Querida Zê,
Agora, aquela
contra-intuição do feminismo sem nome e sem fala. Este feminismo comum e
milenar tão diferente das falas oficiais das mulheres famosas, este feminismo
da fofoca sempre combatida e que providencia solidariedades entre sofredoras,
mas de modo algum mergulha nessa tal sororidade obrigatória e disciplinadora do
comportamento das mulheres obedientes às determinações das grandes mídias, das
grandes palavras de ordem. Agora, esta contra-intuição sempre subversiva
poderia integrar uma nova epistemologia capaz de construir um novo direito das
gentes comuns, um direito natural defensivo capaz de defender todos os frágeis
e humilhados pelos mais rápidos, mais ágeis e mais mandantes. Mas isso
precisaria ser muito bem pensado e explicado, os conceitos descritos em
movimentos complexos para que se pudesse identificar até mesmo aquela rapidez e
agilidade da mulher gueixa que manda em outros como uma representação de seus
tutores, da nobreza a quem serve. Seria preciso descrever com acurada precisão
quem afinal são as “gentes comuns” para finalmente conseguir erguer um direito
que pudesse homenagear o Lula e a Dilma, ao menos em suas trajetórias de luta
democrática, em oposição ao direito do juiz Moro, mesmo ao considerar os
fracassos evidentes daqueles dois, justamente talvez sabendo perdoa-los naquilo
que os presidentes representantes da esquerda brasileira depois da ditadura
militar manifestaram como impotência.
Agora, há pouco
tempo, estou vivendo num mundo que assiste ao seu próprio fim e de um modo
incrivelmente acelerado. Nós mesmos, os mais velhos, já participando,
desajeitados, de uma organização de lógicas do viver onde cada vez menos
pessoas reclamam do tanto que tudo isso se parece com um quadro de Hieronymus
Bosch, onde o sofrimento indescritível fica no quadro ao lado do piquenique da
aldeia sonâmbula onde ninguém olha para ninguém. Há um problema de pânico ou de
êxtase generalizados produtores de solidão como pandemia e perda de
entendimentos comuns dentro de uma mesma linguagem. Há um dessoramento da linguagem
comum, uma anemia, uma perda de importância dos sentidos e, portanto, uma
ausência progressiva do pertencimento. Estamos nos tornando cada qual uma
singularidade à deriva, medievais, enclausurados e coisificados pelas
estatísticas. Vejo uma televisão tanque de guerra arremessando mísseis,
mostrando polícias por todos os lados e gente apanhando, sendo presa, baleada,
perseguida, “apreendida” como “elemento”, como os escravos descritos e
desenhados nos troncos, nos livros escolares dos tempos em que era tão
romântico ler livros. Agora, vejo essa aura de reverência ao grande romance
perder sua força, a evidência de que chegar a uma visibilidade de escrita é um
poder que poucos têm e não sem pagar algum preço, não sem manifestar desde o
começo do desejo de escrever a adesão a um grupo político que consiga ter
influência em mídias grandes e médias, influência em esferas de gerenciamento
de instituições de produção cultural. Em resumo, tudo virou mercadoria de
consumo, avatares, algoritmos voando em um tecido de sociabilidade explodida em
fragmentos. Tudo virou discurso de sustentação de algum tipo de aristocracia. E
a existência de aristocracias de esquerda, elegantes núcleos de preservação do
socialismo derrotado, ainda se mantém legalizada ao lado da proliferação de
direitas de novos e arcaicos tipos. Cresce um discreto medo de que venha a
surgir uma nova escravidão, um inaugural sistema de castas, um inevitável
apartheid do contingente humano que jovens teóricos chamam, tranquilamente, de
o “homem inútil”. Isso são ingredientes dessa nova barbárie do final do século
vinte e início do vinte e um e é nesse cenário de fragmentação de uma hegemonia
cultural iniciada no renascimento europeu, lá por volta de mil e trezentos
depois de Jesus Cristo, que a figura do livro de sobrevivência resgata antigas
cenas de alquimistas medievais. Escrevo como refugiada, Zeferina, desejando
atar vínculos de esperanças entre os que ainda não enlouqueceram neste mundo
meu e os que conseguirem passar por esse fim de mundo no qual vivemos. Como se
jogasse garrafas lacradas ao mar, o mar virtual das redes sociais, desejando
que alguém as encontre um dia, leia e pense: então era assim que eles sofriam e
que tentavam viver e inventar soluções para seus problemas.
