O Brasil é um país escravista.
Essa imagem sobre o real está começando a aparecer, entreabertas as brumas de
ideologias iluministas que a escondiam desde os idos tempos de 1888/89, quando
mentiram que não haviam mais escravos e que havia uma República. Agora a
resistência deverá começar a entender que as bandeiras abolicionistas de 1864,
quando se discutia a abolição nas assembleias legislativas, eram justas lá,
naquele Brasil, talvez, mas agora não nos servem de nada. O abolicionismo
atual, atualizado, deverá se dedicar a fortalecer Quilombos. Os quilombos do
século XXI serão focos coesos e consistentes de uma contracultura, uma conduta
diferenciada que não mais se oriente pelos ideais iluministas e republicanos,
precários, ilusórios, mas que se dediquem a fomentar noções de valor para os
espaços públicos e privados, nas quais a dignidade de qualquer ser vivo - e seu
ambiente - seja levada em conta. Nesses focos, serão erguidas novas religiões
de múltiplos profetas, aceitando que vários deles reivindiquem uma parte das
heranças de figuras arquetípicas, como Jesus Cristo, Maomé ou Buda; orixás,
deusas indianas, ou mesmo ícones como Frida Kahlo (por que não?).
Precisamos de uma constelação de
profetas sem fama, sem santificação, xamãs que se entendam como tal, sem que
necessitem de reconhecimento célebre, midiatizado perante multidões. A
"coisa pública" está ruindo no mundo inteiro, inclusive no campo da
linguagem. Consequentemente, o "domus privado" também. As
"casas", ou "lares" ruirão não por uma invasão bélica
externa, mas por uma degeneração progressiva de identidades, metas, desejos. Só
os quilombolas entenderão o desarranjo geral e somente eles saberão consistir
"domus de resistência". O restante naufragará em quadros de Bosch, um
pintor do apocalipse que compôs, em 1014, imagens de desesperos que nos invadem
hoje em dia.
O país Brasil inteiro está aprisionado
em fortificações. Não se iluda pensando que os âncoras da rede globo de
televisão não estão contidos em um espaço exíguo de comportamentos obrigatórios
e angustiantes. Veja que eles estão cada vez mais perdendo a imagem válida de
modernos agentes de enunciação de verdades cruas e, a cada dia que passa,
reconstituindo suas próprias imagens à semelhança dos ridículos nobres com
perucas brancas e espartilhos, eunucos diante de revoltas sangrentas que os
encurralam e atemorizam. A diferença pregnante é que embora estejam sendo
constituídas prisões de diferentes tipos, a grande maioria delas começam a se
desenhar como espaços de escravização, de senzalas, de campos de concentração
de humanos e animais não humanos humilhados e descartados conforme a utilidade
ou inutilidade deles, aos olhos das gerências das instituições em crise. Por
isso a resistência se redesenha em quilombos, porque tudo estará fortificado,
tanto prisões, passando por locais de trabalho até os condomínios de elite
abrigados em muros altos, o que impõe a construção de redes de contracultura,
também fortificadas em seus territórios. O caos é da ordem da linguagem, dos
signos e das realidades que se expressam neles. Sem linguagem comum e pública,
o país Brasil tende à retomada de suas possessões hereditárias inaugurais,
redesenhadas em multiplicidades pós-modernas.
A escolha por caminhos punitivos
não começa agora, na redução da maioridade penal. As leis positivadas, desde
sempre, tão somente ordenam formas para processos inclusos na produção das
fontes materiais - a realidade anterior à linguagem - sustentáculo efetivo para
a validade das novas regulações jurídicas. A escolha punitiva não tem, a rigor,
um começo, na história do Brasil invadido em 1500 pela moderna colonização
europeia, mas poderíamos, a título de esquema, sublinhar um início na Lei da
Abolição, que conduziu os escravos a territórios das gentes passíveis de
aprisionamento em sistemas penais modernos. De 1888 até a aprovação da redução
da maioridade penal, em julho de 2015, no congresso nacional brasileiro,
vivemos uma espiral de repetições, em escalas espaço-temporais diferentes, de
frágeis recortes pseudodemocráticos – em geral de perfil populista - no interior de processos predominantemente
violentos de controle das revoltas da população comum.
