouco temos alma. Como nós, eles também têm consciência e um complexo mundo de sensações e emoções. É claro que todo animal tem traços e talentos exclusivos. Os humanos têm suas aptidões especiais. Não devemos humanizar os animais desnecessariamente, imaginando que são apenas uma versão mais peluda de nós mesmos. Isso não só configura uma ciência ruim, como igualmente nos impede de compreender e valorizar outros animais em seus próprios termos". Na página 135. O Harari retira a alma dos humanos e continua a não aceitar esse grande conceito para os outros animais. Não havendo alma alguma no mundo real, bom, então tudo são objetos, pois tudo o que a palavra “alma” ilumina é o mundo exterior ao objeto manipulável pelo ser humano, desde minerais, passando por outros animais e chegando ao corpo humano interferido pela química, a biologia e a medicina.  No final do livro, o Harari vai perguntar se não deveríamos acreditar na vida como algo além dos algoritmos, mas será apenas uma manobra de engenharia de linguagem, talvez para registrar a ideia de que os nazistas têm sentimentos, que lhes sobra uma alma, talvez mais valiosa do que a alma de todos os humanos sapiens e os outros animais que já a tiveram proibida desde o início do livro.
Descobri o título desse capítulo ao ler uma carta iniciada em 2012, assim: “Desde o dia em que fugi de Porto Alegre estive mergulhada em um susto permanente, euforia camuflada pela astúcia atenta de um estrangeiro fugitivo. Somente hoje senti a emoção consolidada de estar morando em uma cidade pequena de interior, quando voltava quase à noite pelas ruas vazias, um ou outro voltando também, pequenas ruas fluindo em direção à praia, calma e cheiro e barulhos de mar lá longe e tão perto. Estou ficando menos maluca do que estive lá, durante quase vinte anos. Como se um espírito de angústia, um estado de alerta, estivesse evaporando de meu corpo, aos poucos. Tenho variações de medo, do dia até à noite, como as mudanças de cor nos joelhos contundidos das crianças, nos olhos espancados das mulheres e dos prisioneiros. O roxo escuro, inchado, vai se transformando em espaços amarelados e fica parecendo haver uma possibilidade de que aquilo deixe de acontecer e desapareça. Tudo o que aconteceu comigo, nas margens do Guaíba, conosco, com toda a gente comum e, sobretudo, com os líderes de acontecimentos dissidentes; o assédio moral em todos os lugares, na política e no trabalho, os homens atacando mulheres subversivas tanto no Islã como no interior de qualquer ponto geográfico e político do Brasil da década de noventa, tudo deve ter contado, em algum sentido, com a nossa própria participação. Nós migramos em direção ao lugar da bruxa, do louco, do decaído; nós aceitamos a representação. A pessoa participa do sofrimento que lhe foi proposto. Sente culpa pela derrota. O homo sacer, do pensador Giorgio Agamben, o sujeito escolhido para o sacrifício atola, não sai do lugar, não vai embora”. Em 2012, eu desejava que em noventa os dissidentes tivessem sido capazes de fugir.
