Querida Zeferina - carta oito - estupro e cultura

               



                                      Querida tataravó,


                              Decidi acomodar uma série de cartas sinceras e irreverentes em um arquivo privado, para serem publicadas quando o que vivemos agora, no Brasil, tenha se tornado história, quando estivermos mortos, a maioria de nós.  Elas não têm nada demais, apenas registram uma mágoa que era legítima até dois mil e quinze, mas agora não existe mais, pois fomos tomados todos, nós os subordinados aos que mandam nesse país, por uma condição de refugiados que nos apavora e nos põe em guarda, desolados e combatentes. Mas ainda retornarei ao assunto das mágoas, sempre legítimas, sempre necessário o direito de serem faladas e entendidas.
                                    Nessa carta aqui, também iniciada em 2012, o assunto era uma cena de estupro que eu não vi,  mas ouvi. Estava eu falando a você sobre a Simone de Beauvoir e o Fernando Henrique Cardoso em suas teses sobre a condição de coisa no agir da espécie humana. Lembro agora de Paul Veyne, no História da Vida Privada, quando ele diz ser o escravismo um objeto de estudo mutante, que não se deixa apreender inteiramente nunca, isto é, a cada vez que tentamos entender uma situação de indivíduos ou coletividades escravizadas notamos que há conteúdos ou formatos que escapam ao nosso entendimento. São híbridos. Lembro também de um brasileiro chamado Ricardo Benzaquen de Araújo que definiu um conceito (um enredo conceitual) sobre o território simbólico e emocional no qual acontece a situação de escravidão. Ele descreveu como uma situação onde violência e confraternização se realizam juntas, imbricadas, sem que haja propriamente um confronto, uma antítese e uma consequente síntese. A situação do escravo e do dono é um lugar onde não há negociação entre contraditórios, há um enredo mole, líquido, polimórfico e perverso. Uma perversidade que começa na maldade, mas cansa e acaba se estendendo para formas sadomasoquistas ambíguas, perenes, equilibradas. Daí Ricardo buscar em Gilberto Freyre, outro brasileiro pensador da década de trinta do século vinte, a ideia de equilíbrio híbrido e estável.
                                    Esta carta trazia um relato de uma cena muito incômoda testemunhada por mim, lá por 2009 em Imbituba, Santa Catarina, Brasil. “No início de minha vida no exílio que escolhi, pois fugi de Porto Alegre, como já contei, não sabia dirigir carros, ainda, embora já estivesse com quase cinquenta anos, por essa razão aluguei uma casa perto do trabalho, longe da praia onde moro agora. Na casa ao lado havia um jovem aparentando uns 28 anos e uma mulher mais jovem ainda que o visitava nos fins-de-semana. Eles faziam sexo umas duas vezes por dia, durante os dois dias de sábado e domingo, e ela gritava, desesperada, pedindo para ele parar: "Chega! Chega”! Gritava como se fosse esfaqueada, torturada. Depois ela soltava risadas nervosas e debochadas. Na primeira vez entrei em alerta máximo e pensei em chamar a polícia, socorrê-la, salvá-la; depois vieram as risadas e entendi ser aquilo um ritual estranho. O pescador que alugava o andar de baixo de sua casa para mim, estivador aposentado, disse ser uma cena habitual, parecendo um estupro mas sendo apenas um jeito ruidoso e maluco de fazer sexo. Naquele dia, eu imaginei que ela estivesse sofrendo uma penetração anal violenta, dolorida; gritava pedindo para que ele parasse, gritava sem parar. A meu ver ela sofre de alguma maneira, é incômodo e a deixa esgotada, abusada, sofrida. Imaginei uma cena onde a mulher está à mercê de sofrer uma violência insuportável, mas essa violência acontece de um modo mitigado. Parece então estar a mocinha magra e branca atuando para dar limite a seu parceiro, acelerar a ejaculação e reduzir o risco de ser machucada, ela grita por achar que é assim que se deve fazer, representar, existir como fêmea no mundo do encontro sexual. Ela aprendeu a fazer sexo dessa maneira. É uma cultura que preserva a idéia de sexo violento, no qual a mulher padece de dores na vagina e no ânus. Sangramentos, deformações. Muitas prostitutas provavelmente comportam-se assim e mulheres casadas, fiéis e cristãs praticantes, também. Mas todos estamos cansados - sobretudo cansadas - de saber que o pênis dos homens comuns está longe de ter tanta potência de invasão e desejo de maus tratos como esses gritos descrevem, em se tratando de uma mulher adulta e experiente. Creio que, até onde eu vivi, a maioria dos homens tende a machucar o parceiro penetrado, vez ou outra, mas mais por imperícia e ignorância do que por uma perseverante maldade. Essa falta de competência do parceiro que penetra ocorre até mesmo em relações entre lésbicas, porque até ali predomina a intuição humana de que o sexo deve mover-se por meio de uma virilidade inconsequente, insensível ao sentimento e ao corpo alheio. E é intuição porque brota de um entendimento anterior à linguagem, ao pensamento; sentida como inata, natural, orgânica. O que esse ato sexual da menina branca e do guri de vinte e oito anos(ato no sentido de teatro) faz é recordar o estupro de crianças ou pessoas muito jovens por adultos transtornados, ou a violência de um coito anal  consentido porém descuidado. É um código, uma linguagem, uma memória. E, ainda, as risadas nervosas e debochadas acabam por dar a impressão de ser uma memória traumática, como poderia ser a de uma menina rotineiramente abusada pelo padrasto, pelo irmão ou tio, ou mesmo o próprio pai. Mas por que me ocorre tudo isso? Por que eu conheço esse imaginário, essa intuição? Acho que ela é um tabu, uma presença demonstrada desde o berço do bebê, mas não falada, não pensada. Uma tradição arquetípica presente nas cartas do tarô, na bíblia, no alcorão, nas rezas em todos os cantos do mundo humano há setenta milhões de anos”.
