Olha, eu penso faz tempo como se eu fosse uma ET de outro planeta assistindo um PASSADO acontecer. Eu não penso como uma pessoa cidadã que quer atuar politicamente. Eu tentei ter direitos políticos quando tinha 20 a 30 anos e não consegui. Antes disso eu nunca tive direitos políticos e sofria assédios violentos contra minha integridade física e moral. Depois disso eu sofri ataques violentos intermitentes contra a minha integridade física e moral até pouco tempo atrás. Agora que me encontro exilada na aposentadoria e em um local mais retirado de moradia (em relação aos grandes centros urbanos), eu entendi que nunca tive direitos políticos, a não ser votar em alguém com quem eu não me identificava. Em todos os níveis eleitorais. Então, pra mim é muito fácil olhar para o mundo atual e entende-lo. Eu entendo que a ideia de contaminação, defendida por Le Pen, é realmente eficiente, como discurso político e como pensamento epistemológico. Não digo que é boa ou má, no campo da ética, apenas eficiente no campo da política e da técnica. Se vc for interpretar o fim do Império Romano e ler os debates sobre suas causas verá que até hoje as divergências não foram resolvidas. De onde brotam os novos tempos? As sínteses de contradições? As realizações sublimes das perfeições trágicas nos embates entre Dioniso e Apolo? O Capitalismo não vai acabar, esse capitalismo de 1500 até 2001, e com esse epílogo que vivemos, de um modo conhecido, técnica, filosófica e politicamente. É preciso olhar para os acontecimentos sem ter um ponto de partida na linguagem conhecida. É preciso surfar em terminologias por meio da intuição, da contra-intuição às vezes derivada de um olhar intensamente imanente, às vezes derivada de um sentimento intensamente metafísico. Por exemplo: por que esse meu longo discurso/pensamento não interessa a ninguém e o texto intuitivo e impreciso da Butler, por ocasião do atentado em Paris do Estado Islâmico em 2015, novembro, deve ser tão lido? Não será essa contradição que movimenta tantos sentimentos relacionados ao aumento dos votos e das escolhas por fundamentalismos, sejam eles onde e quais forem? Por que se vê o militarismo apenas nas armas quando ele está no controle absolutista dos discursos possíveis no campo das visibilidades? Quando a inteligentzia vai se dar conta de que todos os discursos proibidos aos campos de visibilidades estão migrando para algum tipo de fundamentalismo? E que os "campos de visibilidades" (políticas e técnicas, por certo) estão se abrigando atrás de armas? E que carregando essas armas estão sujeitos sociais invisíveis em sua maioria, ou seja, o poder tradicional e consolidado na modernidade não tem mais controle dos exércitos? A Judith Butler diz: "pensemos, pensemos". Eu não vejo saída a não ser um futuro marcado por escolhas religiosas inaugurais e um volume nunca dantes visto de guerras civis, genocídios, guerras imperialistas, epidemias, desastres ecológicos, etc. É "O APOCALIPSE"? Não, é o fim de um mundo que começou há 100 mil anos, talvez. É o fim de uma espécie humana. Depois a história vai continuar com um novo Retorno que ora se insinua, atônito, apolíneo e dionisíaco ao mesmo tempo, um novo porvir para uma nova e inaugural espécie humana, totalmente diferente da nossa, nem melhor e nem pior. Incomparável.
Era Dioniso contra o Crucificado, agora é a Luz contra o Desespero. E cada um com seu próprio Deus.
Incomparável, Dionisíaco e Apolíneo The End.
Olha, eu penso faz tempo como se eu fosse uma ET de outro planeta assistindo um PASSADO acontecer. Eu não penso como uma pessoa cidadã que quer atuar politicamente. Eu tentei ter direitos políticos quando tinha 20 a 30 anos e não consegui. Antes disso eu nunca tive direitos políticos e sofria assédios violentos contra minha integridade física e moral. Depois disso eu sofri ataques violentos intermitentes contra a minha integridade física e moral até pouco tempo atrás. Agora que me encontro exilada na aposentadoria e em um local mais retirado de moradia (em relação aos grandes centros urbanos), eu entendi que nunca tive direitos políticos, a não ser votar em alguém com quem eu não me identificava. Em todos os níveis eleitorais. Então, pra mim é muito fácil olhar para o mundo atual e entende-lo. Eu entendo que a ideia de contaminação, defendida por Le Pen, é realmente eficiente, como discurso político e como pensamento epistemológico. Não digo que é boa ou má, no campo da ética, apenas eficiente no campo da política e da técnica. Se vc for interpretar o fim do Império Romano e ler os debates sobre suas causas verá que até hoje as divergências não foram resolvidas. De onde brotam os novos tempos? As sínteses de contradições? As realizações sublimes das perfeições trágicas nos embates entre Dioniso e Apolo? O Capitalismo não vai acabar, esse capitalismo de 1500 até 2001, e com esse epílogo que vivemos, de um modo conhecido, técnica, filosófica e politicamente. É preciso olhar para os acontecimentos sem ter um ponto de partida na linguagem conhecida. É preciso surfar em terminologias por meio da intuição, da contra-intuição às vezes derivada de um olhar intensamente imanente, às vezes derivada de um sentimento intensamente metafísico. Por exemplo: por que esse meu longo discurso/pensamento não interessa a ninguém e o texto intuitivo e impreciso da Butler, por ocasião do atentado em Paris do Estado Islâmico em 2015, novembro, deve ser tão lido? Não será essa contradição que movimenta tantos sentimentos relacionados ao aumento dos votos e das escolhas por fundamentalismos, sejam eles onde e quais forem? Por que se vê o militarismo apenas nas armas quando ele está no controle absolutista dos discursos possíveis no campo das visibilidades? Quando a inteligentzia vai se dar conta de que todos os discursos proibidos aos campos de visibilidades estão migrando para algum tipo de fundamentalismo? E que os "campos de visibilidades" (políticas e técnicas, por certo) estão se abrigando atrás de armas? E que carregando essas armas estão sujeitos sociais invisíveis em sua maioria, ou seja, o poder tradicional e consolidado na modernidade não tem mais controle dos exércitos? A Judith Butler diz: "pensemos, pensemos". Eu não vejo saída a não ser um futuro marcado por escolhas religiosas inaugurais e um volume nunca dantes visto de guerras civis, genocídios, guerras imperialistas, epidemias, desastres ecológicos, etc. É "O APOCALIPSE"? Não, é o fim de um mundo que começou há 100 mil anos, talvez. É o fim de uma espécie humana. Depois a história vai continuar com um novo Retorno que ora se insinua, atônito, apolíneo e dionisíaco ao mesmo tempo, um novo porvir para uma nova e inaugural espécie humana, totalmente diferente da nossa, nem melhor e nem pior. Incomparável.