Não é uma questão de falta de informação, Zê, de engano. Há uma entrega ao estilo Fausto, do Goethe, e no caso brasileiro dos dramas atuais ela foi realizada desde 1990 e atinge todos os que tentaram "se dar bem" no hiperconsumo do início da revolução tecnológica da informática. Lá, desde setores da tal esquerda (de todos os tipos de agrupamento), passando por uma grande parte da juventude com 10 anos de idade em 1990, que cresceu nessa lenha de se entupir de imagens e mercadorias voláteis, e chegando nas massas pobres e em pânico que adicionaram o fundamentalismo evangélico como imagem de potência politica e catártica, todos esses setores aderiram a uma linguagem mentirosa, perversa, cheia de silêncios e falsificações. Então, já lá, todos sabiam que "a cada quatro pessoas mortas pela polícia três são negras". Todos os que sabem ler sabiam. Então o direito penal alimentador de presídios e polícias foi robustecido lá. Houve uma destruição em massa, no campo da ética, a partir de final da década de oitenta, no Brasil. Podemos, então, distinguir dois acontecimentos distintos para a situação “vender a alma ao diabo”: o tipo dos que obedeceram a tiranos para salvar suas vidas, nos campos de concentração alemães, na segunda guerra mundial, ou os escravos das senzalas brasileiras – nos séculos XVII, XVIII e XIX - que se acomodaram em relações perversas para conseguirem alforrias ou algum tipo de proteção, são um tipo de “venda da alma ao diabo”, para sobreviver dentro de um cenário de tortura emocional e física praticada contra toda a sociedade civil. Nesses mesmos cenários, de inauguração de uma guerra ou um genocídio, há o tipo de acontecimento dos que fogem para ficar entre os torturadores, também para sobreviver, mesmo não sendo o próprio Mal, não sendo o próprio diabo, mas para sobreviver entre os que mandam, os que tomam de assalto os governos, os que gerenciam as máquinas de adestramento da sociedade civil, os que detêm o controle sobre as armas e os exércitos.  Nem lembro dos motivos alegados pela Hannah Arendt para o que ela definiu como sendo a banalização do mal. Talvez eu discorde dela, talvez o Mal não seja banal. Talvez a gente precise entender e perdoar. Entender que lá em noventa foram produzidos discursos de aceitação do mal, de integração no modelo que estava sendo criado ali, naquela cena da queda do muro de Berlim, mas por medo, por covardia, e não por maldade da esquerda surgida no fim da União Soviética.  “Não há propriamente um 'fascismo’ agora, ele aconteceu no furor do consumismo, lá no Lula paz e amor desenvolvimentista e conciliador. Lá implantaram os coach e a neurolinguagem. Lá era um fascismo, dentro da esquerda e da direita, todos querendo ter um carro enorme de tração na quatro rodas, uma geladeira de inox, com enormes compartimentos, falar inglês, viajar para Europa e Miami todo ano, ser chique e vitorioso. Isso era fascismo e isso chegou na produção de consumo da tal classe média nova e baixa, que não cresceu para ser política, mas para ser massa de manobra. A tal esquerda bem sucedida vendeu a alma ao diabo em 1990 e a população foi junto. O golpe sobre a Dilma foi só a cereja do bolo”, escrevi no facebook, dias atrás.
Como se vende a alma ao diabo? Indo aos poucos, aparando arestas aqui, aumentando arestas ali, ou mesmo ficando quietinha num canto de um emprego público. Eu penso ter vendido um pedacinho da alma ao diabo quando aceitei ficar viva e silenciar, apostar em uma saída individual e, mesmo com sofrimentos de longa duração, chegar a uma aposentadoria integral, sair na "lista de Schindler" dos aposentados federais de antes do golpe e da "reforma" da previdência. Há um passo a passo na fórmula do Fausto, do Mephisto. O problema é: quem vende a alma ao diabo sabe que está fazendo isso e, ao fazer o pacto, decide por um caminho quase sem volta. A população que aderiu a rituais catárticos, fundamentalistas, como grandes festas e shows, grandes programas de reality show na televisão, grandes resultados de pesquisas eleitorais, no momento em que se deparar com o fim do sonho e da catarse, quando ficar de frente com o cenário do “campo de concentração”, dos modos de destruição de populações inteiras por meio de um etnocídio, poderá desistir das ilusões e se reagrupar em movimentos defensivos. Mas a parcela que aderiu a estratégias de participação em ambientes de elite só poderá sair da cena dominada pelo grande Mal, pelo diabo, se migrar, novamente aos poucos, para linhas de ação abolicionistas, quando a elite sapiens republicana começar a abandonar o robô Darth Vader e tentar se reinventar como gerência do que sobrou da sociedade civil depois da guerra.

