Querida Zeferina - carta cinco - amor infinito





Querida Zeferina,

                         Desde o século passado queria ler o livro Werther, do Goethe. Um livro famoso na sua época. Ele contava a história de um moço que se matou. Era uma sequência de cartas do jovem Werther para não me lembro quem, um editor eu acho. Li recentemente. Era um amor doente, uma solidão tremenda. Esse livro provocou uma epidemia de suicídio em 1774. O suicídio é contagioso, parece. Muitas formas de violência são contagiosas, acho até que tudo é contagioso na espécie humana, mas a violência e o medo são mais. Pois nesse livro o autor, o Goethe, quis escrever bem e então mudava o vocativo inicial. Não quero fazer isso, estou triste. Não quero imitar ninguém, escrever bem – ou melhor do que simplesmente sei escrever escrevendo – ou tornar a leitura confortável. Sei que estão e estarão lendo, porque a única forma de falar contigo é jogar essa fala no mundo. Mas quero falar contigo e não com o mundo, esforço-me neste sentido. Então como te chamo pode ser algo semelhante à reza, ao mantra, àqueles começos de confissão, que afinal pareciam ser a parte mais sincera do evento. Ao menos pra mim, que só me confessei criança, querendo ir a algum lugar com roupa bonita de domingo, ver alguém, estar com gente em um lugar estranho e sedutor. Então tinha aquele “senhor, me perdoa porque pequei”, ou algo assim, não lembro. Depois vinha um envergonhado relato sobre copos quebrados e brigas com o irmão. Nada que importasse ao padre, em uma vida de criança tão disciplinada e sem graça. Isso era em 1966. O padre devia achar que crianças como eu era não sabiam nem mesmo o que significava pecar. Não consigo imaginar alguém indo lá e contando uma daquelas merdas enormes que acontecem na vida da gente adulta. Contamos para alguém considerado amigo de verdade. As piores merdas não contamos a ninguém.
Essa carta começou em 2012, como várias outras. “É sábado, sol e vento, e eu estou cansada de proibições. Sobretudo, sinto falta da crença de que nós, seres humanos, possamos nos incluir em um ambiente de sinceridade, fraternidade, leveza e paz. Há uma predominância, hoje em dia, de falas dirigidas à contenção preventiva de supostas atitudes inusitadas, antes mesmo que elas se anunciem, fazendo com que as atitudes agressivas inundem as relações, como fantasmas, desejos invisíveis, mudos e incomensuráveis. Há um afastamento do ato de crer em relação ao ato de pensar o que, sem dúvida, ergue deuses tirânicos metamorfoseados em razões científicas e deuses brutais refugiados na ausência do pensamento”. Não sei exatamente o que estava querendo dizer, mas sei que hoje, 2017, está muito pior.
                   Sou sobrevivente de uma doença antiga. Sobre ela existe até mesmo um mito grego, descrevendo uma mulher vagando em desespero inútil.  Creio ter sido um conjunto de sintomas compartilhado por gente que se matou ou morreu aterrorizada e imóvel em um canto de hospício. Agora temos os antidepressivos, pílulas aliviando e reduzindo aquela dor insuportável a um discreto comportamento permanentemente um tanto assustado, um pouco assustador de vez em quando. Mesmo depois dessa cicatriz em meu modo de sentir, e ainda que eu avise a todos ser uma pessoa com cicatrizes, volta e meia aparece alguém inadvertidamente querendo expor-me a medições de forças, angústias disfarçadas de otimismo, aprendizados estúpidos e sem sentido, velocidades desequilibrantes e desnecessárias e toda sorte de burrices consolidadas. Não quero falar com ninguém, só com Zeferina, só contigo.
Aconteceu uma coisa no Brasil, Zê, daquelas que não dá pra falar para o padre, naquela casinha dele, cheia de cortinas, penumbras, janelas protegidas com aramados de madeira. Uma coisa bem grande, que é quando ninguém fala mais nada sobre aquilo.  Essa carta aqui era pra dizer, em 2012, que os caras que mandam tinham inventado um modo de agir, no Brasil, no qual os gerentes, chefes e diretores falavam sorrindo, falavam sobre grandes novidades importantes e a gente - que achava ser apenas mais um modo de nos fazer sentir dores nas juntas e em todo o corpo, sentir medo e solidão - ficava com cara de assustado. E os gerentes continuavam sorrindo, como se a gente estivesse assustado por ser burro, louco ou idiota. Ou tudo isso junto. O bom dessa coisa grande que aconteceu agora, em 2017, é que agora todo mundo já ficou sabendo que não é louco, nem idiota. Talvez um pouco burro a gente continue a se achar. Somos desengonçados, para falar a verdade. Mas antes éramos individualmente incompetentes, inadequados, incômodos, desagradáveis, desnecessários. Agora estamos nos sentindo todos juntos, ao mesmo tempo mudos, dormindo e acordando pacientes, tementes. Eu não diria nem para o padre, mas isso não é algo que tenha desabado dos céus, de repente. Uma coisa que junta todo mundo num medo comum não pode aparecer do nada, a menos que seja um tsunami, uma bomba atômica. Mas daí não seria esse medo ordeiro, silencioso, normal, seria um desespero para ser socorrido, uma gritaria pedindo ajuda. Esse medo de hoje é muito interessante, Zeferina, ele precisa ser escondido dentro de cada um, mesmo que todos saibam, ao mesmo tempo, que ele está ali, em todos.
Na cidade grande, como Porto Alegre, ou na praia, onde moro, em todo lugar há este medo como um filtro, como aquelas pinturas das faces das mulheres, quando elas querem parecer estar com seus próprios rostos, mas estão com máscaras e todo mundo vê. Como quando as mulheres estão sobre saltos enormes e finos e fingem que andam em paz, enquanto aquilo dói ou avisa que vai doer. As modelos magérrimas nos desfiles andando sobre enormes saltos, como se estivessem caminhando livres. Uma verdadeira arte do disfarce: confesso que não confesso nada.   Medos com máscaras diferentes, conforme o lugar, mas todos sabendo ser o mesmo medo. Um enorme medo normal, inconfessável, sobre o qual esquecemos por não poder falar nem para um padre. E se alguém fala, nossa! Todos olham com cara de psiu! Cala a boca!     
               “O sino da igreja católica bateu às sete horas da manhã de domingo”, escrevi quando morava no centro de Imbituba, em 2009.  E segui nessa carta, naquela época, quando o medo era infinitamente menor e mais individual, “há sempre um recomeço, quando um grande coletivo humano mergulha na destruição; sempre brotam casais sobreviventes, das cinzas”. Por que escrevi “casais”? Talvez pelo sino da igreja, pelas ideias de dilúvio e arca de Noé. Mas não precisariam ser exatamente “casais”, poderia ser um “todo mundo” de algum lugar qualquer. Não poderiam ser casais em um navio, creio que só se fossem lugares inteiros onde todo mundo conseguisse se livrar desse medo comum, todo mundo junto. Mas se nem isso fosse possível, se esse medo fosse por causa de uma bomba atômica qualquer, então poderiam ser cartas, quem sabe. Cartas de um amor abandonado. Não o do jovem Werther, mas um que não pudesse morrer. Um amor gigante, sereno, infinito.

        Versão quatro       

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