A professora, o traficante e o consumidor
Dizer que o tráfico de drogas atua na margem do tecido social, e que ali o Estado não chega, ali onde as professoras estariam bravamente, é um erro importante, definidor de limites sobre a capacidade de entendimento e de interferência na produção da Política (com pê maiúsculo, diferente da politicagem). É que o Estado, no Capitalismo Senil, chega em todos os lugares do Planeta Terra, do subsolo aos céus; segundo, esse Estado capturador de tudo o que respira, está destinado a produzir lucro, juros e violência, sendo que as professoras só o representam na medida em que são alienadas e reprodutoras de atitudes e currículos hostis a uma vida digna da população sob controle. Terceiro, que o tráfico de drogas ocupa todo o tecido social e a demanda que o move se situa, principalmente, nos setores localizados no topo da pirâmide da captura da renda, ou seja, o lugar onde o tráfico de drogas mais tem poder e eficiência é no interior dos espaços onde as elites circulam. As chamadas "periferias" são os locais de gestão da distribuição e abrigam o cenário onde a ilegalidade do uso de drogas produz disputas violentas e armadas. Mas, não se enganem, a maioria dos distribuidores de drogas ilícitas são homens cordatos, disciplinados, com famílias ordeiras e bem integrados socialmente. Os psicóticos violentos cumprem um papel dentro do sistema todo, da mesma maneira que os psicóticos violentos cumprem um papel no Estado. São lados da mesma linha vermelha de uma guerra que legaliza a maior droga de todas, a grande mídia. As novelas e os noticiários de grande distribuição, os chamados "filmes de ação" e os realites shows imobilizam o cérebro dos consumidores tanto quanto a cocaína, ou mais, já que são permitidos e estimulados. E os produtores e donos das redes de grandes mídias são o mágico de OZ: eles enxergam e gerenciam tudo. As professoras, portanto, são tão escravas quanto o aviãozinho pequeno que distribui maconha em um território restrito, e a maioria delas oferece drogas, porcarias destrutivas, em sala de aula.
Quando adotamos a ferramenta conceitual que abriga o nome de "Capitalismo Senil" estamos dizendo que todo o cenário humano está capturado pela mesma tragédia. Isto significa dizer que toda a humanidade deverá encontrar um novo destino, menos híbrido, mais ordenado, para que alguém humano possa sobreviver. Esse novo destino depende de um caminho, multifacetado, que não conterá o bem dentro de si e o mal do lado de fora. Quando teimamos em recorrer a padrões do século XVIII europeu, de dicotomia entre razão e metafísica, bárbaros e civilizados, não conseguimos realizar a magia da tragédia, da grande Tragédia (com T maiúsculo), que é exatamente a catarse produtora do abandono dos excessos. Vivemos em uma sociedade de excessos de todo o tipo e de faltas, abandonos correspondentes. Excesso de controle social, de concentração de renda, de violência, de produção de manufaturas, de humilhação, de loucura. Precisamos ver a desgraça se abatendo em nós mesmos e não mais descreve-la como sendo o destino dos iludidos e dos malvados e perversos. Precisamos temer a desgraça sobre nós mesmos, para então adquirirmos potência catártica e um novo conteúdo civilizatório. Não há lugares do bem e lugares do mal, precisamos arrancar a generosidade e a dignidade de dentro de nossas próprias tripas, em meio a todas as adversidades que nos contaminam e nos raros momentos em que não estamos drogados com alguma adição.
Quem tem medo de Eduardo Cunha?
O Brasil é um país escravista.
Essa imagem sobre o real está começando a aparecer, entreabertas as brumas de
ideologias iluministas que a escondiam desde os idos tempos de 1888/89, quando
mentiram que não haviam mais escravos e que havia uma República. Agora a
resistência deverá começar a entender que as bandeiras abolicionistas de 1864,
quando se discutia a abolição nas assembleias legislativas, eram justas lá,
naquele Brasil, talvez, mas agora não nos servem de nada. O abolicionismo
atual, atualizado, deverá se dedicar a fortalecer Quilombos. Os quilombos do
século XXI serão focos coesos e consistentes de uma contracultura, uma conduta
diferenciada que não mais se oriente pelos ideais iluministas e republicanos,
precários, ilusórios, mas que se dediquem a fomentar noções de valor para os
espaços públicos e privados, nas quais a dignidade de qualquer ser vivo - e seu
ambiente - seja levada em conta. Nesses focos, serão erguidas novas religiões
de múltiplos profetas, aceitando que vários deles reivindiquem uma parte das
heranças de figuras arquetípicas, como Jesus Cristo, Maomé ou Buda; orixás,
deusas indianas, ou mesmo ícones como Frida Kahlo (por que não?).
Precisamos de uma constelação de
profetas sem fama, sem santificação, xamãs que se entendam como tal, sem que
necessitem de reconhecimento célebre, midiatizado perante multidões. A
"coisa pública" está ruindo no mundo inteiro, inclusive no campo da
linguagem. Consequentemente, o "domus privado" também. As
"casas", ou "lares" ruirão não por uma invasão bélica
externa, mas por uma degeneração progressiva de identidades, metas, desejos. Só
os quilombolas entenderão o desarranjo geral e somente eles saberão consistir
"domus de resistência". O restante naufragará em quadros de Bosch, um
pintor do apocalipse que compôs, em 1014, imagens de desesperos que nos invadem
hoje em dia.
O país Brasil inteiro está aprisionado
em fortificações. Não se iluda pensando que os âncoras da rede globo de
televisão não estão contidos em um espaço exíguo de comportamentos obrigatórios
e angustiantes. Veja que eles estão cada vez mais perdendo a imagem válida de
modernos agentes de enunciação de verdades cruas e, a cada dia que passa,
reconstituindo suas próprias imagens à semelhança dos ridículos nobres com
perucas brancas e espartilhos, eunucos diante de revoltas sangrentas que os
encurralam e atemorizam. A diferença pregnante é que embora estejam sendo
constituídas prisões de diferentes tipos, a grande maioria delas começam a se
desenhar como espaços de escravização, de senzalas, de campos de concentração
de humanos e animais não humanos humilhados e descartados conforme a utilidade
ou inutilidade deles, aos olhos das gerências das instituições em crise. Por
isso a resistência se redesenha em quilombos, porque tudo estará fortificado,
tanto prisões, passando por locais de trabalho até os condomínios de elite
abrigados em muros altos, o que impõe a construção de redes de contracultura,
também fortificadas em seus territórios. O caos é da ordem da linguagem, dos
signos e das realidades que se expressam neles. Sem linguagem comum e pública,
o país Brasil tende à retomada de suas possessões hereditárias inaugurais,
redesenhadas em multiplicidades pós-modernas.
