Mulheres precisam ter um lar
Mulheres precisam ter um homem
Mulheres precisam ter um, pelo menos
um filho
Mulheres precisam ter uma aparência
de pouco uso
para poderem ser capturadas
pelo homem dono do lar e do filho
Mulheres capturadas possuem poder
Mulheres capturadas são seguras
Mulheres capturadas são firmes
Mulheres capturadas possuem a
capacidade de brincar
entre elas e nos quintais
dos seus lares bonitos e limpos
Kawé era uma
mulher grande, bonitona como disse um cara uma vez. Ela se achava uma gorila
porque tinha os ombros largos como os de um homem, como as nadadoras, os olhos
pequenos e próximos e o maxilar robusto. Pensava que todos os humanos tinham
uma semelhança definitiva com um único animal, embora pudessem iludir e tentar
parecer outro, ou nenhum, como se um ser humano pudesse não ter origem em um
outro animal do mundo. Sua amiga Magnólia, por exemplo, enganava ser uma gata,
era manhosa, com um caminhar silencioso, olhos verdes grandes e intensos, um
corpo pequeno, toda ela pequena, delicada. Mas quem observava as pessoas
detidamente, como Kawé, encontraria em Magnólia, ao longo de um tempo grande de
estudo, uma aranha. Magnólia parada, rígida, de um silêncio monacal, reta mesmo
quando caminhava ligeiro. Ela era dura, presa, atenta demais e guardava uma
frieza gigante e levemente melancólica. Kawé chorava por “dá cá aquela palha”,
era tristonha e compenetrada e gostava de estar só em seu canto. As pessoas
vestidas com armaduras, isso era muito comum naqueles tempos de guerra,
costumavam falar sem pensar direito e acabavam achando que pareciam com
cachorros, ou gatos, sempre cachorros ou gatos. Mas Kawé pertencia ao pequeno
grupo dos mutantes, dos que não usavam armaduras, dos que tentavam entender as
palavras que saíam de suas bocas e das bocam alheias. E Magnólia, embora
parecesse uma mulher militar de algum daqueles exércitos do dia a dia, era um
mutante nascendo. Porque algumas pessoas daqueles tempos abrigavam mutações em
processo, como se fossem cobras trocando a pele. Não todas, só uma minoria era
mutante, poucos sobreviveriam àqueles tempos da última grande guerra.
Kawé escrevia
aquele poema depois de ter lido, avidamente, o livro “A História da Aia”, de
Margaret Atwood. Tinha lido também no blog de uma moça de nome Tânia de Souza:
“na Republica de Gilead, outrora Estados Unidos da América, num futuro próximo,
literatura, arte, direitos, escolhas, pensamentos... quase tudo se tornou
proibido. O tema não é novo: humanidade em perigo, um regime fundamentalista e
patriarcal toma o poder. Um Muro exibe os corpos dos pecadores, condenados que
servem de aviso a todos. E nessa sociedade, as mulheres estão divididas em
castas e categorias bem definidas: aias, esposas, martas, tias, antimulheres,
economesposas... Algumas já foram Moira, Janine, Lydia, Elizabeth, Serena...
Mas estes nomes, principalmente para as aias, estão proibidos. E no absurdo dos
sistemas totalitários, de controle e como sempre, nos jogos de poder o lícito
ou proibido é extremamente relativo”. A mulher gorila das montanhas, solitária,
pensativa e rude, Kawé, estava naquele momento mergulhada em pensamentos sobre
a história do livro, sobre as Aias, mulheres férteis aprisionadas por todo o
território continental da República de Gilead, escravas das esposas inférteis e
submetidas a cópulas regulares com os maridos das esposas, os comandantes, para
que produzissem filhos a serem propriedade de cada casal gerente dos feudos
militares. Nos tempos de Kawé, ainda, as mulheres eram quase todas feministas
tal como o grande império propunha ou aceitava, menos as escravizadas que eram
pertencentes àquela maioria esmagadora que não contava para definir
mentalidades. Isto é, talvez setenta por cento (ela não sabia) talvez mais ou
menos ao menos a metade da população mundial de mulheres passava fome ou era
espancada em algum momento de um ano, e tinham de fazer sexo dolorido ou sem
graça nos momentos mais incômodos, com seus próprios maridos, ou namorados, ou
homens eventuais que as atacavam e muitas eram torturadas e tinham parte de
seus corpos mutilados. Mas essas mulheres não contavam para definir a
mentalidade daqueles tempos do grande império gerencial, elas eram “vida nua”
como dizia o filósofo Giorgio Agamben, matáveis, desnecessárias às definições
culturais e jurídicas. As mulheres que contavam, a minoria, eram possuidoras de
muitos direitos: de trabalhar, estudar, ter carros, apartamentos e casas
bonitas, ter filhos ou não, trocar de marido ou ficar transando com um ou outro
ao deus dará, quando desse em suas telhas de irem a uma festa barulhenta. Havia
as mulheres lésbicas, agora até podendo casar (embora a “vida nua” às
convidasse o tempo inteiro) e serem, algumas, semelhantes a homens em público;
dava pra assistir mulheres lutando esses lutas de bater de todos os modos,
agarrar de qualquer maneira e rolar em um aquário de telas e sem água, e o
público discutindo entre sorrisos entusiasmados se, afinal, elas seriam
lésbicas ou não, ou poderiam ser mulheres de seus treinadores.