Mas se nesse mundo terminal, temos
o direito do domínio do fato, tal como lemos nas redes sociais no Brasil, que é
o direito do juiz Moro, da polícia federal, dos grampos, das escutas e dos
escândalos nas televisões, qual seria o direito do Lula? Sob que direito o Lula
estaria preservado como principal líder de multidões no Brasil? Esse direito do
juiz Moro seria algo assim: o fato aparece como um desenho em um quebra-cabeça
de indícios e quando o juiz vê o fato, um domínio se estabeleceu, mesmo que
faltem peças materiais objetivas que provem uma culpa. Então seria a presença
de um fato visível como ideia a partir de fragmentos. O fato que eu conseguia
ver, Zeferina, é o de que o PT era o único partido que precisava ser cassado de
sua capacidade de influência no cenário político. Os demais acusados, de outros
partidos políticos, nos processos ligados à investigação chamada de lavajato,
não levavam junto seus grupos políticos, seus partidos, para o lugar de
punição. Agora, surgiu um fato novo, com
novas denúncias e grampos acusando o senador Aécio Neves e o presidente Temer,
e ele carrega a sensação de que todo o conjunto das instituições políticas
brasileiras está a naufragar. Talvez porque outro fato domine a cena, e ele
seria a necessidade de cassar de seu lugar de poder o conjunto normativo
erguido na modernidade republicana, no Brasil e no mundo. Finalmente podemos
concluir - pelo domínio do fato - que o Partido dos Trabalhadores liderava
durante quatro mandatos presidenciais, no governo, a proteção à CLT, as ideias
de ênfase do princípio jurídico da proteção do hipossuficiente, a Constituição
dos direitos humanos individuais iguais para todos. Então o domínio desse novo
direito surge por uma configuração de fatos novos dominantes no mundo atual,
todo ele. Todos os grandes acontecimentos na história humana sempre estiveram
ligados a invenções tecnológicas: o domínio do fogo, do metal, a invenção da
escrita, a bússola, as caravelas, as máquinas a vapor, a eletricidade, a
mecânica, o petróleo. Então o fato novo é a mais recente revolução da
informática carregando consigo novas tecnologias em diferentes áreas e
precisando deixar em aberto até mesmo as possibilidades de vários tipos novos
de escravidão, a começar pelo trabalho obrigatório de apenados nos grandes
presídios de predomínio de populações negras, pobres e abandonadas desde as
gerações de seus pais e avós. Outras e novas escravidões como a de jovens
operadores de telemarketing, de costureiras domésticas, de cortadores de
pedaços de carne de frango ou de gado, todos presos em sistemas cruéis de
trabalho forçado e sem direito a contrato protegido por leis de domínio
público.
O PT e
seus aliados próximos ou mais distantes, ao defenderem as normas construídas no
século vinte, estavam travando a liberdade dos gestores desse novo mundo de
novas lógicas. E fizeram isso defendendo os direitos escritos modernos, os
direitos das normas e decisões jurídicas escritas, dos códigos, das
constituições, todos eles erguidos a partir dos acontecimentos inaugurados
pelas revoluções burguesas do século XVIII. Contra essa tradição, nasce o
direito do domínio do fato, sendo que os fatos aparecem em uma sucessão de
problemas inéditos, tecnologias novas e populações humanas envolvidas em
tragédias sem precedentes, como a ruptura da barragem do depósito de lixo de
mineradoras, em 2015, e a contaminação dos rios a partir da cidade brasileira
de Mariana, em Minas Gerais, Brasil. Parece então, Zeferina, que a esquerda
brasileira defendia um capitalismo que está morrendo, se decompondo, enquanto
os seguidores, aliados e admiradores do juiz Moro defendem uma profusão de grandes novidades. Isso do
julgamento do Lula nas telas das televisões e nas redes sociais, a partir de
seu depoimento perante o juiz Sérgio Moro, esteve parecendo um tipo de assalto
revolucionário ao poder, uma espécie de “período de terror” acionado para
prender um conjunto de inimigos deste novo poder que irrompe e silenciar uma
determinada versão, mais antiga, dos fatos. Agora, entramos em uma nova fase,
na qual parece que tudo desaba, não mais apenas o Lula e seu partido, agora
toda a política parece uma cena de filme noir de mafiosos americanos da década
de trinta do século vinte. Parece então que isso vai se impor, aos poucos, aos
saltos, lenta ou repentinamente e teremos o início de um novo mundo jurídico.