A escolha por caminhos punitivos
não começa agora, na redução da maioridade penal. As leis positivadas, desde
sempre, tão somente ordenam formas para processos inclusos na produção das
fontes materiais - a realidade anterior à linguagem - sustentáculo efetivo para
a validade das novas regulações jurídicas. A escolha punitiva não tem, a rigor,
um começo, na história do Brasil invadido em 1500 pela moderna colonização
europeia, mas poderíamos, a título de esquema, sublinhar um início na Lei da
Abolição, que conduziu os escravos a territórios das gentes passíveis de
aprisionamento em sistemas penais modernos. De 1888 até a aprovação da redução
da maioridade penal, em julho de 2015, no congresso nacional brasileiro,
vivemos uma espiral de repetições, em escalas espaço-temporais diferentes, de
frágeis recortes pseudodemocráticos – em geral de perfil populista - no interior de processos predominantemente
violentos de controle das revoltas da população comum.
A redução da maioridade penal não
é, a rigor, um tema a conduzir os novos quilombolas ao desânimo, já que a
própria divisão entre apenados e livres é, em larga medida, ilusória. O sistema
penal brasileiro impulsiona, faz tempo, um conjunto de estruturas que têm, no
centro, as prisões, configuradas como depósitos de excluídos dos direitos que
as democracias clássicas sempre tentaram preservar até aos prisioneiros de
guerra. Em conexão estreita e eficaz com o sistema prisional, temos as famílias
e redes de parentesco dos encarcerados, contingente populacional que comanda,
lidera mesmo, estratégias de conduta moral nas periferias dos espaços públicos
e privados protegidos pelas elites de todo o gênero, espaços de Casa Grande,
onde vivem os incluídos em direitos de cidadania, nas grandes e pequenas
cidades. Essas periferias estão vendo e vivendo, faz tempo, a violência desmedida (esse é o termo para a
violência abusiva contra o escravo) contra as crianças, as mulheres, os velhos,
os homossexuais, os indígenas e os negros pobres em geral. Digno de nota é a
distância, cada vez maior, entre direitos conquistados pelos homossexuais,
mulheres e negros protegidos nos espaços de Casa Grande e a ausência
progressiva de direitos conferidos aos mesmos setores, em se tratando de
pessoas habitantes das periferias excluídas das ilhas de modernidade.
Essa liderança das periferias,
não sem razão, coloca-se mais a pergunta de como esses menores que irão para os
presídios, agora inseridos nos sistemas punitivos direcionados aos maiores,
serão tratados, mais do que a repulsa a nova forma de tipificação de seus
crimes. Afinal, entre o abandono, a violação sistemática, os assassinatos e as
torturas impingidas a essas crianças e adolescentes, e as futuras estratégias
de aprisionamento resta uma distância dramaticamente ambígua.
Recentemente, alguns de nós
puderam acompanhar debates nas redes sociais onde jovens negros comentavam
sobre o mito do estupro praticado nos presídios. Os comentários duraram pouco tempo
nas redes e foram apagados. Li uma postagem, no mural “feminismo sem
demagogia”, no qual um moço dizia que os apenados e detidos por tráfico de
drogas estavam protegidos desse tipo de violência pois o comando do tráfico
havia normatizado a proibição de estupro nesses casos. Esse é um indicador
importante. Ele aponta para um novo fluxo de produção de fontes materiais do
direito, qual seja, os direitos a serem conquistados por um contingente enorme
de brasileiros aprisionados ou ligados em redes de sobrevivência e risco aos
habitantes dos presídios, menores ou maiores, tanto faz. Há, entre os ditados populares, uma frase que
corresponde a isso: “se ninguém manda, mando eu”, isto é, se o Estado de
Direito é vetado aos habitantes dos presídios, cedo ou tarde essa população
consolidará, mais e melhor, seu próprio direito, ou, ao menos, ensaios de
direitos dos apenados. Uma vez ampliada a complexidade carcerária, em número de
presos e em sistemas prisionais, os próprios presos se organizarão, como já
fazem hoje parcialmente, para ampliar espaços de dignidade. Os quilombos começam
a se desenhar nas prisões.
Então vamos responder à pergunta
que dá título ao texto: quem tem medo de Eduardo Cunha?
Há quem, de tanto medo da
composição atual do congresso nacional brasileiro, deseje e até mesmo
reivindique a intervenção, até certo ponto ditatorial, do judiciário. Esses se
sentem mais tranquilos ao imaginar um Supremo Tribunal Federal desfazendo a
autoridade dos congressistas e, com isso, instaurando um perigoso Estado de
Exceção, já que o Executivo anda definhando diante de impedimentos de toda
ordem. Certamente esses não fazem parte da enorme população de excluídos de
processos decisórios em qualquer nível político, já que há muito as esperanças
de participação democrática estão aniquiladas no campo da opinião dos comuns.
Para a imensa maioria da
população brasileira – civil e militar (isso mesmo que você leu, e isso já é
outro texto) – trata-se, tão simplesmente, de pensar sobre que direitos,
afinal, as crianças devem ter, dentro de qualquer instituição que as mantenha
em situação disciplinar.
Faz parte da mais consolidada
memória humana a preservação da infância. Mesmo em um país escravista, como o
Brasil, os escravos sempre lutaram para ter e criar filhos. Nossas escolas
estão viradas em depósitos de menores e em seus “lares” as crianças padecem de
inúmeros riscos de todo o tipo. Cabe aos
novos quilombolas do século XXI tecerem cantos, danças, revoltas e cenários de
resistências dentro ou fora das prisões, em defesa dos menores de idade e dos
menores de direitos, como as mulheres despossuídas, os negros pobres, os
homossexuais abandonados à sorte vil, os indígenas expulsos de seu habitat.
