Querida Zê, bom dia!
Hoje já passa de um ano do começo
desta história que agora assusta a todos, no Brasil. Era só a derrubada da
primeira mulher presidente do país, pensavam muitos, sendo que até os que foram
derrubados desejavam que os cristais se colassem rapidamente. Só que não. Então
estamos aqui tentando entender como os escravos conseguiram se defender no
Brasil colônia de Portugal e, depois, no império até a lei da abolição. Em 1995,
eu me apaixonei pela lei número 62 de 1935, a chamada, na época, lei da despedida injusta, porque, além
de proteger o empregado que tivesse mais de um ano trabalhado na empresa ela
continha um surpreendente art. 10, escrito
assim: “Os empregados que ainda não
gozarem da estabilidade que as leis sobre institutos de aposentadorias e
pensões têm criado, desde que contem 10 anos de serviço efetivo no mesmo
estabelecimento, nos termos desta Lei, só poderão ser demitidos por motivos
devidamente comprovados de falta grave, desobediência, indisciplina ou causa de
força maior, nos termos do art. 5º”. Esse artigo cinco era mesmo cruel,
porque nele havia dez motivos para despedida justa que serviriam para qualquer
tipo de atitude e conflito entre o empregado e o dono da empresa. Mas o artigo
dez apresentava uma estabilidade para quem tivesse mais de dez anos no mesmo
local de trabalho e foi ele que provocou um furioso debate nacional sobre
direitos dos trabalhadores brasileiros, além do forte dissídio nacional sobre
todo o conjunto da lei. E minha simpatia por esse momento da história do Brasil
vinha também do fato de que esse ano, 1935, foi também o ano da Intentona Comunista, quando a
organização chamada Aliança Nacional
Libertadora ergueu uma insurreição contra Getúlio Vargas. Trinta foi uma
década surpreendentemente rica, politicamente, no Brasil, Zeferina, e foi nela
que minha mãe nasceu. Essa minha
paixão acabou motivando um estudo sobre o que poderíamos considerar como sendo
uma estabilidade no trabalho, já que os escravos não tinham direito de ir
embora e essa lei tentava regular o direito de ficar, já que desde a lei áurea –
a abolição da escravatura – o direito de ir embora era imediato, ao menos em
lei. Eu refletia sobre a ideia de que estabilidade não é só poder ficar, de que
estar em segurança em uma situação precisaria agregar a possibilidade de sair
dela. Essa ideia de segurança e liberdade o feminismo havia me presenteado, e
não apenas aquele feminismo europeu e americano da década de sessenta, mas eu
era herdeira da minha vó, tua neta. Eu era tua herdeira, Zê. Lá,
quando o Lula e o PT pensavam estratégias para chegar ao poder no Brasil, em
1996, eu escrevia e citava recortes de Jacob Gorender, como este: “A fim de obter a resignação do escravo,
todas as sociedades escravistas, antigas e modernas, se orientaram no sentido
de elaborar uma legislação restritiva do arbítrio dos senhores e protetora dos
escravos sob alguns aspectos elementares. Sem nunca colocar em questão a
legalidade da própria escravidão como tal. (...) Conforme tem sido dito, a
grande maioria dos escravos não participou de levantes, não cometeu atentados,
nem fugiu. À exceção da geração que chegou à Abolição, a grande maioria viveu a
escravidão até a morte. (...) O código de conduta criava uma espécie de opinião
pública entre os senhores, que censurava tanto os sádicos como os havidos por
frouxos. (...) a moderação no tratamento dos escravos era a ideologia oficial
do Estado. (...) [os escravos] Não
escapavam ilesos às degradações impostas por este regime. Enfrentavam-nas com
sofrimento, humor, astúcia e também egoísmo perverso. Escravos agrediam
escravos em disputas por mulher, para entregá-los a capitães-do-mato ou para
roubá-los. Mulheres escravas faziam da sedução sexual de homens livres o
caminho para o bem estar e a liberdade. (...) Nada há para surpreender que
escravos tenham assimilado os valores da sociedade escravista e pensassem atingir
a liberdade para se tornarem eles próprios senhores de escravos. Não falta, por
isso, o registro de libertos solidários com a instituição servil. Tampouco deve
surpreender que, do meio dos escravos e libertos, saíssem indivíduos cooptados
para a tarefa de repressão aos cativos”. Isso Gorender escreveu em 1990,
quando o Lula já havia perdido as eleições para o Fernando Collor de Mello.
Eu não sei agora, nesse novo
direito que o Moro representa, esse do “domínio do fato”, mas desde 1969
podemos ler juristas dizendo que o
Direito do Trabalho (pensando em um exemplo de universo jurídico) é fundado
pela relação jurídica nomeada de contrato de trabalho, ensejada pelo “trabalho produtivo por conta alheia,
livremente prestado”. Isso é de Manuel Alonso Olea, 1969. Assim o
contratante e o contratado podem, em caso de conflito, ir embora ou deixar ir
embora mediante algum tipo de ritual de interrupção, uma briga, uma
indenização, um aviso, um último salário.