A redução da maioridade penal não
é, a rigor, um tema a conduzir os novos quilombolas ao desânimo, já que a
própria divisão entre apenados e livres é, em larga medida, ilusória. O sistema
penal brasileiro impulsiona, faz tempo, um conjunto de estruturas que têm, no
centro, as prisões, configuradas como depósitos de excluídos dos direitos que
as democracias clássicas sempre tentaram preservar até aos prisioneiros de
guerra. Em conexão estreita e eficaz com o sistema prisional, temos as famílias
e redes de parentesco dos encarcerados, contingente populacional que comanda,
lidera mesmo, estratégias de conduta moral nas periferias dos espaços públicos
e privados protegidos pelas elites de todo o gênero, espaços de Casa Grande,
onde vivem os incluídos em direitos de cidadania, nas grandes e pequenas
cidades. Essas periferias estão vendo e vivendo, faz tempo, a violência desmedida (esse é o termo para a
violência abusiva contra o escravo) contra as crianças, as mulheres, os velhos,
os homossexuais, os indígenas e os negros pobres em geral. Digno de nota é a
distância, cada vez maior, entre direitos conquistados pelos homossexuais,
mulheres e negros protegidos nos espaços de Casa Grande e a ausência
progressiva de direitos conferidos aos mesmos setores, em se tratando de
pessoas habitantes das periferias excluídas das ilhas de modernidade.
Essa liderança das periferias,
não sem razão, coloca-se mais a pergunta de como esses menores que irão para os
presídios, agora inseridos nos sistemas punitivos direcionados aos maiores,
serão tratados, mais do que a repulsa a nova forma de tipificação de seus
crimes. Afinal, entre o abandono, a violação sistemática, os assassinatos e as
torturas impingidas a essas crianças e adolescentes, e as futuras estratégias
de aprisionamento resta uma distância dramaticamente ambígua.
Recentemente, alguns de nós
puderam acompanhar debates nas redes sociais onde jovens negros comentavam
sobre o mito do estupro praticado nos presídios. Os comentários duraram pouco tempo
nas redes e foram apagados. Li uma postagem, no mural “feminismo sem
demagogia”, no qual um moço dizia que os apenados e detidos por tráfico de
drogas estavam protegidos desse tipo de violência pois o comando do tráfico
havia normatizado a proibição de estupro nesses casos. Esse é um indicador
importante. Ele aponta para um novo fluxo de produção de fontes materiais do
direito, qual seja, os direitos a serem conquistados por um contingente enorme
de brasileiros aprisionados ou ligados em redes de sobrevivência e risco aos
habitantes dos presídios, menores ou maiores, tanto faz. Há, entre os ditados populares, uma frase que
corresponde a isso: “se ninguém manda, mando eu”, isto é, se o Estado de
Direito é vetado aos habitantes dos presídios, cedo ou tarde essa população
consolidará, mais e melhor, seu próprio direito, ou, ao menos, ensaios de
direitos dos apenados. Uma vez ampliada a complexidade carcerária, em número de
presos e em sistemas prisionais, os próprios presos se organizarão, como já
fazem hoje parcialmente, para ampliar espaços de dignidade. Os quilombos começam
a se desenhar nas prisões.
Então vamos responder à pergunta
que dá título ao texto: quem tem medo de Eduardo Cunha?
Há quem, de tanto medo da
composição atual do congresso nacional brasileiro, deseje e até mesmo
reivindique a intervenção, até certo ponto ditatorial, do judiciário. Esses se
sentem mais tranquilos ao imaginar um Supremo Tribunal Federal desfazendo a
autoridade dos congressistas e, com isso, instaurando um perigoso Estado de
Exceção, já que o Executivo anda definhando diante de impedimentos de toda
ordem. Certamente esses não fazem parte da enorme população de excluídos de
processos decisórios em qualquer nível político, já que há muito as esperanças
de participação democrática estão aniquiladas no campo da opinião dos comuns.
Para a imensa maioria da
população brasileira – civil e militar (isso mesmo que você leu, e isso já é
outro texto) – trata-se, tão simplesmente, de pensar sobre que direitos,
afinal, as crianças devem ter, dentro de qualquer instituição que as mantenha
em situação disciplinar.
Faz parte da mais consolidada
memória humana a preservação da infância. Mesmo em um país escravista, como o
Brasil, os escravos sempre lutaram para ter e criar filhos. Nossas escolas
estão viradas em depósitos de menores e em seus “lares” as crianças padecem de
inúmeros riscos de todo o tipo. Cabe aos
novos quilombolas do século XXI tecerem cantos, danças, revoltas e cenários de
resistências dentro ou fora das prisões, em defesa dos menores de idade e dos
menores de direitos, como as mulheres despossuídas, os negros pobres, os
homossexuais abandonados à sorte vil, os indígenas expulsos de seu habitat.
Quem tem medo do congresso
nacional brasileiro? Não os quilombolas. Esses têm a potência cravada na
memória e Zumbi e Dandara a iluminar seus caminhos.
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