Quem tem medo do congresso
nacional brasileiro? Não os quilombolas. Esses têm a potência cravada na
memória e Zumbi e Dandara a iluminar seus caminhos.
O feminismo é um indecidível
O trabalho produtivo e industrial
se conecta, na forma de um indecidível (Derrida), uma razão dialética sem síntese, ao
trabalho doméstico disciplinado, ao modo como o vivemos hoje em dia. Os dois
são formas de traição e perversão da dignidade e saúde do corpo humano e dos
corpos dos outros animais e dos vegetais e minerais, e da água é claro. O
trabalho doméstico é feito com amor diminuído e subalterno à importância única
e exclusiva do trabalho produtivo e de valor comercial: as mulheres tentam
manter a sua e a dignidade dos seus familiares, mas fazem isso com boa dose de
inveja, maldade, rancor e desligamento de ideias criativas sobre preservação e
qualidade daquilo que fazem, ainda que façam tudo, há milênios, com todo o
cuidado que lhes sobra, no seu pensamento reduzido à ausência de valores
enunciáveis, mulheres emudecidas. À violência e brutalidade da indústria
corresponde a repetição inglória do cuidado da vida no lar. O lar acaba sendo
um lugar de menos-valia, reduzido à recuperação da força de trabalho industrial
ou ao poder do comando industrial.
É nesse lugar doméstico estranho,
privado e íntimo, mas também inglório (que não aparece de fato nas televisões,
nem -realmente- nas redes sociais), lugar das brigas mesquinhas, repetitivas e
inconclusas, nesse lugar das solidões sinceras, que vemos o sexo perder o
sentido, a memória e envelhecer.
Não há como localizar o feminismo
em algum, ou alguns grupos de pessoas livres desse enredo escravizador do
duplo: trabalho industrial versus trabalho doméstico. Na sociedade capitalista,
o feminismo só pode ser uma rebeldia exatamente nesses lugares onde os dois
trabalhos, o doméstico e o industrial, são humilhados.
Não há feminismo em estado puro
na sociedade capitalista. Todo feminismo é sempre um instante dentro de uma
construção mais estável e patriarcal. O Patriarcado não é um poder referente aos homens como indivíduos, ele é um conjunto de formas e leis que produziram a divisão entre o trabalho industrial e o trabalho doméstico. Não há desconstrução do Patriarcado que deixe de desconstruir a totalidade do sistema que produz Capital em detrimento de uma vida boa e digna para todos os seres vivos e o seus ambientes.
Assim, o feminismo não é atributo de um
ou mais grupos de seres individuais. Ele é sempre um fluxo que invade, alimenta
e se esvai em direções inéditas, indecidíveis. Não há um discurso feminista
pleno e estável. O Feminismo é um acontecimento mutante, inapreensível por
qualquer discurso padrão. Feminismo é rebeldia e é anterior a qualquer linguagem.
Seria possível um movimento feminista que construísse a potência de uma revolução anticapitalista? Sim, na medida exata em que ele fosse capaz de propor-se a invadir todos os espaços do mundo dos trabalhos, doméstico e industrial. No momento em que ele fosse capaz disso já não seria mais um movimento feminista, seria algo sem nome. Não há nomes para uma nova civilização não capitalista. O nome sucede o acontecimento.
Histórias possíveis em processos judiciais da Justiça do Trabalho
Bricolagem, histórias
possíveis e preservação de fontes primárias em processos judiciais trabalhistas
– parte um
Dinah Lemos
O texto que segue foi escrito a partir
de uma bricolagem de recortes de um capítulo do livro de Carlo Ginzburg, os fios e os rastros, comentários meus e
recortes de outros livros, como Memória e
Arquivo, de Elisabeth Roudinesco. Sua primeira versão foi escrita para
subsidiar as reflexões, debates e investigações dos alunos da Oficina de
Avaliação Documental realizada no Tribunal Regional do Trabalho de Santa
Catarina, no Arquivo Geral, em outubro de 2014. Trago aqui algumas ideias já
bem amadurecidas em uma busca que se iniciou em 1987, quando fiz meu primeiro e
discreto esforço para salvar processos judiciais trabalhistas da destruição
total. No momento, estará sendo publicado em partes, em uma página de um grupo
de servidores ligados ao Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no
Rio Grande do Sul.
Parte um
“Em seu livro 'O Pensamento
Selvagem' (1962, tradução para o português em 1976), o antropólogo francês
Claude Lévi-Strauss usou o termo bricolagem para descrever uma ação espontânea,
além de estender o termo para incluir padrões característicos do pensamento
mitológico, o qual não obedece ao rigor do pensamento científico. A razão é
que, já que o pensamento mitológico é gerado pela imaginação humana, é baseado
na experiência pessoal, sendo gerado pelo surgimento de coisas pre-existentes
na mente do imaginador. Desse modo, a mitologia descreve o mundo através de
narrativas. Num mundo onde há poucas ferramentas linguísticas, se faz
necessária a utilização de metáforas e narrativas. Na falta de uma palavra para
o "ato sexual", por exemplo, os gregos antigos precisaram lançar mão
de toda uma história fantástica para enfim poder dizer ‘coisas de Afrodite’.
(Wikipédia) “.
