O Abismo e a Terra prometida

Vamos falar sobre religião? A filosofia do abismo não existe na minha crença pessoal. Explico, de um modo simples e inexato, como sempre é tudo o que realmente é.
Há budistas de todo o gênero, nem parecem pertencer ao mesmo ramo de uma das quatro ou cinco grandes filosofias religiosas dos humanos (grosso modo, vou elencar o hinduísmo, o xamanismo - que atua diretamente na vida de um número significativo de comunidades -, o budismo, o islamismo e o cristianismo). Na verdade, esses ramos se misturam em alguns territórios simbólicos e/ ou geográficos, tendo o xamanismo uma influência, não medida pelas estatísticas oficiais, muito maior do que a Mídia Poder permite divulgar. As tradições intuitivas primevas relacionadas às percepções mágicas e sagradas - ao mesmo tempo - sobre o espaço, o ar, os ventos, as águas, as luas, os animais, os antepassados dos humanos e suas memórias mitológicas influenciam a vida de parcela significativa da população "sapiens sapiens" do Planeta Azul. Talvez parte de sua imensa magia esteja no simples fato de que o xamanismo acaba sendo quase um acontecimento de feição "anarquista", mas a verdadeira ideia anarquista, a que perpassa inúmeros modos de ver a beleza do mundo e não aquele anarquismo mentiroso dos liberais do século vinte e um, que fala sobre desordens generalizadas, sobre a velha "livre iniciativa". O anarquismo tem a ver com a ideia de que  primeiro são as emoções e só depois os pensamentos, as palavras. Ele tem a ver com amar e, portanto, com o respeito ao outro, a aceitação daquilo que não está em mim e não é meu. Nesse formato, na forma de amizade, tal como definida por Deleuze (todas as amizades são similares ao Gordo e o Magro, às duplas cômicas de amigos), o anarquismo não é atingido pelo controle do Império Capitalista. Ele não é cooptável, não ouve o "canto das sereias". No budismo, existem inúmeras frações que agregam valores e sentidos xamânicos. Há budistas que entendem ser a vida de um indivíduo humano uma série de ilusões recobrindo o seu cotidiano, invadindo e desaparecendo de maneira não controlada por ele, jogando-o em angústias, medos e tormentos sucessivos, de tal maneira que o tempo de permanência de um indivíduo humano no mundo conhecido por nós se revela como um verdadeiro abismo. Abismos, abismos, abismos nos quais nos sentimos caindo, sem autonomia, durante uma vida inteira até nossa morte; isso se não soubermos entender o sentido da vida a partir da tessitura conceitual da filosofia gravada como memória na constelação dos Budas, seus signos e sentidos. A filosofia do abismo não existe na minha religião.
Creio (portanto sou protegida por) fazer parte de um fluxo de acontecimentos em uma seqüência de filiação de mãe, avó, bisavó, trisavó e assim infinitamente. Nessa série, não existem homens, embora nossos filhos homens sejam também, em linha paralela, limitada e mais fraca (porque se mistura com outros fluxos), sejam protegidos por nós, suas mães. Há uma pressão constante da ilusão entrópica (nos últimos milênios da espécie humana essa ilusão se chama Capitalismo) para desmanchar a força deste fluxo, misturá-lo com outros, destruir suas memórias, impedir sua descoberta de essência vital. Em primeiro lugar, a ilusão se move para embaralhar as memórias individuais e assim destruir as conexões (reais e históricas) possíveis entre essas memórias dentro de uma comunidade e, depois, dentro de um conjunto de comunidades. Em verdade, quando as conexões de memória não se realizam de modo imanente, entre indivíduos e comunidades, elas são realizadas por sistemas ilusórios de significação, servindo para favorecer o poder dos mais fortes em detrimento da dignidade dos mais fracos. Em segundo lugar, a ilusão se move no sentido de reconstruir-se em novas ilusões controladoras, transcendentes ao que é e está no campo corpóreo de cada indivíduo, sempre que sua força finda. Ou seja, somos jogados de uma ilusão em outra: absolutismos, tiranias, monarquias, totalitarismos, ditaduras de todo o gênero. Essa série de ilusões é que é o abismo, o grande abismo. Isso quer dizer que o abismo não está no real do Planeta Terra, o abismo se origina no medo e na fraqueza dos primeiros homens, os primitivos seres humanos do sexo masculino, que criaram o poder do mais forte e subordinaram a ele, o Dono, o Patrão, o Pater Familis  todos os humanos mais fracos e toda a natureza animal, vegetal e mineral.
Todas as mães, sem exceção, sempre foram violentadas, oprimidas, humilhadas, em todo o Planeta, em todas as suas vidas ou, ao menos, em fases decisivas delas (a humilhação se estendendo como memória e repetição traumática nas fases mais brandas de suas escravidões). Mesmo as mães subordinadas dentro de estruturas de elites poderosas são domesticadas, disciplinadas para serem cruéis e não maternas.  Por isso, a maioria das mães acaba sempre acreditando e reproduzindo a grande ilusão dos abismos, abismos, abismos. Mesmo sob essa abissal tirania, somente as mães mais brutalizadas não conseguem envolver seus filhos em úteros bons, ao menos uma parte decisiva do tempo de sua prole; úteros que não se esgotam na gestação, mas revelam-se em cuidados e lógicas protetoras durante toda a vida da mãe. E são muitas as mães brutalizadas de modo a perderem a força da maternidade. Em uma mãe agredida demais nasce a solução histórica do poder masculino destruidor e excludente e ela, a mãe, torna-se parte da ilusão abissal. Na teologia das maternidades, no tempo/espaço do Sagrado de cada mulher filha e mãe, a vida se revela em fluxos imediatos e seguros dos verbos primeiros: cuidar, proteger, alimentar, limpar, curar, acalmar, alegrar, abrigar, ensinar a ver (com os próprios olhos) e falar (com a própria voz). Em nosso mundo repleto de abismos construídos por sucessões de tiranias, sobrevivem maternidades subversivas, insurgentes, clandestinas, contraditórias, ambivalentes, híbridas. Trata-se de você encontrar, em sua memória, a maternidade que lhe permitiu estar vivo agora, ajudando-o a saber de si, a sobreviver em meio aos dilúvios arrogantes dos Donos, dos Patrões, dos Pater Familis. Às vezes, surpreendentemente, essa maternidade aparece e se revela em um indivíduo do sexo masculino,  desses desviantes da trajetória iludida da maioria dos homens.
Como então resolver esse enigma? Como libertar os seres humanos do sexo masculino dessas tradições dos abismos? Como retirar cada mulher da posição aprisionada pelos homens em seu entorno e como ensinar aos homens o entendimento de que a propriedade, o poder de mando, a subjugação não protegem ninguém?
Crendo e vivendo uma vida sagrada em defesa do cuidar, do proteger, do acalmar, do ensinar a ver – com os próprios olhos – e falar – com a própria voz.