Mas nada indica que nesse novo mundo teremos apenas um modelo de pensamento,
teoria, sobre o direito de todos e de cada um, direitos dos humanos, dos seres
vivos e das coisas tocadas por eles.
Penso, Zeferina, em um
direito natural defensivo, uma produção de entendimentos sobre direitos a se
realizar a partir das memórias de longa duração que se mantiverem dentro das
comunidades humanas, dentro dos cérebros de muitos dos seus membros que
passarão essas memórias de geração em geração. Chamo de natural esse direito
porque ele brotará, penso eu, de ideias irrefutáveis e muito mais consolidadas
do que esses fatos voláteis das lógicas camaleônicas do mundo atual. Ideias
tais como bem viver em comunidade, felicidade individual, liberdade individual
e de grupos, saúde dos corpos e das mentes, são ideias que movimentaram todos
os tempos humanos, todas as histórias vividas pela humanidade. Natural no sentido
do que é próprio de um ser, daquilo que poderia vir com ele enquanto ele nasce
e cresce, se não for humilhado. Chamo de defensivo porque, pela primeira vez na
história da humanidade, esse direito tende a aparecer não como uma potência que
impõe uma novidade, um desejo, uma invenção, não mais como um conjunto de
ideias utópicas ou inscritas em um campo filosófico revolucionário de novos
atores sociais, mas como um conjunto de acontecimentos movidos por urgências
imediatas de sobrevivência da espécie humana sapiens. É um direito natural
defensivo porque nós estamos ameaçados de extinção, Zeferina. Então esse ser
natural desse direito seria um conteúdo a predominar na história desta
humanidade ameaçada e, portanto, seria um direito historicista, a encontrar um
domínio de uma história humana, uma consciência coletiva sobre direitos de todos e de cada um.
Penso sobre esse
direito das gentes comuns desde 1994, quando comecei a estudar e escrever sobre
histórias da Justiça e do Direito do Trabalho no Brasil. Lá, eu estudava sobre
as histórias do escravismo no país, sobre as perversidades nas Casas Grandes
& Senzalas, sobre os hibridismos entre violência e confraternização.
Estudava sobre a lei da despedida injusta de 1935. Agora, estou voltando
àqueles escritos e pensando sobre um novo direito para opor ao direito inaugural
do Moro, para superar o direito moderno que a esquerda insiste em proteger e
para defender nosso direito ao próprio corpo. Neste momento histórico, não mais
as “mulheres inessenciais” descritas pela Simone de Beauvoir, agora os “homens
inúteis” falados por jovens autores, como o Yuval Noah Harari. Agora, os homens
terão que aprender a exercer uma contra-intuição, como as mulheres
diferenciadamente audaciosas sempre fizeram desde o surgimento do primeiro
domínio patriarcal. Agora, quando a mulher começava a deixar de ser coisa para
os homens, começamos a ver toda a humanidade mergulhar em um domínio de fatos
que conduzem os seres vivos a mais degenerada coisificação. Agora.
Imagem da web - Ulisses
Guimarães, presidente da assembléia nacional constituinte no Brasil, em 1987. Em 1988 a nova Constituição foi promulgada. A segunda versão da carta 10.1 foi
publicada com texto modificado dados os novos escândalos políticos, modificado
o título e a imagem para tentar fazer passar a publicação anterior vetada pela
gerência do facebook na fanpage do liberta master. Depois de duas comunicações
aos gerentes do facebook, a segunda manifestando um grande descontentamento, a
página foi liberada novamente para divulgação após quinze dias sob censura.
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