“Quando Lévi-Strauss usa a imagem da
bricolagem para distinguir o pensamento mítico do pensamento científico, mostra
que o primeiro se apoia no signo e o segundo se vale dos conceitos, afirmando
que o signo ‘pretende ser integralmente transparente à realidade, enquanto que
o primeiro [a linguagem científica] aceita, e exige mesmo, que uma certa
densidade de humanidade seja incorporada a essa realidade’ (1976). Observa
ainda que as criações da bricolagem se reduzem sempre a um arranjo novo de
elementos, já que novos universos nascem de seus fragmentos. Massimo Canevacci
(1996), ao criticar a estreiteza do conceito de bricolagem de Lévi-Strauss,
justamente nos permite alargá-lo, superando o pensamento estruturalista de
lógicas opostas. Assim, pode-se até mesmo ressaltar que, na verdade, não se
pode abrir mão do elemento lúdico que marca esse tipo de composição. Nesse
sentido, vale ainda lembrar De Certeau, que, conforme observa Silviano Santiago
(2000), ao falar de bricolagem, ‘desloca o eixo da produção de mercadorias’,
para o da sua recepção, o consumo, evidenciando sobretudo ‘maneiras de lidar
com’. Podemos, pois, nos perguntar se a casa/sociedade organizada pelo
excluído, com sucata do consumo, se voltaria para um tipo de universo mítico,
tradutor das relações sociais e políticas que lhe motivaram. Nesse sentido,
confirma-se nossa ideia de tomá-las como alegorias cotidianas. Diz
Lévi-Strauss: (...) a poesia da bricolage
lhe vem, também, e sobretudo, de que não se limita a cumprir ou executar;
‘fala’, não somente com as coisas, (...), como também, por meio das coisas:
contando, pelas escolhas que faz entre possibilidades limitadas, o caráter e a
vida de seu autor. Sem jamais completar seu projeto, o bricoleur põe-lhe sempre
algo de si mesmo (1976: 42)”. [De lixo e bricolagem, texto de Ivete Walty,
professora da PUC de Minas]
No método da
bricolagem, a própria seleção de documentos para a preservação como fonte
primária parte não de tipos antecipadamente definidos nos quais os documentos
são abrigados, tais como setores da indústria e do comércio, gêneros, estados
civis, nacionalidades, naturalidades, escolhas políticas ou religiosas, etnias,
faixas etárias, posição de classe, mas inicia com a colagem em catálogos de
palavras chaves selecionadas no próprio documento original. Isso quer dizer que
não serão buscados enquadramentos das unidades documentais em padrões
exteriores a elas, mas, ao contrário, elas abrigarão colagens de nomes
próprios, autodefinições, estado civil declarado e enredos subjetivos de uma
narrativa particular. Um exemplo: se partimos de um código genérico de “estado
civil” podemos cair facilmente na cilada que esquece as caracterizações de
“convivente”, “amasiado” e “desquitado”, presentes em processos judiciais das
décadas anteriores à lei do divórcio, em centros urbanos e presentes até data
muito recente em regiões mais próximas a tradições rurais. Se buscamos as
classificações por origem étnica ou conflito de natureza étnica poderemos
perder documentos nos quais há a presença importante de racismo ou preconceito
sem que os envolvidos declarem abertamente suas condições de origem genética e
cultural. A própria pessoa que faz a seleção, se for encaixar um documento em
algum tipo de padrão poderá estar fazendo um julgamento redutor dos
significados do texto examinado, abandonando informações que serão para sempre
perdidas.
Buscar a
particularidade de um documento em uma série (os processos judiciais são uma
série com n séries dentro de si) é esquecer de todas as séries a que ele
poderia pertencer e fazer com que outras séries apareçam de dentro do
documento, a partir do contexto imediato do conjunto textual em questão. As
séries estão dentro do documento único e não o contrário, o documento ser
encaixado em algum subgrupo de um conjunto.
E as séries vão aparecer, no documento único, em forma de bricolagem,
pois a vida real no mundo globalizado costuma ter esse formato.
Assim,
quando os documentos forem buscados e encontrados pelo pesquisador, pelo
cientista, serão fonte primária para narrativas específicas e diferenciadas,
histórias únicas contadas em cada monografia sobre um município, ou sobre
pessoas de um local, diferentes não só no objeto analisado mas também no foco e
no estilo de quem conta. E de munícipio para município, estado da federação
para outro estado, será sempre um conjunto de histórias diferentes. Não
obstante, todas acabarão pertencendo a uma mesma Era na história do país e do mundo e serão abraçadas por
semelhanças exatas e descritíveis. Assim, a “contação” de histórias a partir de
olhares sobre singularidades, quanto mais disseminada, mais proteção de
direitos de personalidade poderá incentivar. O que não impede que os catálogos
possam ser examinados visando o enquadramento em séries de processos segundo
tipos, conforme uma caraterística desejada esteja presente em um processo. O
método de catalogação de baixo para cima, em bricolagens, permite a ampliação
de possibilidades em termo de escolhas historiográficas.
Selecionar
como objeto de investigação aquilo que é mais dramático, cômico, trágico,
aterrorizante; o fato que revela um grande tema mundial de época manifesto em
um caso singular em um município (ex: o cargo de degolador islâmico em um
processo de Santa Catarina); aquilo que parece sonho ou arquétipo (crimes,
lendas e tipos humanos investigados pela psicologia, psiquiatria e antropologia);
aquilo que se impõe como fantástico ou mágico, às vezes a partir de uma frase
perdida no meio de um documento: (ex: “ele matou o cachorro que eu gostava na
minha frente e fez eu enterrar; e ele me disse que catarina tem que ser escravo
de gaúcho”).
O método da bricolagem permite o estudo das
emergências, dos acontecimentos em forma embrionária, no momento em que eles
ainda não conquistaram visibilidade na História. E essas emergências são as
origens das Fontes Materiais do Direito.
Vigiar e Punir no Brasil em 2015 - por Carmen Sylvia Ribeiro
Foto: Arli Pacheco. Uma barata esmagada nas ruas do Rio de Janeiro, 2014. |
Mídia, presídios e religiões
Alguns cultos religiosos a mídia persegue ou ignora, mas tem um gosto
pelas religiões de cultos orientados por carismáticos que rendem programas com
audiência garantida. E principalmente apreciam muito a parte dos donativos
gordos que garantem a compra de horários nas emissoras, algumas já de
propriedade das instituições religiosas. Acham bacana ficar ajudando
"alma" que não é preciso muito esforço para a salvação. Não importa
as vigarices e nem a manipulação, desde que seja um espaço bem pago. Mas quando
o assunto cola no debate sobre as "almas" mais perdidas, já a
reportagem muda de tom.
Sobrou no último domingo o preconceito e ficou descarada a
encomendada, em tempos de discussão das condições carcerárias no Brasil e da
discussão da maioridade penal. Afinal a violência rende uma boa audiência e
provocar emoções e sentimentos mais primitivos, é a especialidade da rede Bobo.
Usando a ingenuidade de religiosos tiveram acesso aos espaços de terapia e
ajuda, mas na tentativa de desmoralizar a dedicação de uma comunidade empenhada
na recuperação de apenados. A intervenção alternativa dos religiosos que tem
destaque pela capacidade de transformar as vidas de pessoas - que permanecem
cumprindo suas penas e privados de liberdade - foi manipulada como
"privilégios" indevidos e confrontadas pelas manifestações de
familiares de vítimas marcadas pelo sofrimento de perdas. Uma exploração
desumana e sensacionalista.