Por esses motivos, Zeferina, eu não desprezo as manifestações do Ciro Gomes, ou de qualquer outro membro de uma elite capaz de algum discurso visível no campo abolicionista, defensor de alforrias, apto a disputar o poder. Por essas razões valorizo as possibilidades da fala do Lula de agora, não mais o do Duda Mendonça. Para entender as diferentes formas de vender a alma no passado que engendrou o estado de exceção é preciso perdoar e colocar-se em posição compassiva, generosa. Do contrário, até por dentro de falas libertárias e radicais os mais apavorados poderão estar tecendo novos pactos com novos estados policiais. O Mal é o mais bem sucedido inventor de novidades. O Diabo aparece como o revolucionário mais eficiente, o discurso mais exato, mais competente (como falava a Chauí, em oitenta). Lamento ter escrito essa última frase, eu queria que não fosse assim. Precisamos pensar sobre a ideia de “assalto”, de revolução como uma tomada do poder central em uma sociedade civil. Acho que para romper com o Diabo precisamos deixar de querer vencer totalmente.

versão dois         foto: Daisy Weston  

Querida Zeferina - carta nove - Lulalá e o nascimento da população escravizada




                                     Querida Zê,


                                 Essa carta vai sair meio Henry James em A volta do parafuso, ou então Mary Shelley e seu Frankenstein.  É isso, para falar a verdade, estou agora a descrever um enredo sinistro ou uma monstruosidade. Preciso fazer isso. Há uma falsa calmaria, o medo cega, paralisa. Em geral os autores falam sobre a injustiça dos sofrimentos impingidos aos subordinados, sobre os modos de revolta, sobre a natureza econômica da relação, sobre aspectos menores jurídicos e culturais da situação vivida como realidade cotidiana. Falam como quem olha para um objeto exterior a um observador tranquilo. Não falam sobre uma totalidade, lavam as mãos como Pilatos. Tem gente da esquerda falando calmamente, como se uma greve geral fosse só questão de decidir: "bom, vou entrar em greve", como se fôssemos gregos capturáveis pelo dinheiro alemão. Já eu, assustada, quero falar sobre o dilaceramento interno num humano conduzido à escravidão em caráter definitivo. Quero falar a partir da dor que sinto. Nunca li sobre como nasce um escravo assim como se lesse um diário. Vou resumir porque tudo nas minhas cartas demanda uma sequência bem mais alargada, coisa que deixo para depois. Até porque dói, muito, e estou para escrever isso aqui faz mais de mês. Estou exausta, para falar a verdade. Não só porque o assunto dói, como também porque é um assunto quente no Brasil de 2017, no momento em que estão impondo leis ameaçadoras para todos os trabalhadores subordinados, principalmente os que fazem trabalhos repetitivos e têm pouca capacidade de negociação individual ou coletiva.
                                           O escravo nasce em um adulto capturado e exposto como um sujeito nu. Ele nasce quando o sequestro fica claro como definitivo, quando ele entende que perdeu – para sempre - a identidade, o território, qualquer poder sobre o próprio corpo. A desonra é o maior problema do escravo recém-nascido. O escravo que nasce de um escravo já não é mais tão escravo, porque ele já nasce em ambiente de luta abolicionista; nasce como um filho de guerreiro, mesmo sendo o mais emudecido cativo da senzala. O escravo, em seu nascimento como tal, aparece em um sujeito sequestrado e humilhado, um refugiado sem qualquer território seu, um cativo, que foi um sujeito com cidade e nome até antes do sequestro. Então, o maior problema do escravo, na inauguração do fenômeno, é justamente sua vergonha de sua nudez, de sua derrota, de seu abandono. "Como me deixei aprisionar? Como deixei que todos os que estavam comigo se perdessem de mim?”, são as angústias do escravo nu e revelado a si próprio como tal. Vai demorar um tempo até que ele se permita estar nu e sem nome, entenda a sua condição praticamente "pornográfica" e se acalme.  A nudez em público não é só a ausência de vestes, ela é a ausência de nome próprio com dignidade perante os outros. Os carteiros prestes a serem demitidos em março de 2017, no Brasil, devem estar se sentindo, Zeferina,  como se seus nomes não valessem nada para quem decide sobre a vida deles. Eles são sacrificáveis, como falou Giorgio Agamben no livro Homo Sacer, e seus nomes não importam mais, assim como suas vestes. Eles estão nus.