                                               Mas o que é o viril, Zeferina? Lembro-me agora de uma vez, no trabalho em Porto Alegre, quando rimos tão divertidas e aconchegadas, nós, as jovens operárias do judiciário trabalhista brasileiro. Foi lá por mil novecentos e oitenta e nove, pouco menos ou mais, quando éramos ingenuamente políticos todos nós. Foi outra cena. Uma de nós estava lendo um processo e falou, em voz alta, para ser ouvida e respondida: “mas o que é o varão”? Isso porque em processos judiciais é preciso saber exatamente o conteúdo jurídico implicado no termo para tentar evitar erros de interpretação. A moça que perguntou queria saber o exato sentido da palavra, ali naquele contexto. Foi quando assomou, em uma cena mágica, um belíssimo homem adulto no balcão, lindo mesmo, forte, belo, jovial, energizado. Eu diria agora, em 2017, já velha, um belíssimo exemplo de acontecimento viril. No segundo seguinte à pergunta o sujeito mostrou-se e disse: “É o marido!”. E nós quedamos embevecidas, entre risadinhas disponíveis ao sexo bom. Ele riu, foi atendido e foi embora. Voltamos a trabalhar, na época, tranquilas, porque em oitenta o local de trabalho, comparado com o de hoje, era muito bom. Penso agora que a mesma intuição onde o ativo sexual tem a prerrogativa – e talvez a função – de atacar e machucar tem, no interior de suas composições simbólicas e emocionais, a noção de proteção, prazer e segurança para o subordinado.
                                              Dizia eu na carta posta aqui, em 2012, “As práticas sexuais da humanidade estão longe de serem efetivamente viris, no sentido de levarem as mulheres e homens penetrados a maravilhosos orgasmos ou, ao menos, a um intenso prazer. No sentido de viril como aquele responsável por garantir a segurança, a tranquilidade, a conveniência e perfeição do ato sexual feito por um sujeito inteligente, capaz de seduzir e convencer com a palavra e o gesto sutil. As tentativas do movimento feminista para divulgar a reflexão sobre o tema foram pouco difundidas e durante muito pouco tempo; logo depois do feminismo ser combatido, no Brasil, pelo próprio sindicalismo nascente após a ditadura militar e pelo pensamento autoritário comum, surgiram as delegacias de mulheres, as organizações não governamentais, as leis de proteção ao idoso, à mulher, aos negros e às crianças, fazendo com que a preocupação contra a violência e o abuso ganhasse o foco da filantropia, do controle do excesso, do combate ao espancamento, ao assassinato, ao encarceramento privado e ilegal. No entanto, as feministas das décadas de 1970 e 80 propunham a reflexão sobre todos os aspectos, até os mais sutis, da violência embutida no erótico e no sexual, dentro da tradição cultural. As primeiras feministas da luta contra a ditadura queriam discutir o prazer conjunto entre os parceiros humanos. Em  2012, o sexo que aparece e é falado nas grandes mídias não existe, na realidade cansada e assustada a imensa maioria; o avanço do empoderamento das mulheres é um discurso voltado para o consumo individual, imerso na fragilidade. O imaginário do estupro é mais forte do que as modernas regras civilizadas porque talvez ele esteja relacionado com o conjunto do mundo e da história humana, o mundo do trabalho, da escravização. Ficam duas perguntas: a violência tem mais potência de realizar e manter memória, na espécie humana atual, do que a confraternização, solidariedade e delicadeza? O campo mórfico das atitudes violentas tem mais ressonância desde sempre, nos humanos, do que o campo mórfico da solidariedade”? Eram estas as perguntas da carta posta aqui.
                                               Hoje, retomando aquela carta, Zeferina, eu me pergunto como é possível termos um país devastado pelo medo e o aumento explosivo da violência urbana e, ainda assim, sendo cenário de sorridentes e belas mulheres falando nas televisões sobre direitos das mulheres e injustiça dos homens. Elas usam saltos muito altos, às vezes muito finos, ou muito grossos, roupas inventadas como se fossem fantasias de carnaval, ou outras que se parecem um pouco –ainda que apenas insinuem – com aquelas roupas da nobreza europeia dos reis e rainhas do século dezoito, antes da revolução francesa. Algumas delas brincam de intimidades femininas, risonhas e despreocupadas, em frente às telas das tevês. E nós aqui, chorando, sofrendo, apanhando nas ruas. Homens e mulheres perdendo empregos, salários devidos e não pagos, perdendo postos de saúde, remédios e escolas, perdendo frágeis casinhas erguidas com sofreguidão. Isso tudo traz a minha memória aquela antiga frase do Paul Veyne, quando ele diz ser o escravismo um cenário mutante e terrivelmente resistente. Ou Ricardo Benzaquen, afirmando ser a perversidade escravista híbrida e estável. Só um sujeito escravista pode divertir-se pujantemente enquanto o outro, objeto de seu domínio, tem medo, sofre e chora. E somente um escravo consegue acionar uma cena na qual ele teatraliza a inversão de um domínio, inversão possibilitada pelo excesso, o vício e a insensatez do mandante.  A escravidão é uma fórmula, um enredo, próprio da história e não da bioquímica do macho e da fêmea, penso eu. Há quem pense exatamente o contrário e defenda o desmanchamento dessas constituições físicas da mulher e do homem, milenares, para dar lugar a invenções bioquímicas. Estes se pensam como sendo os melhores humanos, os que pensam melhor, os inventores. E eles estão no poder.


versão dois. 
                                                                                                     





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