Querida Zê,
Essa carta vai sair meio Henry
James em A volta do parafuso, ou
então Mary Shelley e seu Frankenstein. É
isso, para falar a verdade, estou agora a descrever um enredo sinistro ou uma
monstruosidade. Preciso fazer isso. Há uma falsa calmaria, o medo cega, paralisa. Em
geral os autores falam sobre a injustiça dos sofrimentos impingidos aos
subordinados, sobre os modos de revolta, sobre a natureza econômica da relação,
sobre aspectos menores jurídicos e culturais da situação vivida como realidade
cotidiana. Falam como quem olha para um objeto exterior a um observador
tranquilo. Não falam sobre uma totalidade, lavam as mãos como Pilatos. Tem gente da esquerda falando calmamente, como se uma greve geral fosse só questão de decidir: "bom, vou entrar em greve", como se fôssemos gregos capturáveis pelo dinheiro alemão. Já eu, assustada, quero
falar sobre o dilaceramento interno num humano conduzido à escravidão em
caráter definitivo. Quero falar a partir da dor que sinto. Nunca li sobre como
nasce um escravo assim como se lesse um diário. Vou resumir porque tudo nas minhas cartas demanda uma
sequência bem mais alargada, coisa que deixo para depois. Até porque dói,
muito, e estou para escrever isso aqui faz mais de mês. Estou exausta, para
falar a verdade. Não só porque o assunto dói, como também porque é um assunto
quente no Brasil de 2017, no momento em que estão impondo leis ameaçadoras para
todos os trabalhadores subordinados, principalmente os que fazem trabalhos
repetitivos e têm pouca capacidade de negociação individual ou coletiva.
O escravo nasce em um adulto
capturado e exposto como um sujeito nu. Ele nasce quando o sequestro fica claro
como definitivo, quando ele entende que perdeu – para sempre - a identidade, o
território, qualquer poder sobre o próprio corpo. A desonra é o maior problema
do escravo recém-nascido. O escravo que nasce de um escravo já não é mais tão
escravo, porque ele já nasce em ambiente de luta abolicionista; nasce como um
filho de guerreiro, mesmo sendo o mais emudecido cativo da senzala. O escravo, em seu nascimento como tal, aparece em um
sujeito sequestrado e humilhado, um refugiado sem qualquer território seu, um
cativo, que foi um sujeito com cidade e nome até antes do sequestro. Então, o
maior problema do escravo, na inauguração do fenômeno, é justamente sua vergonha de sua
nudez, de sua derrota, de seu abandono. "Como me deixei aprisionar? Como
deixei que todos os que estavam comigo se perdessem de mim?”, são as angústias
do escravo nu e revelado a si próprio como tal. Vai demorar um tempo até que
ele se permita estar nu e sem nome, entenda a sua condição praticamente "pornográfica"
e se acalme. A nudez em público não é só
a ausência de vestes, ela é a ausência de nome próprio com dignidade perante os
outros. Os carteiros prestes a serem demitidos em março de 2017, no
Brasil, devem estar se sentindo, Zeferina, como se seus nomes não valessem nada para quem
decide sobre a vida deles. Eles são sacrificáveis,
como falou Giorgio Agamben no livro Homo
Sacer, e seus nomes não importam mais, assim como suas vestes. Eles estão
nus.
Então, um escravo nascendo não é
uma pessoa aprisionada subitamente, sequestrada e apavorada. Isso é um
prisioneiro. Também não é um filho de escravo acostumado a sê-lo, por exemplo, filho
de uma ama de leite em uma casa grande no Brasil colonial, uma criança nascida
em um ambiente de enredos emocionais estáveis, habituais. Um homem que
desembarca de um navio negreiro em uma época em que já se sabe bem o que são
essas embarcações, já se foge delas na África e, ao chegar ao Brasil, 1730
vamos supor, ele entra em um enredo que aparece cheio de entendimentos claros e
acomodações. Um africano chegado nesse cenário verá um mundo, uma sociedade.
