Querida Zeferina,
Essa carta era sobre como acontece de os
escravos o serem em cada uma de suas células e sentimentos, de como isso se
arrasta por várias gerações e não muda se não houver muito investimento em
escolas e recuperação de danos nas famílias herdeiras das dores e traumas dos
escravos. Seria sobre como um bom número de pessoas carrega uma mistura entre
células de escravos e células de donos, sendo a célula também o lugar das
memórias subjetivas. Mas aí lembrei e resolvi procurar aquele livro incrível,
de 1875, Manual do Elemento Servil, escrito
por Miguel Thomaz Pessoa e editado
por Eduardo & Henrique Laemmert, e no meio da procura encontrei a revista IBIÚNA, escrita em 1977, parece. Naquela
época a juventude não registrava direito as datas em seus documentos, hoje não
sei se eles já aprenderam que tudo o que fazem só terá potência se for lido
quarenta anos depois, então precisariam deixar claro as datas e os seus modos
de pensar imprecisos, como de fato brotam os pensamentos. Os jovens tendem a
afirmar verdades claras, mantras, rezas, palavras de ordem. Isso faz parte, no
Brasil, daquele caleidoscópio cultural escravocrata sobre o qual vou escrever
várias cartas para ti, Táta. Uma sociedade erguida sobre e sob o chicote de
feitores e donos doutores vive um nível e uma constância de humilhações que a
fazem esquecer muito, esquecer todos os dias. Desse esquecimento nascem jovens querendo
brincar, cantar lendas, dançar, tentando alegrar seus pais, tios, vizinhos.
Jovens que aprendem muito pouco com os mais velhos, até para se defenderem da
melancolia de velhos desprezados em suas memórias por todos os adultos. Em
sociedades escravocratas os poucos velhos sobreviventes e com mais de oitenta
anos são vistos como monumentos, são “tratados”, como era e ainda é a linguagem
dos e sobre os analfabetos no país, tratados como se trata gado, mas deles não
se esperam entendimentos lúcidos e esclarecedores. Um país de tradição cultural
escravocrata que tenha passado pelos séculos dezenove e vinte sob a pressão de
“modernizar-se”, “desenvolver-se”, “tornar-se primeiro mundo”, só poderia ter
sido mergulhado em mitologias girando em torno da ideia mestra da “mudança”,
movendo suas comunidades, sua sociedade civil, em rituais de recomeços, novos
pactos, reinaugurações. Assim, os jovens são empurrados para as ruas, à direita
e à esquerda, cantando mantras, dançando alegrias pensadas em slogans
banalizados. Uma sociedade escravocrata aprende a não pensar muito. É uma forma
de resistência, mas também é uma forma de acomodação. A isso podemos chamar de
genética da sociabilidade.
Achei a revista de Ibiúna no
mesmo cantinho de prateleira onde estavam as seguintes cartilhas: um texto do
“Combate Sexual da Juventude”, do Wilhelm Reich, “Os Conselhos Operários e a
Transição para o Socialismo”, de Hugo Sacchi, publicados em 1978/9 pelo setor
jovem metropolitano do MDB de Porto Alegre e “Universidade e Poder”, de Tomás
Vasconi e Inês Reca, texto extraído da Revista
Latino-americana de Ciências Sociales, nº4, dezembro de 1972, Chile. O
primeiro editorial da Ibiúna(1977-
reorganização da UNE) começa assim: "Vivemos
um momento complexo na conjuntura política do país. Configura-se, de forma cada
vez mais clara, uma nova 'virada'. A crise econômica continua sem solução a
curto prazo, permanecendo como pano de fundo da conjuntura. Mas, já há algum
tempo, e cada vez mais, deixou de ser seu aspecto principal. A crise política
tem sua dinâmica própria e avança a passos largos. Agora, já não resta dúvidas
que a polarização política no seio da classe dominante não se dá mais em torno
da questão institucionalização do regime (o abre não abre) corporificado na
briga Geisel X Médici e, posteriormente Geisel X Frota. A candidatura de Euler
Bentes e a Frente Nacional pela Redemocratização começam a delinear uma outra
alternativa burguesa como saída à crise da ditadura, e que vai bem além da
simples institucionalização, da reforma de fachada. Pela força que expressa
dentro de setores da burguesia, e inclusive das Forças Armadas, começa a
aparecer como uma alternativa viável à ditadura militar, toma iniciativas e
polariza a oposição liberal e significativos setores da pequena burguesia
democrática". A revista tem quatro editoriais creio que representando
grupos distintos dentro do movimento estudantil brasileiro reunido em frente
contra a ditadura militar. A foto da capa da revista é um caminhão com um
amontoado de jovens em pé na caçamba, sendo conduzidos presos, após tentativa
de realização do 30º Congresso Nacional da UNE, em São Paulo. Era o ano de
1968, na França aconteceriam as revoltas estudantis de maio, com bandeiras como
“é proibido proibir”. No editorial 4 há
a defesa da tarefa fundamental da construção do Partido dos Trabalhadores.
Fico pensando, Zeferina, nessa
nossa falta de memórias coletivas que nos faz retomar falas idênticas em
cenários tão diferentes, essas falas sobre “crises” e sobre “frentes nacionais
por redemocratizações”, incluindo aí sempre uma borda mais descontente a
denunciar os pactos como conciliadores. Em 1977/78, a bandeira mais radical do
“governo dos trabalhadores”, a partir das greves do ABC paulista, a ideia de
erguer um partido ainda socialdemocrata, mas mais radical, incorporando ideias
do maio de 68 francês, da esquerda trotskista internacional e outros
autonomistas europeus vindos do pós-estruturalismo. Um partido dos
trabalhadores perante o qual alguns jovens do meu tempo estiveram dispostos a
morrer, a dar seus corpos a projetos arriscados. Alguns morreram mesmo, alguns
estão presos, outros doentes, pobres ou tristes, alguns estão muito bem em suas
profissões.