Não existe um único Deus todo poderoso na vida real. Esse super deus só pode existir nos abismos que a humanidade viu se sucederem em toda a sua existência neste Planeta Azul. Existem deuses pessoais, maternos, frágeis deuses de nossa sobrevivência cotidiana.  Deus está em sua mãe, meu filho, seja ela um homem ou uma mulher, um parente próximo ou a vizinha que virou tua “mãezinha” porque te criou enquanto tua mãe era ausente. Da conexão entre esses deuses pessoais, do fortalecimento do espaço sagrado desses deuses pequenos e femininos depende a sobrevivência de alguma espécie humana na Terra. (Dinah Lemos, 28.07.2013 na primeira versão quando o Papa inundou os noticiários em visita no Brasil, 28.07.2016, na segunda versão, na semana em que o Papa declarou em entrevista que o mundo está mergulhando em uma Terceira Guerra Mundial)
           
                                    

A bugra velha - versão dois - Bar da Rarlet


O Bar da Rarlet, um prostíbulo de beira de estrada frequentado por caminhoneiros, estivadores, pedreiros e nômades, apareceu como uma pequena construção de material e madeira, com luzes vermelhas comuns coroando a fachada. Na frente, um muro de uns dois metros de altura, de tijolos e pintado de branco, escrito em letras pretas de um metro e meio, maiúsculas: BAR DA RARLET, o letreiro ocupando todo o muro que daria para ver  de muito longe. Quando essa história começou, ele foi emergindo da névoa desimportante e apareceu como um castelo encantado em um terreno enorme e cercado um tanto por um muro alto, outro tanto por paredões de hibiscos. A grande construção da frente, dois andares, o bar embaixo e a casa da “Halê” em cima; atrás, à esquerda, as casinhas das prostitutas com formatos diferentes, cores diferentes, qualidades distintas formando duas fileiras de casas voltadas para um pátio interno, um jardim. Ao lado direito do bar, para quem observa olhando a sua porta de entrada, um terreno ocupado por um pomar atrás do qual ficava a lavanderia, um espaço com varais internos e externos, um canto como um grande estar com fogão à lenha, máquinas de lavar, fogão à gás, um balcão de mármore com pia, um tanque grande para deixar roupas de molho, tudo isso acolherado ao quarto do porteiro, o enorme ogro de nome Jonas, um sujeito deficiente por sequelas de uma infecção infantil, manco, torto. Depois da lavanderia uma fileira de vagas para carros em um estacionamento ao lado dos fundos do conjunto das casas das putas. Um enorme e confortável empreendimento.
Um dia uma mulher mestiça, pele escura e cabelos longos agrisalhados e amarrados em uma trança procurou a dona do bar, dizendo ser uma atriz e propondo um contrato estranho. "Quero alugar seu bar para apresentar peças de teatro, músicas, mímicas"; a bugra já não mais uma mulher nova explicou: "são performances experimentais para noites sem clientes importantes, vazio o seu bar, ou com um ou outro; e a senhora explica a seus clientes chegados, habituais, e a suas moças o meu caso e que tenham paciência de assistir, afinal estarei pagando". Rarlet, mulher forte, peitos bons, altiva, cabelos aloirados em mechas, boca vermelha sempre pintada, olhos verdes de águia, cigarro nos dedos de unhas para se olhar, perfumes cítricos ou amadeirados, ainda uma mulher não velha, surpresa com a bugra, lhe dá abrigo. "nas terças, terças; a senhora usa meu palco, o microfone e a luz, se quiser; pagando e não machucando ninguém...", a dona ri, uma ex-puta ainda bonita, "mas não demora muito, né?, ninguém tem paciência". Não era burra, sabia falar mais do que um qualquer. Riu aquela risada de galpão dos bons tempos daquela fronteira sul do país Brasil, quando as mulheres ainda riam às gaitadas. Ninguém sabia, nem podia imaginar, o quanto os barulhos de alegria escasseariam no ano seguinte.