“É por respeito a este paradigma do Direito moderno que,
necessariamente, o escravo descrito por Jacob Gorender tem que ser destituído
de qualquer capacidade de negociação dentro do sistema escravista e sua
condição de pessoa tem que estar inscrita na fuga ou no crime. O que Kátia
Mattoso afirma, em 1982 – que o escravo desenvolve com seu senhor ‘uma espécie
de contrato tácito e sólido’ –, só pode ser aceito pela racionalidade jurídica
moderna se este contrato a que Kátia se refere for considerado um contrato não
jurídico. Isso eu refletia em 1995. Ou seja, a palavra contrato, usada por
Kátia, não é aceita – por esse direito moderno que começa a perder sua eficácia,
no Brasil de 2017 – como referente a uma ação entre dois sujeitos em exercício
de suas vontades se eles são um o dono e o outro um escravo. Assim, “o direito do trabalho só pode ser falado e
pensado desde a ideia de uma legislação que começa a partir de 1888, com a
abolição da escravatura no Brasil”. Isso é texto meu, em minha dissertação
de mestrado, de 1997. Esse direito moderno inaugurado no Brasil a partir de
1888 seria um direito que só “veria” o fato se ele fosse legalizado como
normalidade de direitos legislados ou crime. Então, se o escravo não era pessoa,
legalmente, não podia contratar e suas negociações com seu dono não podiam ser
vistas pelo mundo jurídico, pelo direito. As negociações de um escravo não
existem para o direito moderno do trabalho, embora o direito penal
reconhecesse, no Brasil império, quando o escravo era autor de crime. E tanto é
verdade isso que a questão da escravidão negra tornou-se uma memória a ser
banida de tal modo que ela ressurge, nos governos do Partido dos Trabalhadores,
entre 2003 e 2015, mas ressurge como uma ideia de preconceitos a serem banidos
por convencimento e punição, não como tecidos conceituais alicerçados em
memórias e práticas coletivas de uma espécie de “direito costumeiro na
estrutura social”.
Um amigo das antigas recentemente
postou no facebook: "Diante dos alarmantes boatos sobre o restabelecimento
da escravidão no Brasil, lembro que tal risco não existe: o Governo Temer sabe
que a escravidão é modalidade de prestação de serviços arcaica e muito
dispendiosa. O empreendedor ficaria onerado em seus custos fixos, engessado com
a paternalista obrigação de, indefinidamente, alimentar, vestir e abrigar seus
colaboradores, e, pior, retira a liberdade deles escolherem, no mercado, a
comida, a roupa e a moradia mais adequadas aos seus interesses e necessidades.
Fora o irracional custo da manutenção de um estoque de escravos ociosos...
Tirem, pois, seus cavalinhos da chuva. [A escravidão] não vem”! E eu respondi:
Esse tecido conceitual sobre a escravidão entende que só é escravo quem é
individualmente propriedade privada de quem tem poder sobre o corpo
aprisionado. Daí a lei da abolição, a da princesa Isabel, afirmar um direito
moderno que se positiva a partir das tradições ou romano-germânica ou inglesa,
sempre um direito de leis escritas em constituições e códigos, ou em casos
tipos definidos em jurisprudências de tribunais superiores. Então teríamos um
mundo real fluindo a partir de dois movimentos na sociabilidade: o movimento
que acontece a partir da aplicação da lei e o movimento que acontece a partir
do descumprimento dela. Daí o direito penal, as punições, presídios, multas. E
a escravidão se tornando um acontecimento nas bordas não atingidas pelo dossel
(cobertura) da lei. Bem, estamos diante de uma nova epistemologia, tanto para o
Direito quanto para as outras ciências da vida e das coisas. A escravidão,
nesse caso, poderá ser pensada ao modo como Simone de Beauvoir analisou o lugar
da mulher no mundo patriarcal, quando ela diz que é um lugar de "coisa",
um outro inessencial. O "homem inútil" do israelense historiador
Harari, autor do livro Homo Deus, tornando-se a casta dos que não servem para
nada, a não ser para fazer os piores trabalhos e receber em troca a pior
remuneração: comida ruim e contaminada e um canto imundo pra dormir em meio à
doença e à sujeira. Neste caso, o aprisionamento seria da casta inteira e
dentro de um apartheid geopolítico. Então, escravo não seria, neste caso, nem o
escravo moderno das plantações e minas brasileiras do império, nem o escravo
antigo, ou servo, das conquistas de guerras entre reinos, o escravo como
estrangeiro. Escravo seria quem não decide sobre onde ir e como tratar seu
próprio corpo. É uma questão de posse sobre o próprio corpo”.
Precisamos ler Simone de
Beauvoir, agora sob a luz de uma nova civilização que emerge do lixo produzido
na modernidade. Talvez a ruptura no campo das identidades, proposta pela
companheira do Sartre fique contida em um modelo de pensamento que vê no homem
branco, adulto e europeu um território existencial de estabilidade física e
emocional razoavelmente consistente: o ser humano que trabalha livre e faz
política, decide sobre sexo e seu próprio corpo, um humano essencial. A nova
civilização está atada, ainda, em cordões umbilicais, mas já grita e respira
ideias que questionam o protagonismo de uma condição essencial humana no
planeta Terra. Ora, sem essa construção paradigmática, a de que os humanos
devem garantir a sua estabilidade no planeta que habitam, o controle sobre a
totalidade dos corpos humanos retornariam às mãos de um ou mais deuses.
Controlados os direitos humanos por deuses, nada do que foi posto pelo direito
moderno ficaria garantido.
versão um. foto: arquivo pessoal, Gentil Bandeira de Souza, marido da neta da Zeferina, soldado do exército brasileiro na década de 1930.
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