Faça amor, arrume a casa, reze e respire.

                                             Pedro Américo: pintor universal. Brasília, DF.


Na véspera do ano mil o senso comum esperava o fim do mundo. Ele não veio e surgiu então o renascimento na Itália e em todo o Mediterrâneo, com os primeiros ideólogos e cientistas que viriam a auxiliar, indiretamente, as falas masculinas que alimentaram os códigos dos inquisidores cristãos, como o Malleus Maleficarum, condenando os modos religiosos xamânicos às torturas e fogueiras. Nessa história toda, a “república” sempre significou uma hierarquia onde os conhecedores da linguagem e dos códigos sagrados detinham o controle dos exércitos. Assim, sempre quis a humanidade.
Não concordo com a dramaticidade dos textos que sugerem estarmos, no Brasil de 2016, à beira de um desastre imediato, de uma guerra imperialista ou civil. Estamos migrando para uma zona de desmanchamento do que teria sido um “estado nacional”, construído desde 1822, por um punhado de homens montados em cavalos e com suas espadas erguidas aos céus, à beira de um riacho chamado Ipiranga. Mais tarde, inventaram uma música, chamada hino, que começa com as palavras “ouviram do Ipiranga”, e que milhares de pessoas cantam juntas e em pé, ainda em 2016, antes de jogos de futebol nos quais aparecem homens que moram em várias partes do mundo e ganham mais de um milhão de reais por mês, vestindo uma camiseta amarela que homenageia aqueles lá, das espadas na beira do rio.
Então, esse desmanchamento do “estado nacional” já acontece desde sempre, em certa medida, nas bordas do que fica do lado de fora das imagens do tal riacho do Ipiranga e dos campos de futebol. Um exemplo que nos últimos dias tem me revoltado, e muito, é o nome atual da antiga copa Libertadores. Afinal, uma das riquezas do meu capital emocional é justamente o Internacional, meu time querido, ter ganhado essa copa e depois o mundial, e com gol do Gabiru sobre o Barcelona do Ronaldinho Gaúcho. Tipo vitória sobre o Grêmio também, na semiótica. Agora o negócio se chama Bridgestone. Isso sim foi um enorme ataque simbólico às Américas Latinas e não vi nenhuma esquerda protestar, vejam como estamos desarmados filosoficamente falando. Vejam como se organiza o Capital Financeiro em nosso território "nacional", cobrando juros que são, tecnicamente falando, roubo a céu aberto sobre os 90% mais pobres da população e sobre os 9% ensanduichados entre os pobres e os 1% ricos, nove por cento que vários petistas se dedicaram a “desmoralizar” tão escandalosamente como aquela deputada do marido preso, a que dava pulinhos de “sim,sim,sim”, orgasmos comedidos de donzela quase virgem em corpo de perua politizada. Veja a dimensão das terceirizações que simplesmente legalizaram todo e qualquer caixa dois ou desvio de dinheiro por caminhos ilegais ou fora do controle do tal “estado nacional”. E nossos juízes e juristas, os doutrinadores republicanos e nacionais, faz décadas, aceitando essas terceirizações e fazendo de conta que o Estado “solidário”, ou as grandes empresas “solidariamente responsabilizadas” realmente manteriam o controle das circulações monetárias e de renda.