Não preocupa essa mídia os
percentuais de população carcerária no Brasil ou a mortalidade de jovens negros
e pobres, ou a violência recorrente das ruas e da vida moderna. Desqualificam
um ambiente quem sabe capaz de mudar histórias de violência e reincidências, em
nome de que interesse? Para a mídia a privação de liberdade para cumprimento de
penas não visa a recuperação ou a ressocialização de apenados, mas a tortura e
a vingança. Tão reflexo! Mas pode a privatização dos presídios, é claro, será
esse o motivo? Sempre existe um motivo, nenhuma matéria é produzida por esses
senhores no acaso. É isso, estão em campanha, aplaudindo até o próximo crime do
eterno solta- prende do sistema carcerário brasileiro. Rende patrocínio, rende
audiência e espetáculo. São negócios.
Derrida, os náufragos e os digitadores domésticos
Minhas deusas queridas,
“Sem Deus, não haverá testemunho absoluto. (...) A atestação, isto é, também o testamento. Na irreprimível invocação de testemunho, Deus permaneceria, então, um nome da testemunha, seria chamado como testemunha, assim nomeado, ainda que, por vezes, o nomeado com esse nome permaneça impronunciável, indeterminável, em suma, inominável em seu próprio nome; e mesmo que ele deva permanecer ausente, inexistente e, sobretudo, em todos os sentidos desta palavra, improduzível. Deus: a testemunha enquanto “nomeável-inominável”, testemunha presente-ausente de qualquer juramento ou de qualquer garantia possível. No pressuposto de que, concesso nom dato, a religião tenha qualquer relação com o que assim nomeamos Deus, ela pertenceria não só à história geral da nomeação, mas, de forma mais estrita aqui, sob seu nome de religio, a uma história do sacramentum e do testimonium. Seria essa história, confundir-se-ia com ela. Durante o trajeto de barco que nos conduziu de Nápoles para Capri, eu comentava comigo mesmo que começaria por lembrar essa espécie de evidência luminosa demais, mas não ousei fazê-lo. Comentava também em meu foro íntimo que ficaríamos obcecados pelo fenômeno dito ‘da religião’ ou do ‘retorno do religioso’ hoje, se continuássemos a opor tão ingenuamente a Razão e a Religião, a Crítica ou a Ciência e a Religião, a Modernidade Tecnocientífica e a Religião. No pressuposto de que se tratasse de compreender, compreender-se-á algo ‘do-que-se-passa-atualmente-no-mundo-com-a-religião’ (e por que ‘no mundo’? O que é o ‘mundo’? O que é esse pressuposto?, etc.) se continuarmos a crer nessa oposição, inclusive nessa incompatibilidade, ou seja, se permanecermos em uma certa tradição das Luzes, somente uma das múltiplas Luzes dos últimos três séculos (não de uma Aufklärung cuja força crítica está profundamente enraizada na Reforma), antes, pelo contrário, essa luz das Luzes, que atravessa como um raio, um só, uma certa vigilância crítica e anti-religiosa, antijudaico-cristã-islâmica, uma certa filiação ‘Voltaire-Feuerbach-Marx-Nietzsche-Freud- (e até mesmo) Heidegger’? Para além dessa oposição e de sua herança determinada (aliás, tão bem representada do outro lado, do lado da autoridade religiosa), talvez pudéssemos tentar ‘compreender’ em que aspecto, longe de se opor, o desenvolvimento imperturbável e interminável da razão crítica e tecnocientífica transporta, suporta e pressupõe a religião. Seria necessário demonstrar, e isso não será simples, que a religião e a razão têm a mesma fonte.” Pg.43 (Derrida, Fé e Saber, em A Religião: o seminário de Capri/ org. Gianni Vattimo e Jacques Derrida; Estação Liberdade, 2000, SP.)
Estou faz dois dias querendo escrever, baseada no raciocínio de Derrida, de como o trabalho produtivo e industrial se conecta, na forma de um indecidível, uma razão dialética sem síntese, ao trabalho doméstico disciplinado, ao modo como o vivemos hoje em dia. Os dois são formas de traição e perversão da dignidade e saúde do corpo humano e dos corpos dos outros animais e dos vegetais e minerais, e da água é claro. O trabalho doméstico é feito com amor diminuído e subalterno à importância única e exclusiva do trabalho produtivo e de valor comercial: as mulheres tentam manter a sua e a dignidade dos seus familiares, mas fazem isso com boa dose de inveja, maldade, rancor e desligamento de idéias criativas sobre preservação e qualidade daquilo que fazem, ainda que façam tudo, há milênios, com todo o cuidado que lhes sobra, no seu pensamento reduzido à ausência de valores enunciáveis, mulheres emudecidas. À violência e brutalidade da indústria corresponde a repetição inglória do cuidado da vida no lar. O lar acaba sendo um lugar de menos-valia, reduzido à recuperação da força de trabalho industrial ou ao poder do comando industrial.
É nesse lugar doméstico estranho, privado e íntimo mas também inglório (que não aparece nas televisões, nem -realmente- nas redes sociais, lugar das brigas mesquinhas, repetitivas e inconclusas), nesse lugar das solidões sinceras, que vemos o sexo perder o sentido, a memória e envelhecer.
Transcrevi o trecho do Derrida sobre religião para pensar sobre o caráter religioso da tecnociência, da vida do consumo e da indústria, para mover-me em direção a uma reza, uma oração que pudesse ser realmente válida para mim. Se há algo fora do campo de conhecimento racional, fora do espaço visível pelos humanos, deveria chama-lo de "Senhor", de "Senhora", ou de "vocês"? A quem me dirigir se quero rezar? Que forma tem o meu "absoluto testamentário"?
Minha reza é meu pensamento silencioso e esse banal momento do teclar e teclar e publicar nas redes sociais. Estamos todos digitando e publicando rezas nas redes sociais. Queremos falar com quaisquer deuses ou deusas, ou territórios sagrados, com quem quer que possa interferir nisso tudo que nos acontece agora: terremotos, inundações, assassinatos de negros e mulheres em grande escala, o estúpido poder sem nomes, sem responsáveis finais, que indica um futuro de escravidão e guerras civis. É uma reza que todos fazemos agora, pelo mundo inteiro, pedindo o estar em paz, imanente e esperançoso ao mesmo tempo; pedimos para sermos transportados para onde está a real e comprovada paz de espírito, saúde mental e física e conforto compassivo cotidiano; nossas rezas são a esperança de que este espaço de vida boa continue e aumente, um dia, na vida de todos nós. Nossos deuses e deusas são a esperança apoiada no que já conseguimos manter de segurança amável e pacífica, subversiva ao logos e à mímesis construída em todos os milênios de poder masculino-patriarcal e feminino-matriarcal dos humanos da atual espécie, sucessora de todas as outras até então.