Verá nos olhos dos outros escravos a evidência de que ali há um modo de vida,
ainda que difícil de viver. Cenários
possíveis e roupas correspondentes, nomes. Nesse caso, a condição de escravo
está lá, mas também está lá a resistência –mesmo difusa e sem exército - e o
recém-chegado mergulha nesse enredo tentado entender o ambiente, ajustar-se a
ele adaptando-se às regras visíveis desde o início. A escravização de uma população inteira, toda
ela colocada sob a condição de “sem nomes e sem cidade” começa em uma
violência desmedida, com muitas mortes e enlouquecimentos, mas inaugura para os
sobreviventes um acontecimento que eu vou chamar de abolicionismo, para, desde já, estabelecer uma comunicação de
memória entre o que podemos fazer agora e o que conseguiram fazer os escravos
brasileiros desde 1550 até 1888, quando os donos do poder, neste país,
precisaram inventar uma saída no sentido jurídico de liberdade formal. Então
foram mais de trezentos anos de luta, mas construindo um caminho de vitórias
parciais e progressivas. Podemos aprender com eles.
Eu quero falar sobre o sujeito
que se entende por livre, integrado a uma vida em comunidade, e é aprisionado
em uma situação desconhecida e inaugural, para ele e para todos a sua volta.
Então, tenho que falar sobre o que Franco Berardi informa acerca de um
crescimento assustador dos suicídios entre os jovens homens de 18 a 34 anos, no
mundo, “sendo a depressão – patologia emocional mais presente no comportamento
suicida – identificada como a segunda forma de incapacidade mais recorrente no
planeta, até 2020”. Quero falar sobre os jovens nerds da base eleitoral do
Trump, um agrupamento niilista que faz o elogio da rejeição às mulheres e se
diverte com a própria identidade de “fracassados”, segundo li na Folha de São
Paulo de 19 de março de 2017. Quero falar de quando as memórias coletivas e
individuais se esvaem de dentro de um corpo humano e ele se transforma em um
outro animal, durante um tempo sem saber quem virá a ser no final de uma
metamorfose dilacerante, macabra. Penso em todos os que dançam essas músicas
estúpidas de ritmos anestesiantes e depois imitam as propagandas das televisões
e morrem e matam em ultrapassagens suicidas nas estradas brasileiras. Penso no
enjoativo excesso de bundas expostas em imagens repetidas e no aumento evidente
da solidão nas grandes cidades. Todos esses estão ficando nus, perdendo seus
nomes próprios como símbolos que importam.
O escravo aparece
como tal no momento em que se entrega emocional e cognitivamente ao
encarceramento definitivo. O Harari, que tem quarenta anos e é professor na
universidade Hebraica de Jerusalém, nascido em Israel, conta, em seu último
grande best seller, Homo Deus, a
tortura cometida contra ratos que boiam em um tubo de ensaio:
“Por exemplo, as companhias farmacêuticas
usam rotineiramente ratos como objetos experimentais no desenvolvimento de
antidepressivos. De acordo com um protocolo amplamente utilizado, pegam-se cem
ratos (em nome da fidedignidade estatística) e põe-se cada um deles em um tubo
de vidro cheio d’água. Os ratos esforçam-se incessantemente para escalar a
parede do tubo, sem sucesso. Depois de quinze minutos, a maioria para de se
movimentar. Eles apenas flutuam no tubo, apáticos ao seu entorno. Pegam-se
então outros cem ratos, que são jogados nos tubos, mas são puxados para fora
depois de catorze minutos, pouco antes de estarem prestes a entrar em
desespero. Na sequência, eles são secos, alimentados e lhes é concedido um
breve descanso – e então são jogados no tubo novamente. Na segunda vez, a
maioria dos ratos luta durante vinte minutos antes de entregar os pontos. Por
que esses seis minutos a mais? Porque a memória do sucesso obtido desencadeia a
liberação de algumas substâncias bioquímicas no cérebro que lhes dá esperança e
adia o advento do desespero”.