                                          Então, um escravo nascendo não é uma pessoa aprisionada subitamente, sequestrada e apavorada. Isso é um prisioneiro. Também não é um filho de escravo acostumado a sê-lo, por exemplo, filho de uma ama de leite em uma casa grande no Brasil colonial, uma criança nascida em um ambiente de enredos emocionais estáveis, habituais. Um homem que desembarca de um navio negreiro em uma época em que já se sabe bem o que são essas embarcações, já se foge delas na África e, ao chegar ao Brasil, 1730 vamos supor, ele entra em um enredo que aparece cheio de entendimentos claros e acomodações. Um africano chegado nesse cenário verá um mundo, uma sociedade. Verá nos olhos dos outros escravos a evidência de que ali há um modo de vida, ainda que difícil de viver.  Cenários possíveis e roupas correspondentes, nomes. Nesse caso, a condição de escravo está lá, mas também está lá a resistência –mesmo difusa e sem exército - e o recém-chegado mergulha nesse enredo tentado entender o ambiente, ajustar-se a ele adaptando-se às regras visíveis desde o início.  A escravização de uma população inteira, toda ela colocada sob a condição de “sem nomes e sem cidade” começa em uma violência desmedida, com muitas mortes e enlouquecimentos, mas inaugura para os sobreviventes um acontecimento que eu vou chamar de abolicionismo, para, desde já, estabelecer uma comunicação de memória entre o que podemos fazer agora e o que conseguiram fazer os escravos brasileiros desde 1550 até 1888, quando os donos do poder, neste país, precisaram inventar uma saída no sentido jurídico de liberdade formal. Então foram mais de trezentos anos de luta, mas construindo um caminho de vitórias parciais e progressivas. Podemos aprender com eles.
                                                 Eu quero falar sobre o sujeito que se entende por livre, integrado a uma vida em comunidade, e é aprisionado em uma situação desconhecida e inaugural, para ele e para todos a sua volta. Então, tenho que falar sobre o que Franco Berardi informa acerca de um crescimento assustador dos suicídios entre os jovens homens de 18 a 34 anos, no mundo, “sendo a depressão – patologia emocional mais presente no comportamento suicida – identificada como a segunda forma de incapacidade mais recorrente no planeta, até 2020”. Quero falar sobre os jovens nerds da base eleitoral do Trump, um agrupamento niilista que faz o elogio da rejeição às mulheres e se diverte com a própria identidade de “fracassados”, segundo li na Folha de São Paulo de 19 de março de 2017. Quero falar de quando as memórias coletivas e individuais se esvaem de dentro de um corpo humano e ele se transforma em um outro animal, durante um tempo sem saber quem virá a ser no final de uma metamorfose dilacerante, macabra. Penso em todos os que dançam essas músicas estúpidas de ritmos anestesiantes e depois imitam as propagandas das televisões e morrem e matam em ultrapassagens suicidas nas estradas brasileiras. Penso no enjoativo excesso de bundas expostas em imagens repetidas e no aumento evidente da solidão nas grandes cidades. Todos esses estão ficando nus, perdendo seus nomes próprios como símbolos que importam.
                             O escravo aparece como tal no momento em que se entrega emocional e cognitivamente ao encarceramento definitivo. O Harari, que tem quarenta anos e é professor na universidade Hebraica de Jerusalém, nascido em Israel, conta, em seu último grande best seller, Homo Deus, a tortura cometida contra ratos que boiam em um tubo de ensaio:  
Por exemplo, as companhias farmacêuticas usam rotineiramente ratos como objetos experimentais no desenvolvimento de antidepressivos. De acordo com um protocolo amplamente utilizado, pegam-se cem ratos (em nome da fidedignidade estatística) e põe-se cada um deles em um tubo de vidro cheio d’água. Os ratos esforçam-se incessantemente para escalar a parede do tubo, sem sucesso. Depois de quinze minutos, a maioria para de se movimentar. Eles apenas flutuam no tubo, apáticos ao seu entorno. Pegam-se então outros cem ratos, que são jogados nos tubos, mas são puxados para fora depois de catorze minutos, pouco antes de estarem prestes a entrar em desespero. Na sequência, eles são secos, alimentados e lhes é concedido um breve descanso – e então são jogados no tubo novamente. Na segunda vez, a maioria dos ratos luta durante vinte minutos antes de entregar os pontos. Por que esses seis minutos a mais? Porque a memória do sucesso obtido desencadeia a liberação de algumas substâncias bioquímicas no cérebro que lhes dá esperança e adia o advento do desespero”.