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Está pronta a comida e o esposo não tarda a chegar. Lembrei-me, enquanto cozinhava, de um concurso de jovens, realizado pela Ana Maria Braga, para escolher o melhor chef de cosine, o gourmet da hora, dentre estudantes de culinária selecionados pela produção do programa. No decorrer do concurso vários deles se cortaram porque tudo tinha de ser realizado em tempo recorde, tudo muito rápido e, muitas vezes eles não conseguiam o ponto certo dos cozimentos porque faziam tudo correndo, atrapalhados. E agora, na propaganda eleitoral do rádio, a Angela Amin, candidata dos Democratas, o que corresponderia à velha Arena do tempo da ditadura militar, respondeu à pergunta: ‘você não está muito cansada de tanta correria de campanha?” dizendo: ‘não conheço esta palavra ‘cansaço’, ela não existe em meu vocabulário'. Depois os mesmos candidatos dizendo, junto com todos os outros, que defendem a família, a mulher, a criança, a escola, os velhos e etc. E tantos, a essas alturas, repetindo o refrão banalizado de um tal "desenvolvimento sustentável", enquanto milhares de africanos são transportados para a morte no Mar Mediterrâneo.
Sustentável seria poder polir uma chaleira em paz, gastando tantas horas quanto essa tarefa exige; sustentável só pode ser a atividade doméstica demorada, gastando todas as horas necessárias para costurar o descosturado, repregar o partido, polir o manchado, passar o que está úmido, dobrar mil vezes todos os panos de todos os dias. Não há desenvolvimento sustentável sem atividade doméstica ocupando a maior parte do tempo dos seres humanos, incluindo aí o tempo livre, o ócio, a vida lúdica, o sexo bom para todos. Digitemos, irmãos, amém.
Charlies Hebdo e a morte do Direito Moderno - versão dois
Celeridades e efetividades
As execuções dos membros do jornal Charlies Hebdo, no início de 2015, provocaram todo o tipo de protestos, no mundo inteiro, embora tenham, na verdade, erguido um ensurdecedor silêncio diante da magnitude do acontecimento. Estamos diante da agonia do Direito Internacional Moderno, construído por revoluções burguesas, no século XVIII, por revoluções socialistas, no século XX, por duas guerras chamadas de "grandes" e "mundiais", também no século XX e por diverso conflitos supostamente localizados durante os períodos referidos. Era um direito que ocultava sob um véu de legitimidade e racionalidade todas as torturas, genocídios, misérias, massacres e humilhações cotidianas dos mais fracos. Agora surge uma regularidade de um novo direito, inaugurado no 11 de setembro "americano", um direito baseado na lei de talião e na potência do mais bélico, do mais forte, que tende a se ancorar na guerra total contra o "estrangeiro", apoiada em uma imersão radical (no sentido exato de "ir às raízes") no território Sagrado, um lugar não atingido pelo conhecimento empírico e racional humano, tradicionalmente chamado de "ciência". O pensamento racional moderno está em cheque.
O que nos deixa mergulhados no silêncio é exatamente essa característica icônica do evento no Charlies Hebdo: "o rei está nú", disse o tal "Estado Islâmico", a que até mesmo seus pares de outras organizações islâmicas se opuseram, elas ainda dispostas a acordos no campo do Direito Internacional Moderno. Com o anúncio da derrocada deste direito, anuncia-se, de forma associada e viral, a derrocada dos direitos nacionais, em cada Estado Nacional, no primeiro ou nos demais mundos do Norte e do Sul do Planeta Terra. E isso tem um vínculo inequívoco com as prisões de 65 ativistas na passeata contra o aumento da passagem de ônibus, em São Paulo, Brasil, em meio a divergências de informação sobre a presença de 5 mil ou 15 mil manifestantes. E, lamento dizer, tem um vínculo também com os assassinatos em escolas americanas, cometidos por psicóticos em surto e contra crianças e professores indefesos. Um vínculo com a expansão geral da violência doméstica e privada ou pública. O novo direito "natural" que se ergue é de tal modo eficiente, em meio à derrocada do mundo moderno, que ele retoma a simples e banal fórmula das guerras entre cidades da antiguidade ocidental: morte e escravização dos estrangeiros indefesos ou mais fracos, glória aos exércitos invasores. Bom dia, barbárie do século XXI.
Foto: Arli Pacheco |
Celeridades e efetividades
As execuções dos membros do jornal Charlies Hebdo, no início de 2015, provocaram todo o tipo de protestos, no mundo inteiro, embora tenham, na verdade, erguido um ensurdecedor silêncio diante da magnitude do acontecimento. Estamos diante da agonia do Direito Internacional Moderno, construído por revoluções burguesas, no século XVIII, por revoluções socialistas, no século XX, por duas guerras chamadas de "grandes" e "mundiais", também no século XX e por diverso conflitos supostamente localizados durante os períodos referidos. Era um direito que ocultava sob um véu de legitimidade e racionalidade todas as torturas, genocídios, misérias, massacres e humilhações cotidianas dos mais fracos. Agora surge uma regularidade de um novo direito, inaugurado no 11 de setembro "americano", um direito baseado na lei de talião e na potência do mais bélico, do mais forte, que tende a se ancorar na guerra total contra o "estrangeiro", apoiada em uma imersão radical (no sentido exato de "ir às raízes") no território Sagrado, um lugar não atingido pelo conhecimento empírico e racional humano, tradicionalmente chamado de "ciência". O pensamento racional moderno está em cheque.
O que nos deixa mergulhados no silêncio é exatamente essa característica icônica do evento no Charlies Hebdo: "o rei está nú", disse o tal "Estado Islâmico", a que até mesmo seus pares de outras organizações islâmicas se opuseram, elas ainda dispostas a acordos no campo do Direito Internacional Moderno. Com o anúncio da derrocada deste direito, anuncia-se, de forma associada e viral, a derrocada dos direitos nacionais, em cada Estado Nacional, no primeiro ou nos demais mundos do Norte e do Sul do Planeta Terra. E isso tem um vínculo inequívoco com as prisões de 65 ativistas na passeata contra o aumento da passagem de ônibus, em São Paulo, Brasil, em meio a divergências de informação sobre a presença de 5 mil ou 15 mil manifestantes. E, lamento dizer, tem um vínculo também com os assassinatos em escolas americanas, cometidos por psicóticos em surto e contra crianças e professores indefesos. Um vínculo com a expansão geral da violência doméstica e privada ou pública. O novo direito "natural" que se ergue é de tal modo eficiente, em meio à derrocada do mundo moderno, que ele retoma a simples e banal fórmula das guerras entre cidades da antiguidade ocidental: morte e escravização dos estrangeiros indefesos ou mais fracos, glória aos exércitos invasores. Bom dia, barbárie do século XXI.
