Querida Zeferina - carta três - neonazistas

           

 Querida Zeferina,

                                     Estou morta. Achei uma francesa que mora aqui e fomos caminhar até a praia vermelha, ir e voltar somando mais de dez quilômetros. Estava o mar uma água azul de tão transparente. Um paraíso. Cheguei passando mal do intestino por causa da úlcera e entrei correndo. A mulher caminha muito, a francesa. Aqui era uma carta escrita em 2012, e eu já preocupada em entender os nazismos que nascem e ninguém nota, crescem e meia dúzia se assusta, tenta avisar, mas ninguém entende. Depois todo mundo se apavora, ohhh, mas daí é só um enorme esforço para juntar os cacos, as sobras, os restos humanos de uma experiência sem volta. Dizia eu, em 2012: “Os neonazistas são as pessoas contaminadas por uma espécie de instinto de morte, predominante nelas, que as faz ficar como aqueles personagens de filmes de terror, invadidos pelo mal. Elas parecem normais, se comportam como seres felizes e resolvidos e são intensamente destrutivas, velozes, vorazes, perversas e dissimuladas”.  
                           Escrevia eu, em 2012, que Porto Alegre havia sido invadida por essas contaminações, desde meados de 1993. Por que lembrei dessa data? Foi o último ano, se bem me lembro, que tirei férias de um mês inteirinho. Dali em diante, foram sempre de dez em dez dias. Acho que logo após a promulgação da nova Constituição de 1988 tive a impressão que todo mundo correu para se atirar em uma cadeira, como naquela dança das cadeiras, como se todos soubessem que havia, ainda, mesmo com uma bela “constituição cidadã”, havia poucas cadeiras e muitos ficariam sem ter onde sentar. O nazismo começa nesse silêncio de quando todos sabem que muitos vão se dar mal se “chuparem bala”. Essa é uma figura de linguagem interessante. Chupar bala seria estar em um estado contemplativo, desarmado, muitas vezes uma criança brasileira. Aqui sempre se deu balinhas para as crianças e temos até um dia, o dia de Cosme e Damião, no qual há a tradição de distribuir balas para os pequenos. Então, quem não chupa bala está pronto para atacar, para a guerra. Ali, na tentativa de pegar a onda nova, na ânsia de estar entre os primeiros que conseguem ver o tempo curto, exíguo, já começaram a circular hordas de bárbaros às margens do rio. O Guaíba já estava impróprio nesta época, mas ainda não tanto. O enorme rio – aprendemos que era um estuário sem saber o que era isso - já sujo quando uma vez a gente o abraçou. Juntamos uma multidão e colocamos todos lado a lado nas margens do rio. Quando eu era pequena tomei banho nele, o Guaíba.   
                         O pessoal que não chupa bala acabou se associando à ascensão dos adeptos da inevitabilidade do domínio absoluto de todos os espaços pela nova tecnologia; ascensão deles no mundo inteiro, no país, nos centros urbanos já desordenados, nos quais as árvores e os rios eram enfeites, não importando o conteúdo do rio ou a longevidade de cada tronco passível de ser cortado para dar passagem a um novo viaduto. A miséria era normal, respeitada pelas políticas de contenção, aceita por todos como um fenômeno perene, inextinguível. O pessoal que não chupa bala pouco se importando com a inevitável destruição das memórias de cada um: viva a revolução das imagens e das condutas! Invadia a Porto Alegre, já no início da década de noventa, um mecanismo de expansão daquela espécie de instinto de morte.Talvez esse início de um novo acontecimento dentro do fractal “nazismo” abrigasse um fundo filosófico presente em grande parte dos seres humanos que é o da intuição acerca de um deus computador programando todas as formas e as coisas no cosmos. Decorre, dentro disso, que tudo o que surge e se impõe é obra divina e não há como evitar. O que mais se ouvia, na década de noventa em Porto Alegre é: “a transformação tecnológica de todo os cenários da vida cotidiana é irreversível”.
                                                Fomos educados para ver o nazismo como a perversidade mais cruel da extremada loucura coletiva, um adoecimento psicológico de toda uma sociedade, tanto os que o defenderam quanto os que dele tiveram tanto medo a ponto de silenciar quando ele nascia. Engraçado como todos temos uma intuição que sabe ver o nazismo quando ele aparece e sabe nos colocar sem reação e assustados. Aquele nazismo alemão surgiu com o brilho dessa crença na irreversibilidade das forças mais potentes. Depois eles tornaram-se os campos de concentração da Alemanha durante o poder de Adolf Hitler, ficamos sabendo muitas e muitas vezes, no final do século vinte, em filmes, documentários, entrevistas, livros, palestras, cursos em universidades. Tinha sido o “holocausto” e tinha sido reversível, ao menos no que tange a sua interrupção. Eu mesma aprendi sobre aquele sofrimento todo sei lá quando, certamente muito antes de entrar para a universidade em 1977. Aprendia-se todo ano, várias vezes, em lugares diferentes. Posso afirmar que devo ter aprendido simultaneamente sobre os indígenas brasileiros e sobre os negros escravizados e essas duas populações sofridas em território do meu país não me impressionavam como o tal holocausto. A escravidão teria sido então uma burrice bruta e má motivada por uma espécie de ignorância primitiva, como se os dois lados envolvidos, os africanos sequestrados e os portugueses sequestradores fossem os dois lados de uma engrenagem precária porque selvagem, ambos ignorantes de soluções mais civilizadas. O holocausto era contado como muito mais assustador porque revelava um enlouquecimento de toda uma população a produzir as torturas mais aterrorizantes em sistemas de produção industrial de sofrimentos humanos indescritíveis, como escreveu Primo Levi. Indescritíveis porque todos os sobreviventes teriam sido forçados a colaborar em troca de comida ou de não serem mortos. Víamos o pelourinho, os troncos, os negros sangrando nos desenhos de história; víamos ferros usados para tortura nas senzalas brasileiras e achávamos tudo aquilo uma burrice de precariedades pré-históricas, como se agora fôssemos uma outra espécie muito mais decente, exceto por esse risco do nazismo, sobre o qual éramos alertados sistematicamente. Mas, ao ver os negros sangrando nos troncos e os feitores erguendo enormes chicotes, não tínhamos medo, aqui era só um passado sobre o qual não tínhamos qualquer responsabilidade. Mais que isso, aquilo não era um perigo retornável, como era o nazismo. O holocausto então era um vírus que poderia voltar e o escravismo não, a escravidão ficava em um passado de um modo irreversível.
                                Mas esse pessoal que não chupa bala sabe que os terrores de época sempre se dizem irreversíveis, depois desaparecem para retornar com novas inevitabilidades. São ondas. Essa história de holocausto foi inventada como uma vacina, mas vacinas só funcionam para os vírus que as geraram. Escrevi, em 2008, sobre um candidato gaúcho concorrendo a prefeito de uma cidade grande (não é Porto Alegre, não posso dizer qual é que me matam), em uma imagem junto a sua mulher, “parecem dois gordos, sem brilho, falsos, feios, iguais aos de sempre, políticos de carreira”. E ainda escrevi: “Foi uma vanguarda inteira que falou em revolução e fez carreira rumo ao poder. Todos ficaram mais feios do que os oprimidos comuns e menos intensos do que os dominadores de sempre. Eles ficaram falsos, mas não o “falso” em português, que soa como uma crítica moralista demais. Eles ficaram fakes, falsos como uma obra de arte reluzente e sem significado no qual se possa crer. Eles eram assim, a nossa república de Weimar. Os bandos fascistas estavam se formando, mas talvez também não evoluíssem muito. Tudo o que não fosse Casa Grande & Senzala, no Brasil, era fake”.
Agora você deve estar dando gaitadas, risadas de galpão, no túmulo, como dizem, Zeferina. Sei lá onde estaria esse túmulo. No ar, no céu, no mar, no rio. Acredito que você ri, às pencas, porque agora todos temem as revoltas nos presídios brasileiros. Porque eles, os que não chupam bala, não dizem, mas as rebeliões podem fazer parte de um acontecimento irreversível. Os escravos, depois alforriados vagabundos, ou pobres ou bandidos, deles nunca se disse terem vivido um holocausto. Sobre eles não se pensou nunca que teria se despejado um dos piores nazismos do mundo. E, agora, os que nunca chupam bala não sabem dizer ao certo de onde brota o acontecimento irreversível, se de Trump ou de Hollywood. Está mais divertido do que nunca, para vocês, mortos, porque ninguém mais sabe que gosto a bala tem.
                                                                                  