Dona Ana, com seus olhos de monge indiano, distantes e felizes, respondeu: “é pouca coisa, dona Halê, começa e acaba logo". Ri um riso menor, simpática. “É Rarlet”, a dona soletra, “mas eles dizem Halê, aqui ninguém sabe escrever direito”, diz sincera e crua. “E sobre o que, dona Ana”? Rarlet gerente, policia federal, diziam brincando, que naquela época o mais importante era ser "federal", falavam os homens e concordavam as putas. Isso foi em 2015, quando os federais andavam prendendo gente grande, tudo era escândalo na televisão, até que teve o acidente com os meninos daquele time de futebol mais querido do país, no ano seguinte, 2016. Foi bem um ano antes daquela tristeza sem tamanho, uma ano antes começou esta história. A bugra riu e saiu andando em direção ao palco no fundo do bar, à direita de quem entra, olhando as mesas com seus abajures distintos uns dos outros, mesas grandes para os bandos de estivadores e caminhoneiros quando o porto se mexia como um formigueiro em dias de carga e descarga, mesas pequenas para os casais de fora ou de parceiros já estáveis das moças de programas, a já mais velha - mas ainda atlética - Ana atriz, num passo indelével marcado pela leve artrose nos quadris, andar cuidado, arredondado pela gentileza com seus próprios ossos, quase não dava pra ver, mas a cafetina entendia de corpos, era uma especialista.
 Ana dançou uns passos rápidos de street dance tornando-se súbito uma figura jovial para a dona do bar ver, subiu as escadas poucas de acesso ao tablado de madeira antiga e escura e falou, lá em cima: "a senhora já parou para ver criança brincando?"; e Halê, se sentindo contagiada pelo olhar espelho, olhar de águia que a mestiça então lhe ofereceu, sorriu imaginando coisas, pensando que talvez fosse uma louca. Mas dava pra ver que era atriz, podendo até ser comediante, quem sabe. Combinaram de boca um preço, um tempo, um dia. Foi depois que a índia atriz alugou a casa na praia, invadiu a cidade pequena, ainda, com um caminhão entulhado de coisas urbanas e cosmopolitas e assentou-se naquela cidade portuária. Não digo o nome que é pra você não procurar no google, pra não fazer fofoca por aí, porque vou te contar segredos e porque, você sabe, é uma dessas histórias que você vai encontrar em qualquer lugar. Daquela situação se poderia contar um número grande de histórias, do cinzento Licurgo, dos desatinos da menina Leine, das brigas no Porto, dos medos, e tudo acabaria sendo uma versão século XXI do mesmo de sempre, do amor da vida, aquele destino que os grandes e as lindas decidem percorrer. Mas o caso aqui não é esse amor da vida, embora acabe sendo, o caso é que, naquele tempo, a morte passou a se aproximar. A malina andava tão perto de todo o mundo que a vida, toda ela, de todo mundo, começou –assim, do nada – a como que se encantar. Como naquele romance de 1950, A Peste, de Albert Camus, onde se lia: “Meus irmãos, a hora chegou. É necessário crer em tudo ou negar tudo. E quem entre nós, ousaria negar tudo?”.

 É isso, é sobre isso.