Esse novo direito ainda não está se consolidando, como direito positivado, enunciado em leis e acordos internacionais, mas já vislumbramos suas possíveis escrituras em processos nacionais de reformulação dos judiciários e das doutrinas jurídicas, e nos fracassos de acordos "para inglês ver", como as convenções jamais respeitadas da OIT, acerca da dignidade e autonomia dos movimentos sindicais. Exemplos desse processo, no Brasil: a proposta de redução da maioridade penal e a perda de importância do tradicional "Princípio da Tutela", na Justiça do Trabalho, em favor de dois princípios inaugurados pela pós-modernidade da Era das terceirizações e das bandeiras liberais iluminadas pela nova tecnologia da informática, desde 1990: os assustadores "Princípio da Celeridade" e "Princípio da Efetividade". Há, sim, uma enorme resposta da Resistência geral, que une de um modo ainda imaturo formações humanistas e republicanas da tradição socialista do século XX e formações libertárias de diversos matizes. Mas as reformulações doutrinárias e de estruturas dos judiciários avançam, sem qualquer piedade para com as mazelas da população comum. Crescem os poderes de tribunais superiores, que passam a exercer uma espécie de sustentação das governabilidades fragilizadas, em países de tradição colonial, como o Brasil. Diminuem os poderes do judiciário de primeiras instâncias, aqueles lugares onde o direito poderia ser criado, mas que agora tende a ser imposto.
Há sempre a "turma do deixa disso", argumentando que tudo melhora a cada dia. Mas esse argumento é espalhado pelas grandes mídias, as mídias caras, para ser carregado ao vento diante de uma população cada vez mais adrenalizada. A pergunta, adequadamente paranoica, que segue é: qual a distância, no tempo, entre o direito que temos agora, ainda republicano, ainda iluminista, embora sem eficácia, e um direito cabível em padrões de uniformes diferentes, para gentes diferentes, com direitos diferentes, ao modo das distinções entre triângulos rosa, para gays, e estrelas amarelas, para judeus, na Alemanha Nazista? Se a doutrina migra, aceleradamente, para a redução dos espaços de eficácia dos direitos trabalhistas e de proteção do bem comum, como as cláusulas pétreas constitucionais, e para a ampliação dos espaços de atuação e eficácia do direito penal; se as penas aumentam e se multiplicam em setores específicos e inaugurais, e os presídios se expandem e sofisticam, atingindo espaços abertos de comunidades, como os processos de ocupação policial permanente nas periferias das grandes cidades, então a distância entre nós, iluministas e ocidentais, e o Estado Islâmico, ainda que grande se reduz a olhos nus.
A palavra está perdida
Como diz André Souza Lemos: "O Ocidente não quer renunciar ao seu império? Não é isso, é pior: quer muito, mas não sabe como, nem como começar. Quer dizer, não sabe como recuar sem perder toda a sua força, toda a sua preciosa vantagem comparativa no plano econômico. Sem perder a palavra. Os caras falam em multipolaridade, em sociedade heterogênea, mas é uma caixa de Pandora que ninguém quer abrir.
Má notícia: a palavra está perdida. A conta nunca fechou, mas isso nunca foi um problema enquanto se pôde varrer a Arábia Saudita pra baixo do tapete. Enquanto se pôde varrer mais de meio mundo pra baixo do tapete.
Antes, bastavam o dinheiro dos bancos e os porta-aviões, mas nesse momento de crise, a narrativa que daria sentido à perda faz muita falta. Nesse caso, vale para a geopolítica o que vale pra vida da gente: na hora da diminuição é que a gente sente falta do humano em nós.Na adolescência, somos cheios de ousadia e bravata, mas quando o tempo passa e a força diminui, é preciso ter o que dizer para os mais novos. Mas o que podem dizer aos mais novos nações em que as pessoas não têm mais filhos? A ascensão da direita no ocidente é um estertor final, não uma esperança de retorno. Espero que não tentem mostrar do que ainda são capazes.
Vestindo o uniforme de policial, e de soldado, seja na França, na Inglaterra ou nos Estados Unidos, o que temos são homens chamados Ahmed, Gonzáles, Patel, Okwono... E mulheres... Defendendo uma ordem em nome de pessoas e lugares que aprenderam a amar, não mais das bandeiras. Dos valores, sim, mas eles (felizmente) não têm pátria, ou cor.
Ironicamente, os jovens que estão dispostos a dar a vida por alguma coisa abstrata - por alguma coisa estúpida - foram postos do lado de fora, simplesmente porque o moinho da ideologia parou de girar. E são centenas de milhares de anônimos, errando pelo mundo, com uma arma na mão, e com um computador na mochila.
O ocidente ainda é uma máquina de geração de valor econômico, mas já é um mágico de Oz desmascarado. O Capitão América tirou a máscara, e era Dorian Grey. Os impérios coloniais europeus ruíram, mas os Estados Unidos ocuparam, mal ou bem, o seu lugar, ao menos pra manter as aparências. Ingleses e franceses fizeram muxoxos, mas se adaptaram. Os ingleses fizeram o melhor do rock'n roll, os franceses fizeram o melhor da filosofia. Quando caiu o muro de Berlim, parecia que a coisa ia engrenar. Nunca estivemos tão enganados.
E o Brasil? Bom, os próximos jogos olímpicos são no Rio de Janeiro. A intelligentsia nacional está em frangalhos, mas o país está na berlinda. Eu diria, pra resumir, que as coisas pra nós se decidem pela maneira como tratarmos os nossos jovens. É preciso que nós, os mais velhos, coloquemos as nossas bandeiras no armário, e ouçamos a voz da moçada, enquanto ainda temos uma moçada. Enquanto ainda temos água, e floresta. No fim das contas, esses são os únicos capitais que realmente interessam hoje: água, floresta e moçada."
(versão dois: julho de 2015)
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