Histórias possíveis em processos judiciais da Justiça do Trabalho


Bricolagem, histórias possíveis e preservação de fontes primárias em processos judiciais trabalhistas – parte um           
                                                                                                                        Dinah Lemos

 

O texto que segue foi escrito a partir de uma bricolagem de recortes de um capítulo do livro de Carlo Ginzburg, os fios e os rastros, comentários meus e recortes de outros livros, como Memória e Arquivo, de Elisabeth Roudinesco. Sua primeira versão foi escrita para subsidiar as reflexões, debates e investigações dos alunos da Oficina de Avaliação Documental realizada no Tribunal Regional do Trabalho de Santa Catarina, no Arquivo Geral, em outubro de 2014. Trago aqui algumas ideias já bem amadurecidas em uma busca que se iniciou em 1987, quando fiz meu primeiro e discreto esforço para salvar processos judiciais trabalhistas da destruição total. No momento, estará sendo publicado em partes, em uma página de um grupo de servidores ligados ao Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no Rio Grande do Sul.

 

 Parte um

 

“Em seu livro 'O Pensamento Selvagem' (1962, tradução para o português em 1976), o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss usou o termo bricolagem para descrever uma ação espontânea, além de estender o termo para incluir padrões característicos do pensamento mitológico, o qual não obedece ao rigor do pensamento científico. A razão é que, já que o pensamento mitológico é gerado pela imaginação humana, é baseado na experiência pessoal, sendo gerado pelo surgimento de coisas pre-existentes na mente do imaginador. Desse modo, a mitologia descreve o mundo através de narrativas. Num mundo onde há poucas ferramentas linguísticas, se faz necessária a utilização de metáforas e narrativas. Na falta de uma palavra para o "ato sexual", por exemplo, os gregos antigos precisaram lançar mão de toda uma história fantástica para enfim poder dizer ‘coisas de Afrodite’. (Wikipédia) “.

 

           “Quando Lévi-Strauss usa a imagem da bricolagem para distinguir o pensamento mítico do pensamento científico, mostra que o primeiro se apoia no signo e o segundo se vale dos conceitos, afirmando que o signo ‘pretende ser integralmente transparente à realidade, enquanto que o primeiro [a linguagem científica] aceita, e exige mesmo, que uma certa densidade de humanidade seja incorporada a essa realidade’ (1976). Observa ainda que as criações da bricolagem se reduzem sempre a um arranjo novo de elementos, já que novos universos nascem de seus fragmentos. Massimo Canevacci (1996), ao criticar a estreiteza do conceito de bricolagem de Lévi-Strauss, justamente nos permite alargá-lo, superando o pensamento estruturalista de lógicas opostas. Assim, pode-se até mesmo ressaltar que, na verdade, não se pode abrir mão do elemento lúdico que marca esse tipo de composição. Nesse sentido, vale ainda lembrar De Certeau, que, conforme observa Silviano Santiago (2000), ao falar de bricolagem, ‘desloca o eixo da produção de mercadorias’, para o da sua recepção, o consumo, evidenciando sobretudo ‘maneiras de lidar com’. Podemos, pois, nos perguntar se a casa/sociedade organizada pelo excluído, com sucata do consumo, se voltaria para um tipo de universo mítico, tradutor das relações sociais e políticas que lhe motivaram. Nesse sentido, confirma-se nossa ideia de tomá-las como alegorias cotidianas. Diz Lévi-Strauss: (...) a poesia da bricolage lhe vem, também, e sobretudo, de que não se limita a cumprir ou executar; ‘fala’, não somente com as coisas, (...), como também, por meio das coisas: contando, pelas escolhas que faz entre possibilidades limitadas, o caráter e a vida de seu autor. Sem jamais completar seu projeto, o bricoleur põe-lhe sempre algo de si mesmo (1976: 42)”. [De lixo e bricolagem, texto de Ivete Walty, professora da PUC de Minas]

           

