Charlies Hebdo e a morte do Direito Moderno - versão dois


Foto: Arli Pacheco


                                        Celeridades e efetividades

                         As execuções dos membros do jornal Charlies Hebdo, no início de 2015, provocaram todo o tipo de protestos, no mundo inteiro, embora tenham, na verdade, erguido um ensurdecedor silêncio diante da magnitude do acontecimento. Estamos diante da agonia do Direito Internacional Moderno, construído por revoluções burguesas, no século XVIII, por revoluções socialistas, no século XX, por duas guerras chamadas de "grandes" e "mundiais", também no século XX e por diverso conflitos supostamente localizados durante os períodos referidos. Era um direito que ocultava sob um véu de legitimidade e racionalidade todas as torturas, genocídios, misérias, massacres e humilhações cotidianas dos mais fracos. Agora surge uma regularidade de um novo direito, inaugurado no 11 de setembro "americano", um direito baseado na lei de talião e na potência do mais bélico, do mais forte, que tende a se ancorar na guerra total contra o "estrangeiro", apoiada em uma imersão radical (no sentido exato de "ir às raízes") no território Sagrado, um lugar não atingido pelo conhecimento empírico e racional humano, tradicionalmente chamado de "ciência". O pensamento racional moderno está em cheque.
                        
                          O que nos deixa mergulhados no silêncio é exatamente essa característica icônica do evento no Charlies Hebdo: "o rei está nú", disse o tal "Estado Islâmico", a que até mesmo seus pares de outras organizações islâmicas se opuseram, elas ainda dispostas a acordos no campo do Direito Internacional Moderno. Com o anúncio da derrocada deste direito, anuncia-se, de forma associada e viral, a derrocada dos direitos nacionais, em cada Estado Nacional, no primeiro ou nos demais mundos do Norte e do Sul do Planeta Terra. E isso tem um vínculo inequívoco com as prisões de 65 ativistas na passeata contra o aumento da passagem de ônibus, em São Paulo, Brasil, em meio a divergências de informação sobre a presença de 5 mil ou 15 mil manifestantes. E, lamento dizer, tem um vínculo também com os assassinatos em escolas americanas, cometidos por psicóticos em surto e contra crianças e professores indefesos. Um vínculo com a expansão geral da violência doméstica e privada ou pública. O novo direito "natural" que se ergue é de tal modo eficiente, em meio à derrocada do mundo moderno, que ele retoma a simples e banal fórmula das guerras entre cidades da antiguidade ocidental: morte e escravização dos estrangeiros indefesos ou mais fracos, glória aos exércitos invasores. Bom dia, barbárie do século XXI.
               
                           Esse novo direito ainda não está se consolidando, como direito positivado, enunciado em leis e acordos internacionais, mas já vislumbramos suas possíveis escrituras em processos nacionais de reformulação dos judiciários e das doutrinas jurídicas, e nos fracassos de acordos "para inglês ver", como as convenções jamais respeitadas da OIT, acerca da dignidade e autonomia dos movimentos sindicais. Exemplos desse processo, no Brasil: a proposta de redução da maioridade penal e a perda de importância do tradicional "Princípio da Tutela", na Justiça do Trabalho, em favor de dois princípios inaugurados pela pós-modernidade da Era das terceirizações e das bandeiras liberais iluminadas pela nova tecnologia da informática, desde 1990: os assustadores "Princípio da Celeridade" e "Princípio da Efetividade".  Há, sim, uma enorme resposta da Resistência  geral, que une de um modo ainda imaturo formações humanistas e republicanas da tradição socialista do século XX e formações libertárias de diversos matizes. Mas as reformulações doutrinárias e de estruturas dos judiciários avançam, sem qualquer piedade para com as mazelas da população comum. Crescem os poderes de tribunais superiores, que passam a exercer uma espécie de sustentação das governabilidades fragilizadas, em países de tradição colonial, como o Brasil. Diminuem os poderes do judiciário de primeiras instâncias, aqueles lugares onde o direito poderia ser criado, mas que agora tende a ser imposto.
  