Está na página 130, do Homo Deus. Eu fiquei imaginando que o
rato, quando para e fica boiando, poderá ser tirado dali e, em um certo tempo
necessário para superar o trauma, sair correndo atrás de um canto seguro, uma
toca, uma moita no meio da mata, se lhe fosse possível fugir. Seria um luto
traumático do rato, ele ficaria para sempre um rato paranoico, mas conseguiria
uma retomada, cheia de adrenalina, de um chance de vida a mais. Fico pensando
que esses pesquisadores devem ter tentado estudar o quanto essa memória de
crença na vida digna pode ser resgatada pelo rato e em quanto tempo ele cai
definitivamente numa deriva deprimida, para sempre. Um rato morto vivo ou um
rato autista, manifestando sentimentos em frequências gravadas em repetições não mais no padrão inteligível da sua espécie.
Eles devem ter feito essa parte da
experiência, mas o Harari não inclui, em seu livro essa situação. No livro Homo Deus, esse jovem phD. em Oxford,
está tentando mostrar a crueldade do animal da espécie homo sapiens, abrindo
espaço para que o discurso sobre a ética da tradição moderna seja sentido pelos
leitores como falácia, invenção delirante. Mas essa narrativa sobre a crueldade
só poderá ir até o ponto em que fica mantida a comparação entre a frieza do
pesquisador e o sofrimento do pequeno branquinho peludo. Quando essa comparação
se estende para o significado do tempo de sofrimento e da condição apática em
situação de sobrevida do rato, aí perde o sentido – no livro cheio de
algoritmos – porque irá despertar o conhecimento que todo o leitor mestiço,
negro ou indígena poderá trazer da memória coletiva sobre a escravidão, o
encarceramento definitivo dentro de um corpo sem direito algum, dependendo de
favores até para comer e caminhar.
Quanto tempo deve ter demorado
para que os cem ratinhos brancos se
tornassem apáticos em definitivo? Para o resto de suas vidas, não importando a
beleza e gostosura de alimentos e gramados e matinhos oferecidos pós-trauma?
Imagino os cientistas colocando séries de ratinhos, em grupos de cem, dia após
dia, e esticando o tempo dos naufragados dentro dos tubos de ensaio e depois os
retirando e oferecendo boa condição de vida até eles se recuperarem. Fazendo
isso com várias séries de ratos, alongando mais e mais o tempo, fazendo séries
diárias durante meses, até que se realize a mágica: pronto, aqui está a
situação emocional de um escravo com banzo, pensaria um estudioso do escravismo colonial
brasileiro. Ou pensaria um estudioso sobre a formação deste
neo-escravismo tecnológico do século vinte e um. Não podemos saber como se
sentiram os primeiros africanos sequestrados para o Brasil em navios
atravessando o Atlântico, né, Zeferina? Não temos as narrativas dessa pesquisa
que começou nos primeiros navios negreiros, quando chegavam quase todos mortos,
poucos sobreviventes da travessia no oceano Atlântico, empilhados em um porão
úmido de navio, doentes, pestilentos, imundos, desesperados dias a fio.