Versão dois - 2016. foto: Ivam Martins.formigas

2 comentários:

  1. isso me lembrou:
    1 - filme "O ovo da serpente", de Ingmar Bergman - cujo valor e significação permanece atual - ou seja, mudam os atores e o palco, mas a peça teatral permanece a mesma...
    2 - animação: "A Viagem de Chirriro" - ótimo sobre o aprisionamento chinês e os paradoxos capitalistas - estrelando Baba Yaga - personagem malvado e Russo - não tem só mangá, apesar de ter mangá, também.
    Tinha uma outra coisa, mas o Mica me anunciou sua ida ao banheiro, o telefone tocou, mandaram um torpedo, daí foi. Nao vou postar críticas Dinahzinha. Acho que as coisas que eu não gosto dos teus textos são como defeitos - só podem e devem ser ditos se invertem os valores do ser, a ponto de descaracterizá-lo como um saldo positivo e descente, e que vale a pena. Se não te importar com os links em mind maps, continuo postando. Se não gostas, pode falar, que não mais me reporto aos meus links.
    Ah, lembrei do 3.
    3 - Estes três textos me lembram o livro do Saramago "Ensaio sobre a Cegueira". Abraço. Continua escrevendo. Parabéns...

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  2. Não se preocupe, eu sou capaz de suportar críticas...rsrs..: as dolorosas talvez sem responder, coisa que aprendi com gente poderosa do momento, nas redes; as consistentes respondendo com paixão, coisa minha. Eu escrevo memórias, não teses para afirmar verdades. A legitimidade de meu texto esta no fato de ele ser meu e guardado para os meus descendentes. Não tenho pretensão de orientar os outros. O que é mind paps? Acho que eu gosto do modo com vc faz, ok?

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