Está na página 130, do Homo Deus. Eu fiquei imaginando que o rato, quando para e fica boiando, poderá ser tirado dali e, em um certo tempo necessário para superar o trauma, sair correndo atrás de um canto seguro, uma toca, uma moita no meio da mata, se lhe fosse possível fugir. Seria um luto traumático do rato, ele ficaria para sempre um rato paranoico, mas conseguiria uma retomada, cheia de adrenalina, de um chance de vida a mais. Fico pensando que esses pesquisadores devem ter tentado estudar o quanto essa memória de crença na vida digna pode ser resgatada pelo rato e em quanto tempo ele cai definitivamente numa deriva deprimida, para sempre. Um rato morto vivo ou um rato autista, manifestando sentimentos em frequências gravadas em repetições não mais no padrão inteligível da sua espécie.  Eles devem ter feito essa parte da experiência, mas o Harari não inclui, em seu livro essa situação. No livro Homo Deus, esse jovem phD. em Oxford, está tentando mostrar a crueldade do animal da espécie homo sapiens, abrindo espaço para que o discurso sobre a ética da tradição moderna seja sentido pelos leitores como falácia, invenção delirante. Mas essa narrativa sobre a crueldade só poderá ir até o ponto em que fica mantida a comparação entre a frieza do pesquisador e o sofrimento do pequeno branquinho peludo. Quando essa comparação se estende para o significado do tempo de sofrimento e da condição apática em situação de sobrevida do rato, aí perde o sentido – no livro cheio de algoritmos – porque irá despertar o conhecimento que todo o leitor mestiço, negro ou indígena poderá trazer da memória coletiva sobre a escravidão, o encarceramento definitivo dentro de um corpo sem direito algum, dependendo de favores até para comer e caminhar.
                                               Quanto tempo deve ter demorado para  que os cem ratinhos brancos se tornassem apáticos em definitivo? Para o resto de suas vidas, não importando a beleza e gostosura de alimentos e gramados e matinhos oferecidos pós-trauma? Imagino os cientistas colocando séries de ratinhos, em grupos de cem, dia após dia, e esticando o tempo dos naufragados dentro dos tubos de ensaio e depois os retirando e oferecendo boa condição de vida até eles se recuperarem. Fazendo isso com várias séries de ratos, alongando mais e mais o tempo, fazendo séries diárias durante meses, até que se realize a mágica: pronto, aqui está a situação emocional de um escravo com banzo, pensaria um estudioso do escravismo colonial brasileiro.  Ou pensaria  um estudioso sobre a formação deste neo-escravismo tecnológico do século vinte e um. Não podemos saber como se sentiram os primeiros africanos sequestrados para o Brasil em navios atravessando o Atlântico, né, Zeferina? Não temos as narrativas dessa pesquisa que começou nos primeiros navios negreiros, quando chegavam quase todos mortos, poucos sobreviventes da travessia no oceano Atlântico, empilhados em um porão úmido de navio, doentes, pestilentos, imundos, desesperados dias a fio. Chegando aqui, eram apartados uns dos outros, vendidos e jogados em senzalas com outros africanos estranhos, de falas estranhas, ninguém se entendendo. Ganhavam a denominação de negros boçais, a palavra significando, até hoje, o sujeito que não entende nada do que se passa a seu redor. Quanto tempo e quantas vezes de travessia para os traficantes entenderem que estavam a perder tempo e dinheiro, dado o elevado número de mortos?  Quando os navios começaram a utilizar espaço para colocar redes, para armazenar fezes e separá-las dos prisioneiros, para fazer algum tipo de higiene, alguma água do mar para lavarem-se; quando começaram a usar redes para dormirem os mais velhos, as mulheres, os adoecidos de medo e melancolia?  