                           Há sempre a "turma do deixa disso", argumentando que tudo melhora a cada dia. Mas esse argumento é espalhado pelas grandes mídias, as mídias caras, para ser carregado ao vento diante de uma população cada vez mais adrenalizada. A pergunta, adequadamente paranoica, que segue é: qual a distância, no tempo, entre o direito que temos agora, ainda republicano, ainda iluminista, embora sem eficácia, e um direito cabível em padrões de uniformes diferentes, para gentes diferentes, com direitos diferentes, ao modo das distinções entre triângulos rosa, para gays, e estrelas amarelas, para judeus, na Alemanha Nazista? Se a doutrina migra, aceleradamente, para a redução dos espaços de eficácia dos direitos trabalhistas e de proteção do bem comum, como as cláusulas pétreas constitucionais, e para a ampliação dos espaços de atuação e eficácia do direito penal; se as penas aumentam e se multiplicam em setores específicos e inaugurais, e os presídios se expandem e sofisticam, atingindo espaços abertos de comunidades, como os processos de ocupação policial permanente nas periferias das grandes cidades, então a distância entre nós, iluministas e ocidentais, e o Estado Islâmico, ainda que grande se reduz a olhos nus.
 
 
                                   A palavra está perdida 


Como diz André Souza Lemos: "O Ocidente não quer renunciar ao seu império? Não é isso, é pior: quer muito, mas não sabe como, nem como começar. Quer dizer, não sabe como recuar sem perder toda a sua força, toda a sua preciosa vantagem comparativa no plano econômico. Sem perder a palavra. Os caras falam em multipolaridade, em sociedade heterogênea, mas é uma caixa de Pandora que ninguém quer abrir.
Má notícia: a palavra está perdida. A conta nunca fechou, mas isso nunca foi um problema enquanto se pôde varrer a Arábia Saudita pra baixo do tapete. Enquanto se pôde varrer mais de meio mundo pra baixo do tapete.
Antes, bastavam o dinheiro dos bancos e os porta-aviões, mas nesse momento de crise, a narrativa que daria sentido à perda faz muita falta. Nesse caso, vale para a geopolítica o que vale pra vida da gente: na hora da diminuição é que a gente sente falta do humano em nós.Na adolescência, somos cheios de ousadia e bravata, mas quando o tempo passa e a força diminui, é preciso ter o que dizer para os mais novos. Mas o que podem dizer aos mais novos nações em que as pessoas não têm mais filhos? A ascensão da direita no ocidente é um estertor final, não uma esperança de retorno. Espero que não tentem mostrar do que ainda são capazes.
Vestindo o uniforme de policial, e de soldado, seja na França, na Inglaterra ou nos Estados Unidos, o que temos são homens chamados Ahmed, Gonzáles, Patel, Okwono... E mulheres... Defendendo uma ordem em nome de pessoas e lugares que aprenderam a amar, não mais das bandeiras. Dos valores, sim, mas eles (felizmente) não têm pátria, ou cor.
Ironicamente, os jovens que estão dispostos a dar a vida por alguma coisa abstrata - por alguma coisa estúpida - foram postos do lado de fora, simplesmente porque o moinho da ideologia parou de girar. E são centenas de milhares de anônimos, errando pelo mundo, com uma arma na mão, e com um computador na mochila.
O ocidente ainda é uma máquina de geração de valor econômico, mas já é um mágico de Oz desmascarado. O Capitão América tirou a máscara, e era Dorian Grey. Os impérios coloniais europeus ruíram, mas os Estados Unidos ocuparam, mal ou bem, o seu lugar, ao menos pra manter as aparências. Ingleses e franceses fizeram muxoxos, mas se adaptaram. Os ingleses fizeram o melhor do rock'n roll, os franceses fizeram o melhor da filosofia. Quando caiu o muro de Berlim, parecia que a coisa ia engrenar. Nunca estivemos tão enganados.
E o Brasil? Bom, os próximos jogos olímpicos são no Rio de Janeiro. A intelligentsia nacional está em frangalhos, mas o país está na berlinda. Eu diria, pra resumir, que as coisas pra nós se decidem pela maneira como tratarmos os nossos jovens. É preciso que nós, os mais velhos, coloquemos as nossas bandeiras no armário, e ouçamos a voz da moçada, enquanto ainda temos uma moçada. Enquanto ainda temos água, e floresta. No fim das contas, esses são os únicos capitais que realmente interessam hoje: água, floresta e moçada."
 
                                                                        (versão dois: julho de 2015)