Escrevia o poema
por sentir que o livro da Aia estava mais próximo da realidade de seu tempo do
que as falas das televisões e dos computadores. As mulheres que Kawé conhecia
eram guerreiras solitárias, lhes era muito difícil não ter marido e era uma
tarefa gigante conseguir um que não as machucasse. As que tinham marido ficavam
a todo instante se refestelando para todo o mundo ver: “eu tenho marido! Eu
tenho marido!”. Parecia, aos olhos tristonhos de Kawé, a mulher gorila da
montanha, que ter marido era ter um castelo, um lugar protegido. As mulheres
sempre precisaram de maridos para se sentirem calmas e protegidas e eles, os
maridos, resolviam ter mulheres quando decidiam ter uma casa com filhos,
cachorros e gatos. E empregadas domésticas.
Mas, nos últimos tempos, outros animais começavam a aflorar nas
aparências do mundo, não eram mais apenas cães, gatos e humanos. A humanidade
pura dos humanos estava diminuindo e suas animalidades mórficas começavam a
aparecer. A coisa era tão visível que chegava ao ponto de ser assim: se você
conseguisse entender qual era o animal da pessoa a sua frente saberia como
lidar com ela e, até mesmo, como aceitá-la melhor. O que a pessoa dizia
importava menos do que o modo como ela suportava seu medo, como ela se mantinha
coesa, estável, integrada. E as pessoas estavam se mantendo a partir de
recursos de memória (mórfica) não humanos. Não era um acontecimento físico na
aparência delas, os que usavam armaduras não conseguiam entender, era algo como
os arquétipos do psicanalista e pensador C. Jung, como os devires animais do
filósofo Gilles Deleuze, algo que a astrologia e as cartas de tarô tentavam
alcançar sem a eficiência necessária.
Como aquele funcionário público que havia sido policial civil por vinte
anos, o Amâncio, que se lembrava de ter espancado e atirado nas pernas e na
cabeça de jovens assaltantes. O Amâncio parecia um cão policial, em uma
observação menos atenta, porque sempre estivéramos acostumados a cães e gatos,
mas, olhando bem ele era um enorme jacaré velho e transtornado. Atacava
crianças tentando aproximarem-se da água, na margem da lagoa. Ela sentia estar
acontecendo uma mutação de todo aquele único e enorme ser vivo que era o Planeta
Terra. Uma só mutação acontecendo em todas as suas células, seres vivos,
pedras, metais, ventos e marés. Não podia falar sobre isso nem mesmo com
Magnólia, sua amiga aranha, não só porque a pequena Mag era arisca a
pensamentos arriscados, sempre tecendo suas teias no trabalho, sempre querendo
somente trabalhar e trabalhar mais, mas também porque Mag a acharia louca e
confusa, já que a pequena gostava de estar envolvida em falas comuns, as falas
que todos diziam e eram disciplinadas e fáceis de entender. Kawé não gostava
das falas burras daquele mundo, gostava de seus peitos, de seu corpo, de seus
interiores sutis e preguiçosos; gostava de ter um homem bem homem e de que ele
fosse, como era, bom, alegre e corajoso, adorava ser mãe, ser vó, mas tudo
aquilo parecia pouco, precário, indefinido, inadequado, impreciso. Impróprio.
Sempre faltava algo precioso e decisivo. Essa inteiritude só deixava de faltar
quando ela se dava conta e entendia o fato evidente de ter em si uma gorila
compenetrada e tristonha. Plena.