Teria sido, esta experiência com negros sequestrados em 1540, no sentido contrário ao dos testes com ratos da indústria química de 2010: reduzia-se aos poucos o tempo e a intensidade de sofrimento dos africanos para alcançar o nível mínimo de dignidade e aptidão para o trabalho nas grandes plantações de cana-de-açúcar no Brasil. Isso porque o banzo, a desistência da vida, era uma doença  frequente entre os primeiros negros sequestrados nos tempos coloniais.  Mas o Harari fala quase invisivelmente em maus tratos entre humanos, o assunto abrigando poucos parágrafos do livro em cenários de confrontos entre nações antigas, como se todo o conjunto da espécie homo sapiens fosse ignóbil, ignorante e má. Nada de luta de classes, extração de mais-valia, nada de maldade dos perversos que por serem cruéis sempre se tornaram as classes dominantes, nada desse tipo de pensamento. Pelo contrário, Harari afirma, sem necessidade de explicações detalhadas, que o comunismo foi uma religião estúpida semelhante ao nazismo e o capitalismo é a própria essência do que seja o gênero humano. O livro do professor israelense, lançado em 2015 com o subtítulo de “Uma breve história do amanhã”, propõe a hipótese de ser toda a espécie sapiens essencialmente violenta, perversa e, sobretudo, estúpida e que poderia estar fadada ao desaparecimento.
                                                   Ele não conta detalhes sobre esse pedaço das pesquisas feitas pelas indústrias farmacêuticas durante pelo menos o final do século vinte e o início do vinte e um, em ratos, sobre a depressão e seus limites diante da vida, mas podemos supor que os pesquisadores devem ter estudado o momento em que a apatia da depressão se torna um acontecimento permanente no roedor, e do quanto a administração de químicas pode fazer retornar nele alguma capacidade de agir, ainda que em uma dinâmica autista. Essas pesquisas eram feitas para a descoberta de hormônios que poderiam compor a fórmula de antidepressivos a serem administrados em seres humanos. Remédios que se tornaram tão comuns, na segunda década do século vinte e um, quanto as aspirinas, quase todos os adultos trabalhadores tomando algum, durante alguns meses ou anos, muitos a vida inteira. Muitos destes encontrando um modo apático de levar a vida adiante, um fracasso estável. Talvez o Trump seja um dos primeiros acontecimentos a provocar a impressão de que as estratégias de gerências do Capital cognitivo não estejam dando resultados esperados ou, ao menos, seguros para os gerentes.
                                              A nudez de um escravo não depende da roupa que veste, ou do nome que usa, ela se realiza na perda de uma memória coletiva de pertencimento a uma cidade, a uma etnia concreta, não essas etnias de embalagens, de modelos fazendo propagandas de televisão com aparências de “o negro”, “o ruivo”, “o japonês”, todos jovens lindos, magros e saudáveis, modelos inseridos em um mundo de bricolagens sem passado.  A nudez que nasce em uma população escravizada é, portanto, a destruição das memórias coletivas anteriores ao sequestro de todos, anteriores à imersão de todos em um território estrangeiro e hostil. Só sobrevivem os que  lembram, os que recordam por meio de músicas, de rezas, de danças, as lendas e os ensinamentos de seus antepassados. Talvez – apenas talvez, como falou o Jacques Derrida – o apego ao nome Lula, e à ideia Lulalá, se explique como uma razão coletiva de defesa de memória, a lembrança de um tempo em que a esperança de nomes próprios dignos e cidades de pertencimentos eram nossas bagagens, roupas e territórios simbólicos. Bom dia, Zeferina.

versão dois - foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti, loja em Havana