Os textos apocalípticos partem da ideia de que tínhamos antes uma democracia razoavelmente agradável e tranquila e que cairemos numa zona de guerra civil. Não me parece que estávamos bem nesses últimos 25 anos, embora durante um tempo houvesse um PIB que se impunha como sucesso, e um discurso hegemônico feliz. Por sinal, quem quiser aprender um pouco sobre contenção da miséria leia o ótimo livro “Os pobres na idade média” de Michel Mollat, e veja como se pode passar séculos distribuindo bolsas famílias para contenção de miséria e proteção de direitos mínimos de sobrevivência.  E não me parece que quem tinha as rédeas da situação, até aqui, tenha perdido esse controle, não obstante a ingratidão tremenda para com o Partido dos Trabalhadores, sempre tão comedido, tão mercantilista, tão adorador do consumo. O que há é uma desordem violenta, mas controlada por quem a produz, nas instituições da República. Mas a "república" já era bastante formal e de superfície em grande medida. Não quer dizer que, excluindo o modelo "república" provisória e circunstancialmente em vários períodos, não houvesse um tanto de estrutura de proteção de direitos para uma parcela da população. E que a outra parcela, a maioria, já não estivesse mergulhada em situação de exercício bem limitado de direitos. Claro está que para que a parcela menor, 10%, continue a "manusear" um conjunto de direitos de tipo "capitalista", a parcela maior, 90%, precisa ser mantida ordeira e cumpridora das determinações que organizam a sua "subalternidade". Isso vai piorar um tanto? Talvez, mas não o suficiente para "estragar tudo", todo esse ordenamento de direitos mínimos para 90%. Então, seria bom que falas de desespero não se entusiasmassem tanto. Temos uma estrutura escravista de mais de três séculos, várias ditaduras e tirinhas de tempo de ensaios de algumas possibilidades de estética democrática. Então, o Brasil esta bem sólido em sua estrutura. Não vejo desespero em grande escala. Já somos adaptados a muita violência faz muito tempo. De nada adianta uma parte da esquerda se desesperar. Respirem, respirem, respirem.
Li um bom texto, dos inúmeros que se amontoam nas redes sociais (isso, sim, uma grande revolução no cogito sapiens sapiens) que falava estarem ameaçadas as “instituições fortes” no golpe no Brasil, ao qual Obama e sua linda família assistem de camarote. Uma pequena correção: "instituições fortes" (referindo-se à defesa das tais democracia e república) não é uma locução adequada porque a tal "família" tão alegada no congresso nojento está descrita na Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre e também no "Os Donos do Poder" de Raymundo Faoro. É uma família que vem de Roma antiga e podemos ler sobre isso no "História da Vida Privada – do império romano ao ano mil" de Paul Veyne e outros. Esse patriciado clientelista (clientes eram os amigos da família, nas cidades antigas no mar Mediterrâneo, Europa) é uma instituição que atravessa toda a história das cidades humanas. É bem forte portanto. Essa "família" carrega dois conceitos que utilizam as palavras "confiança" e "respeito" como roupa a vestir seus hibridismos perversos sustentados pelo medo e pela crueldade. A "confiança" é sempre no capataz, naquele que vai reproduzir as ações emanadas do "eu" solitário do patriarca Nosferatus (o vampiro é o signo do perverso, o indivíduo que não vê e nem sente o “outro” a não ser desmontando, arrancando pedaços, destruindo-o). O "respeito" é o medo elevado a sentimento necessário e ordenador das hierarquias, o medo que alavanca o desejo de pacificação via subordinação: o outro feliz porque hoje não vai apanhar e nem ser violado, porque costuma não apanhar mais e é violado com relativa parcimônia, de tal sorte que quase não sangra, muito pouco, muito pouco. Esse leve sangramento cotidiano é a estrutura da hierarquia da "família", palavra que vem de "famulus", escravo.
Tudo, na domesticação, na formação da palavra "humanidade", domesticação de animais e plantas, mulheres e mais fracos, antecede o tempo livre do sábio, do artista. O que está posto para a tal "direita" é apenas manter isso ai: Família! Família! Família! O que está posto para a tal "esquerda" é fazer o relato, o arquivo histórico, de como essa humanidade conseguiu inventar outros conteúdos para as palavras "confiança" e "respeito", e de como esses conteúdos acabaram formando uma memória efetiva, eficaz e eficiente - como preferirem os juristas - das ideias de dignidade e liberdade. E, talvez (apenas talvez, mas isso já será um começo), as famílias consigam aceitar que os estranhos, os pagãos, os estrangeiros sem famílias e sem escravos possam viver ali ao lado, em "outra nação", domesticando plantas e animais de um modo reverente e religiosamente perdoado. Isso é esquerda e direita e tudo fora disso está ameaçado de esquecimento.
