O Silêncio da Dilma




"Tudo o que é insólito, singular, novo, perfeito ou monstruoso torna-se receptáculo para as forças mágico-religiosas e, segundo as circunstâncias, um objeto de veneração ou de temor, em virtude do sentimento ambivalente que o sagrado provoca constantemente. Seja em que domínio for, a perfeição assusta, e é neste valor sagrado ou mágico da perfeição que será necessário procurar a explicação do receio que até a mais civilizada das sociedades manifesta perante o santo ou o gênio. A perfeição não pertence a este mundo" (Mircea Eliade). É uma coisa diferente deste mundo, embora venha até ele. Não é sem risco que todo aquele que pertença à esfera profana, isto é, não preparado ritualmente, se aproxima de um objeto impuro ou consagrado. O Sagrado se manifesta mas não se dá a conhecer. O Sagrado se manifesta em um acontecimento cratofânico (formas rudimentares, insólitas, de um acontecimento divino)  ou em um objeto ou ser hierofânico (ritos, cultos, formas divinas, símbolos); eles são a manifestação do sagrado no universo mental daqueles que o receberam. No entanto, por ser o que é, o Sagrado se retira do mundo ontológico no momento mesmo em que aparece a vontade humana de comprovar a sua medição, sua inclusão no universo do que se dá ao conhecimento descritível.

 Chego a sentir um certo temor, ao escrever essas palavras, a presença próxima do Sagrado, de tantos sagrados presentes em minha vida desde o primeiro minuto; todos eles dizendo da minha incompetência, em vários sentidos, para falar sobre esses assuntos: mulher, subalterna, sem poder político além do óbvio e atualmente improfícuo direito ao voto; mulher culta mas não acadêmica, portanto, não possuidora de títulos e posição social que permita uma fala competente sobre um assunto dessa magnitude; uma mulher comum, não uma artista e nem uma âncora da grande mídia. 

A grande mídia brasileira falando galhardamente sobre o assunto, rindo "respeitosamente" ( as hienas riem mais honestamente) , tirando casquinhas: "agora temos de pensar em nossos executivos que têm dificuldades em se aposentar porque não vêem significado em suas vidas fora da estrutura da corporação"; isto é, a grande irmã TV, inquisitorial para com os servidores públicos, brinca de chutar com plumas de porta-estandarte os restos de um boneco de judas queimado.

Jeanne Marie Gagnebin nos ensina o significado daquele modo de ser do tempo que recebe o nome de Kairos, o tempo oportuno, da ocasião que se pega ou se deixa, do não previsto e do decisivo. A questão, em Kairos, é: o Papa não renuncia, o Papa morre sendo o Papa, seja quais forem as circunstâncias históricas. A condição de "Papa" é posta em um cardeal católico pelo Espírito Santo e essa condição é de uma só representação. Não existe aposentadoria de um Papa, não é um cargo, é uma representação vitalícia de um ponto central em um estrutura de representação do Sagrado. Ora, derrubada essa construção teológica, vale tudo: divórcio, casamento gay, manipulação das possibilidades do corpo humano pela alta tecnologia, etc....Isto é: se os seres humanos podem revogar uma decisão do Espírito Santo, que é a escolha do Papa, e retirar de "dentro" de um cardeal a sua condição escolhida pelo Sagrado, então o Sagrado havia se retirado dali. O Sagrado estava ausente da estrutura de representações do Vaticano, no carnaval de 2013. Mas, se o sagrado havia se ausentado do lugar primeiro, o Papado, estaria ele ainda presente nos demais lugares subalternos a este? Isso é uma ruptura paradigmática sem precedentes...

Igualmente em Kairos sentimos o silêncio da primeira presidente mulher do país Brasil: os que foram torturados relutam em tripudiar, humilhar, desmerecer, até porque um simples sorriso, uma risadinha ou um comentário amorfo e inodoro poderiam significar um conteúdo desrespeitoso diante de uma quebra paradigmática a se realizar em um corpo de um único ser humano. É uma circunstância histórica tremenda, imune a caracterizações levianas ou triviais, como as que fazem superficiais elogios à coragem do homem chamado Ratzinger. O silêncio da Dilma tem um quê de oração, da postura de quem medita, de olhos baixos diante do deslocamento incomensurável do Sagrado aos olhos do mundo. Dilma recolhe, neste momento Kairos, e abriga em si a singeleza teológica do Saber acumulado da espécie humana diante do momento limítrofe de uma situação ética: é o silêncio respeitoso que todas nós, mulheres, sempre tivemos em uma situação derradeira, como quando estamos diante de uma companheira que viveu um aborto. A história acontece e desenha os lugares sagrados, os sobreviventes ficam, as dores se acalmam e o perdão compassivo à trajetória inglória da igreja católica é a escolha possível a todos sabedores de que o Sagrado é, está e circula.