            No método da bricolagem, a própria seleção de documentos para a preservação como fonte primária parte não de tipos antecipadamente definidos nos quais os documentos são abrigados, tais como setores da indústria e do comércio, gêneros, estados civis, nacionalidades, naturalidades, escolhas políticas ou religiosas, etnias, faixas etárias, posição de classe, mas inicia com a colagem em catálogos de palavras chaves selecionadas no próprio documento original. Isso quer dizer que não serão buscados enquadramentos das unidades documentais em padrões exteriores a elas, mas, ao contrário, elas abrigarão colagens de nomes próprios, autodefinições, estado civil declarado e enredos subjetivos de uma narrativa particular. Um exemplo: se partimos de um código genérico de “estado civil” podemos cair facilmente na cilada que esquece as caracterizações de “convivente”, “amasiado” e “desquitado”, presentes em processos judiciais das décadas anteriores à lei do divórcio, em centros urbanos e presentes até data muito recente em regiões mais próximas a tradições rurais. Se buscamos as classificações por origem étnica ou conflito de natureza étnica poderemos perder documentos nos quais há a presença importante de racismo ou preconceito sem que os envolvidos declarem abertamente suas condições de origem genética e cultural. A própria pessoa que faz a seleção, se for encaixar um documento em algum tipo de padrão poderá estar fazendo um julgamento redutor dos significados do texto examinado, abandonando informações que serão para sempre perdidas.

            Buscar a particularidade de um documento em uma série (os processos judiciais são uma série com n séries dentro de si) é esquecer de todas as séries a que ele poderia pertencer e fazer com que outras séries apareçam de dentro do documento, a partir do contexto imediato do conjunto textual em questão. As séries estão dentro do documento único e não o contrário, o documento ser encaixado em algum subgrupo de um conjunto.  E as séries vão aparecer, no documento único, em forma de bricolagem, pois a vida real no mundo globalizado costuma ter esse formato.

            Assim, quando os documentos forem buscados e encontrados pelo pesquisador, pelo cientista, serão fonte primária para narrativas específicas e diferenciadas, histórias únicas contadas em cada monografia sobre um município, ou sobre pessoas de um local, diferentes não só no objeto analisado mas também no foco e no estilo de quem conta. E de munícipio para município, estado da federação para outro estado, será sempre um conjunto de histórias diferentes. Não obstante, todas acabarão pertencendo a uma mesma Era na história do país e do mundo e serão abraçadas por semelhanças exatas e descritíveis. Assim, a “contação” de histórias a partir de olhares sobre singularidades, quanto mais disseminada, mais proteção de direitos de personalidade poderá incentivar. O que não impede que os catálogos possam ser examinados visando o enquadramento em séries de processos segundo tipos, conforme uma caraterística desejada esteja presente em um processo. O método de catalogação de baixo para cima, em bricolagens, permite a ampliação de possibilidades em termo de escolhas historiográficas.

            Selecionar como objeto de investigação aquilo que é mais dramático, cômico, trágico, aterrorizante; o fato que revela um grande tema mundial de época manifesto em um caso singular em um município (ex: o cargo de degolador islâmico em um processo de Santa Catarina); aquilo que parece sonho ou arquétipo (crimes, lendas e tipos humanos investigados pela psicologia, psiquiatria e antropologia); aquilo que se impõe como fantástico ou mágico, às vezes a partir de uma frase perdida no meio de um documento: (ex: “ele matou o cachorro que eu gostava na minha frente e fez eu enterrar; e ele me disse que catarina tem que ser escravo de gaúcho”).

 

            O método da bricolagem permite o estudo das emergências, dos acontecimentos em forma embrionária, no momento em que eles ainda não conquistaram visibilidade na História. E essas emergências são as origens das Fontes Materiais do Direito.