Chegando aqui, eram apartados uns dos outros, vendidos e jogados em senzalas
com outros africanos estranhos, de falas estranhas, ninguém se entendendo. Ganhavam
a denominação de negros boçais, a
palavra significando, até hoje, o sujeito que não entende nada do que se passa
a seu redor. Quanto tempo e quantas vezes de travessia para os traficantes
entenderem que estavam a perder tempo e dinheiro, dado o elevado número de
mortos? Quando os navios começaram a
utilizar espaço para colocar redes, para armazenar fezes e separá-las dos
prisioneiros, para fazer algum tipo de higiene, alguma água do mar para
lavarem-se; quando começaram a usar redes para dormirem os mais velhos, as
mulheres, os adoecidos de medo e melancolia? Teria sido, esta experiência com negros sequestrados em 1540, no sentido
contrário ao dos testes com ratos da indústria química de 2010: reduzia-se aos
poucos o tempo e a intensidade de sofrimento dos africanos para alcançar o
nível mínimo de dignidade e aptidão para o trabalho nas grandes plantações de
cana-de-açúcar no Brasil. Isso porque o banzo,
a desistência da vida, era uma doença
frequente entre os primeiros negros sequestrados nos tempos
coloniais. Mas o Harari fala quase
invisivelmente em maus tratos entre humanos, o assunto abrigando poucos parágrafos
do livro em cenários de confrontos entre nações antigas, como se todo o
conjunto da espécie homo sapiens fosse ignóbil, ignorante e má. Nada de luta de
classes, extração de mais-valia, nada de maldade dos perversos que por serem
cruéis sempre se tornaram as classes dominantes, nada desse tipo de pensamento.
Pelo contrário, Harari afirma, sem necessidade de explicações detalhadas, que o
comunismo foi uma religião estúpida semelhante ao nazismo e o capitalismo é a
própria essência do que seja o gênero humano. O livro do professor israelense,
lançado em 2015 com o subtítulo de “Uma breve história do amanhã”, propõe a
hipótese de ser toda a espécie sapiens essencialmente violenta, perversa e,
sobretudo, estúpida e que poderia estar fadada ao desaparecimento.
Ele não conta detalhes sobre esse
pedaço das pesquisas feitas pelas indústrias farmacêuticas durante pelo menos o
final do século vinte e o início do vinte e um, em ratos, sobre a depressão e
seus limites diante da vida, mas podemos supor que os pesquisadores devem ter estudado
o momento em que a apatia da depressão se torna um acontecimento permanente no
roedor, e do quanto a administração de químicas pode fazer retornar nele alguma
capacidade de agir, ainda que em uma dinâmica autista. Essas pesquisas eram
feitas para a descoberta de hormônios que poderiam compor a fórmula de
antidepressivos a serem administrados em seres humanos. Remédios que se
tornaram tão comuns, na segunda década do século vinte e um, quanto as
aspirinas, quase todos os adultos trabalhadores tomando algum, durante alguns
meses ou anos, muitos a vida inteira. Muitos destes encontrando um modo apático
de levar a vida adiante, um fracasso estável. Talvez o Trump seja um dos primeiros acontecimentos a provocar a impressão de que as estratégias de gerências do Capital cognitivo não estejam dando resultados esperados ou, ao menos, seguros para os gerentes.
A nudez de um escravo não depende
da roupa que veste, ou do nome que usa, ela se realiza na perda de uma memória
coletiva de pertencimento a uma cidade, a uma etnia concreta, não essas etnias
de embalagens, de modelos fazendo propagandas de televisão com aparências de “o
negro”, “o ruivo”, “o japonês”, todos jovens lindos, magros e saudáveis, modelos
inseridos em um mundo de bricolagens sem passado. A nudez que nasce em uma população
escravizada é, portanto, a destruição das memórias coletivas anteriores ao
sequestro de todos, anteriores à imersão de todos em um território estrangeiro e
hostil. Só sobrevivem os que lembram, os
que recordam por meio de músicas, de rezas, de danças, as lendas e os
ensinamentos de seus antepassados. Talvez – apenas talvez, como falou o Jacques
Derrida – o apego ao nome Lula, e à
ideia Lulalá, se explique como uma
razão coletiva de defesa de memória, a lembrança de um tempo em que a esperança
de nomes próprios dignos e cidades de pertencimentos eram nossas bagagens,
roupas e territórios simbólicos. Bom
dia, Zeferina.
versão dois - foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti, loja em Havana
versão dois - foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti, loja em Havana
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