Larga-mar e cassarinas

A maré vazante faz emergir um espelho, fina camada de dez centímetros de água tépida se estendendo em um percurso de um quilômetro de extensão em toda a pequena baía cercada de montanhas. Uma cortina de cassarinas, árvores altas e finas,  de frente para o mar, negras em um fundo azul neon iluminando o início de noite, às 20 horas, e essa camada de água prateada escura, quarenta metros antes da rebentação, ondulando em marolas longas e que se encontram em um vai-e-vem de extenso e desencontrado percurso, isso chamado pelos nativos de "larga-mar". Caminho nessa água vendo os pés navegarem pisando em um chão de areia dura e plana, desenhada em estrias paralelas ondulantes, ao lado uma da outra em uma distância de cinco centímetros. Há um "caminhar sobre as águas" neste meu momento, penso ao ver outros três vultos de mulher fazendo a mesma coisa que eu. Ao longe, mas bem perto da rebentação, três pequenos barcos de pescador estão iluminados enquanto seus homens descansam, comem e terminam seu dia esperando um amanhecer para seus arrastões de redes onde tudo o que estiver nadando cai: não é tempo de pesca dos grandes cardumes de tainha ainda, eles pegam qualquer arraia ou papa-terra que se atravessar em seu caminho. Caminho nas águas do larga-mar pensando em como posso deixar claro ao mundo a capacidade minha de falar em nome de Deus: até os ateus costumam proibir e desautorizar essa fala, quando dizem que Deus é uma invenção de quem não sabe nada sobre o que está falando, que a fé é um fingimento sobre coisas das quais você não sabe. Somando fileiras, outros tantos cultos e igrejas monoteístas afirmam ser essa palavra um nome com rígidos limites de significados: ele só pode ser dito ou pensado da maneira como está descrito em milenares livros sagrados.

No entanto, Deus é uma das poucas palavras que carrega, em primeiro lugar, a lei maior de poder ser pronunciada por qualquer um, em qualquer lugar, seja em que situação for. É uma palavra de uso público e irrestrito, sempre dita sob a posse absoluta de quem a pronuncia. Não obstante as severas proibições dos ateus e crentes das grandes religiões, Deus e palavra dita e pensada da maneira singular de cada vivente em um uso pleno de validade e eficácia jurídica. Então, há um "caminhar sobre as águas", não apenas metafórico, quando quatro vultos de mulheres deslizam no larga-mar da praia das cassarinas negras, banhadas pela luz neon do início de uma noite de verão. Não é metafórico porque ao menos uma dessas mulheres se sente, naquele momento, não só capaz de falar com Deus, mas livre para contar ao mundo os efeitos de uma comunicação sincera e potente.

Sinceramente, só posso falar com Zeferina, uma pequena deusa menor e pessoal, que, em sendo uma deusa, habita o universo no qual os deuses existem e compõem um todo visto pelos  monoteístas  como uma coisa só, ainda tendo por veículo de aparecimento aos humanos a figura de um único homem profeta, seja lá o nome que esse profeta recebe, aqui ou lá. Assim, deixo à Zeferina a árdua tarefa de se entender e se mover no mundo divino, no espaço do Sagrado, facilitando e muito as coisas para mim, que tenho Zeferina vertendo em fractais de um passado que me é próprio, privado, particular; um devir que está compondo minhas entranhas, ossos e sentidos, esses que caminham nas águas do larga-mar de uma baía de pescadores brasileiros, na luz neon do início de uma noite de verão.


Volto à casa contente com o início do assunto, sabendo que o próximo passo é deixar explícito o que sei do Sagrado e dos fractais; volto sabendo que, se não convencer ninguém de meu direito e capacidade para falar em nome de Deus, terá sido apenas um fracasso meu e de Zeferina, uma deusa menor, e essa fala continuará um devir privado, como todas as falas que oram agora, neste instante, em qualquer canto do mundo. Boa noite, Zeferina.