 

Vigiar e Punir no Brasil em 2015 - por Carmen Sylvia Ribeiro


 Ligue a televisão e tente fugir de filmes e reportagens cheias de sangue, guerras, mortes espalhadas pelos cenários de fim de mundo, você terá que migrar para uma comédia pastelão, ou para um jogo de futebol, onde verá jogadores saírem de campo sangrando, ou carregados em macas com pernas quebradas. Isso entremeado por propagandas de carros último tipo, caríssimos e desnecessários, velozes e digitais. Tente então uma aulinha de culinária saudável com a Bela Gil, ou programas de desenhos infantis. Fora das telinhas da grande mídia você terá paz na sua casa, quando chegar esgotada (o) de um local de trabalho insano e cheio de mesquinharias e perversidades. Depois de passar por um trânsito belicoso, no qual terá de se defender de motoristas que estão prontos para bater em você. Mas você, afinal, está bem e diz a regra geral que deve, é seu dever, estar sempre feliz e otimista, porque é uma pessoa livre. Há os que estão presos e, entre eles, trinta e cinco mil mulheres, a maioria condenada por tráfico de drogas. E há os homens presos, a maioria negros e jovens. Agora, os que mandam querem prender as crianças junto com os homens. Os meninos negros estão sendo analisados pelos que mandam. Abaixo um lindo texto da minha querida amiga Carmen, alinhavando ideias sobre o renovado "Absolutismo" brasileiro, a dar inveja aos mandatários retratados na obra de Michel Foucault, Vigiar e Punir, no qual o autor conta porque os esquartejamentos praticados nos séculos XVIII em praça pública eram um "programa" de grande audiência, com um público cativo aplaudindo cenas de braços e pernas arrancadas de homens amarrados em vários cavalos em fuga. Suplícios de antigamente superados por suplícios televisivos e pós-modernos.  Boa leitura.

Foto: Arli Pacheco. Uma barata esmagada nas ruas do Rio de Janeiro, 2014.
 

Mídia, presídios e religiões 

Alguns cultos religiosos a mídia persegue ou ignora, mas tem um gosto pelas religiões de cultos orientados por carismáticos que rendem programas com audiência garantida. E principalmente apreciam muito a parte dos donativos gordos que garantem a compra de horários nas emissoras, algumas já de propriedade das instituições religiosas. Acham bacana ficar ajudando "alma" que não é preciso muito esforço para a salvação. Não importa as vigarices e nem a manipulação, desde que seja um espaço bem pago. Mas quando o assunto cola no debate sobre as "almas" mais perdidas, já a reportagem muda de tom.

Sobrou no último domingo o preconceito e ficou descarada a encomendada, em tempos de discussão das condições carcerárias no Brasil e da discussão da maioridade penal. Afinal a violência rende uma boa audiência e provocar emoções e sentimentos mais primitivos, é a especialidade da rede Bobo. Usando a ingenuidade de religiosos tiveram acesso aos espaços de terapia e ajuda, mas na tentativa de desmoralizar a dedicação de uma comunidade empenhada na recuperação de apenados. A intervenção alternativa dos religiosos que tem destaque pela capacidade de transformar as vidas de pessoas - que permanecem cumprindo suas penas e privados de liberdade - foi manipulada como "privilégios" indevidos e confrontadas pelas manifestações de familiares de vítimas marcadas pelo sofrimento de perdas. Uma exploração desumana e sensacionalista.

 Não preocupa essa mídia os percentuais de população carcerária no Brasil ou a mortalidade de jovens negros e pobres, ou a violência recorrente das ruas e da vida moderna. Desqualificam um ambiente quem sabe capaz de mudar histórias de violência e reincidências, em nome de que interesse? Para a mídia a privação de liberdade para cumprimento de penas não visa a recuperação ou a ressocialização de apenados, mas a tortura e a vingança. Tão reflexo! Mas pode a privatização dos presídios, é claro, será esse o motivo? Sempre existe um motivo, nenhuma matéria é produzida por esses senhores no acaso. É isso, estão em campanha, aplaudindo até o próximo crime do eterno solta- prende do sistema carcerário brasileiro. Rende patrocínio, rende audiência e espetáculo. São negócios.