Sim, há algo de incrível e inédito no cenário mundial que faz do Brasil um palco principal de um show muito mais alucinado do que qualquer “rock in rio”. Desculpem se eu pergunto assim tão irreverente: quem inventou essa história de BRIC? Não consigo entender como Brasil, Rússia, Índia e China poderiam ser colocados em um balaio só e, ainda, restaurar algo – um polo libertário - que na sua inauguração – os sovietes de 1917 –, na revolução russa, estava fadado à precariedade e à manipulação simbólica. Eu, uma artesã desatenta, sempre achei a ideia de BRIC parecida com aquele velho papo da tal Cepal, para a América Latina, defendido pelos amigos do Fernando Henrique Cardoso, dos “países desenvolvidos” e “países em desenvolvimento”, como se os segundos pudessem algum dia alcançar os primeiros. Criei-me, como esquerda, ouvindo que o Partido dos Trabalhadores viria justamente para desconstruir essa ideia.   O projeto BRICs era e é, ainda, comercial e mercantil, não é? Era e é, ainda, composto por estratégias entre governos nacionais e, portanto, apoiado em ideais nacionalistas, não é? Nesse sentido tem razão os que sofrem derradeiras agonias: estamos assistindo a um acontecimento violento e desconstrutivo ao modo ditatorial, sim. Os chefes das famílias que mandam no mundo deixaram “se criar” (ao modo perverso) ideais democráticos no campo mercantil e corroeram os mesmos projetos por dentro de cada país, pelo reforço e aprimoramento de direitos - comercial e civil - violentos e agonísticos (do deus Agon, da disputa), com ênfase no Brasil. As terceirizações destruíram muita coisa por aqui e a pressão estreita sobre a tal governabilidade (um verdadeiro elogio ao mito de Sísifo, o rei aprisionado que segura e empurra uma pedra eternamente), com o controle das mídias e dos processos eleitorais, era, sim, uma tortura permanente.

Aprendi muito em 2016. O Brasil não vai se desmanchar porque a tradição escravista é muito mais sólida do que qualquer alegoria democrática que tenha sido tecida sobre nossos corpos doloridos. Talvez vejamos um novo momento colonial se instalando a partir de 2016. Nada que os humilhados, já ladinos (conhecedores da linguagem dos senhores), não saibam transformar em batucadas nos morros. Precisamos acalmar o pessoal, eu lamento e choro também.  Mas os budistas já nos ensinaram a respirar, vamos respirar então.
Observem que o Direito, com D maiúsculo, vem sendo produzido desde o surgimento da humanidade, desde que algum macaquinho esperto enterrou o primeiro parente querido e botou uma decoração de pedrinhas em cima, para não esquecer nunca onde ficava o local. E ele já passou por grandes desmanchamentos civilizacionais. Não vejo o porquê de o Direito, como Categoria propriamente humana (como dimensão ou lugar/ acontecimento-tipo ou coisa geral), tenha que ser abolido de uma epistemologia que dê conta do final do Capitalismo e início de outra civilização. Ora, "Direito" não é um acontecimentos propriamente capitalista ou burguês. Tem a ver com justiça e com ordenamentos de sociedades. Se não acabar por completo a espécie humana, esta ou qualquer outra que a suceda, haverá um Direito, ainda que diferente, e ainda que na curva resultante de episódios sangrentos. Estamos, sim, em um momento histórico no qual várias análises, à direita e à esquerda, desejam - a palavra é essa - que deixe de existir a palavra Direito. Isso é que é uma representação da barbárie, perda da memória efetiva, ou eficaz, ou eficiente (todos os significados destas palavras nos interessam) daquilo que construímos como “justiça refletida no dever ser”. Segundo Jacques Derrida, um lugar no qual a desconstrução é um motor contínuo, um “derramar-se da justiça sobre o direito e do direito sobre a justiça”. A barbárie, ou as, no plural, são momentos justamente de perda de memória, ou desordem de memória sobre direitos (humanos, de pessoas não humanas, de seres não identificados como pessoas, da vida em geral como território onde há água e ar). Mas a vida sempre retorna, e é só isso que conseguimos entender como significado da palavra “eternidade”, um reaparecimento de coisas em séries, em ordens, em sucessões, em tonalidades e variações de luzes. Aquilo que ressurge, brota. Isso é o sagrado para os humanos.