O livro de 1875, o Manual do Elemento Servil, achei na
internet, depois de ter passado uns dois dias limpando prateleiras e revirando
baús do sótão dos gatos do barracão da garagem, sem encontrar a cópia que uma
professora da AMATRA-RS me deu em 1995, mas encontrando cartas e manuscritos
meus e de outros militantes das décadas de setenta e oitenta. Ele é uma
compilação de versões da lei do ventre livre, quando essa lei estava sendo
pensada e depois emendada e votada na assembleia de deputados brasileiros da
época do Império. Agora, Táta, tenta imaginar a situação, compara com o que
vivemos hoje. O relator do primeiro projeto de lei, apresentado em 1968, foi
Joaquim Nabuco. A lei versava sobre indenizações aos donos de escravos,
alforrias e normas de direitos e deveres dos donos e dos nascidos de ventre
livre e suas mães. Mais tarde inventaram que essa lei era uma porcaria inútil e
que a lei da abolição é que foi boa e forte para o povo brasileiro. Na década
de oitenta, alguns historiadores começaram a publicar livros dizendo que a lei
de abolição tinha sido algo do tipo mandar todos os escravos embora sem
indenização ou reparação alguma, manda-los às ruas, abandonados, expostos às
políticas de um estado policial que viria a trata-los como vagabundos e
bandidos desocupados, nas repúblicas subsequentes a 1889. Mas a lei do ventre
livre, pensa bem, Zeferina, você pode ter sido filha de ventre livre. Teu
filho, meu bisavô, nasceu lá por 1890, digamos que tu tinhas 19 anos, pois você
teve filhos talvez com quinze e tiveste mais de dez, creio. Então você poderia ter nascido em
1871, antes da abolição e durante a vigência da lei do ventre livre.
Bom, se hoje a gente tá exausto
com tantas transformações jurídicas, políticas e materiais na vida em
sociedade, na sociabilidade e suas tramas de grupos, comunidades e multidões,
creio que entre 1860 e 1889 também foi uma confusão enorme, com grupos de
elites brigando muito entre si e com movimentos e agrupamentos abolicionistas e
de escravos e alforriados também tentando sobreviver e diminuir a violência que
se abatia sobre eles. Então, a lei do ventre livre tinha oito artigos, em seu
primeiro projeto, o de 1868. Um deles, o
quarto, era assim: “São declarados libertos: §1º, os escravos da nação,
dando-lhes o governo a ocupação que julgar conveniente; §2º, os escravos das
ordens regulares gradualmente e dentro de sete anos, providenciando o governo
sobre a colocação dos libertos; §3º, os escravos do evento; §4º, os escravos
das heranças vagas; §5º, os escravos que salvarem a vida de seus senhores, dos
descendentes e ascendentes destes; §6º, os escravos que licitamente acharem e
entregarem a seus senhores alguma pedra preciosa cujo valor exceda ao da sua
redempção; §7º os filhos da escrava destinada a ser livre depois de certo tempo
ou sob condição; §8º, o escravo que por consentimento do senhor, expresso ou
tácito se casar com pessoa livre, ou se estabelecer por qualquer fórma como
livre”. Na lei assinada em 1871, pela princesa Isabel em nome de Dom Pedro II,
esse artigo passou a ser assim: “Art. 4º - É permitido ao escravo a formação de
um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que,
por consentimento do senhor, obtiver de seu trabalho e economias. O governo
providenciará nos regulamentos sobre a colocação e a segurança do mesmo pecúlio”.
Então, Zeferina, a lei do ventre
livre foi, na verdade, uma discussão nacional sobre um código, ou consolidação
de direitos e deveres dos escravos e dos senhores seus donos, do governo, de
toda a sociedade civil organizada da época. Era para ser uma lei com obrigações
de tutela de parte do governo e dos senhores escravocratas em sentido
indenizatório e de integração progressiva do contingente populacional
escravizado, e suas bordas, na sociedade civil livre e articulada em torno de
um mercado de trabalho e outras instituições republicanas. Claro, naquele
momento de tentativa de um pacto nacional das diferentes elites, algumas
abolicionistas, havia a previsão de indenização paga aos donos dos escravos
pelo governo. Era a ideia de emissão de títulos de dívidas públicas, com juros
de seis por cento, se estou lembrada (não vou lá procurar agora, mas era isso).
Todo aquele cenário, em projeto inicial apresentado por Joaquim Nabuco erguia um
princípio jurídico dos mais importantes em toda a história do Direito dos humanos,
decisivo para a dignidade humana, o Princípio da Tutela, segundo o qual as
sociedades civis devem erguer cidades ou Estados e manter governos onde o
objetivo de proteção dos indivíduos mais frágeis seja a norma fundamental. Por
óbvio, os indivíduos mais frágeis são os velhos, as crianças, os doentes e os
deficientes; as mulheres mais frágeis do que os homens por decorrências da
história.
Vou escrever mais cartas sobre
essa lei, Táta, para os que me leem. Há jovens lendo as cartas que escrevo a
você. Memória é tudo, sem ela não somos capazes de limpar o traseiro sequer.
Destruir memórias é a parte principal das ações dos genocidas atuais. Botar
todos os jovens a executar algoritmos é o grosso do projeto das grandes
máquinas das gerências mundiais que preferem robôs a humanos, preferem escravos desesperados e tementes, a pessoas esperançosas. Mas alguns de nós são como os elefantes: recordam os
caminhos.
versão um. foto: Joaquim Nabuco, da web.
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