A gente lê um historiador marxista clássico, como Perry Anderson, e sua análise sobre a crise no Brasil e, surpreendentemente, ficamos com a sensação de que as redes sociais conseguem elaborar e compor um conjunto de análises muito mais sofisticado e cheio de feixes e prismas de significações que não são passíveis de síntese. Sentimos então que a velha dinâmica de pensadores individuais e eruditos dizendo pra gente como é o real não funciona mais. Claro que ainda desejamos grandes pensadores, mas eles não mais serão Cristos produtores de Bíblias. Seremos muitas e muitos, e falando pequenas análises ligeiras e atentas, como cantares de passarinhadas no amanhecer. O que acontece agora, no Brasil e no mundo, é sim uma grande mudança, mas ela não é revelada nem por narrativas individuais, nem por discursos fundadores, como livros. Nem mesmo essa mudança torna os velhos clássicos desnecessários. Ao ler Perry Anderson, ficamos identificando soluções e imagens que ele, um senhor nascido em 1938, não consegue identificar, nem mesmo como objeto de análise. Assim, a leitura dos velhos homens pensadores nos faz sentir donas - nós pensadoras - e donos - os amigos de sempre - de potência inaugural: há luz no fim do túnel e esse novo acontecer da episteme (e do ontológico, ele mesmo), irradia tenacidade e crença em nossos fluxos emocionais. Agora somos nós e todos os nossos nós e nossas dobras delicadas ou dramáticas.



Por um serviço público federal brasileiro civil, humano e cuidadoso - parte três

  1.              Essa é a terceira parte de um ensaio no qual construo a defesa da ideia de que o Brasil é um país de estrutura (formas em múltiplas escalas e relacionadas entre si) tensionada em relações de poder inscritas em uma tradição escravista. Defendo que o fim da ditadura militar - consolidado na Constituição de 1988 - foi uma repetição da dinâmica de “excesso na alegoria” havida na Abolição da escravatura, cem anos antes. Sendo assim, todas as sucessivas perdas de direitos para alguns setores (professores, servidores públicos, aposentados, habitantes de periferia urbana, indígenas) e a posterior crise institucional desenvolvida em sua visibilidade desde o “junho de 2013” e amadurecida nos episódios da tentativa de impeachment a dividir o país em uma guerra de duas trincheiras, enfim, toda essa evolução não reflete mais do que uma permanência de longa duração.
  2.       Em síntese, vivemos em um país extremamente violento no qual os direitos humanos fundamentais não estão garantidos para a maior parte da população, na maior parte do tempo, e não estão garantidos o tempo inteiro para ninguém. Dos brasileiros, os mais ricos e célebres precisam se mover em carros blindados e com escolta armada e os mais pobres e invisíveis precisam deixar-se comandar por estruturas militarizadas de diferentes procedências. Da década de 1980 até hoje, a incipiente classe média nascida no desenvolvimentismo pós-30, migrou para lugares igualmente militarizados e de suas liberdades de escolhas, de estéticas, de comportamento afloraram medos, fissuras, compulsões, ausências de reconhecimento. Nesse enredo químico e físico escravocrata, a palavra CONFIANÇA se relaciona com significados de subordinação e fidelidade partidária ou familiar e as estruturas dos órgãos dos três poderes do Estado brasileiro se mantêm corrompidas por signos da tradição patrimonialista anterior à Abolição da escravatura. Esse patrimonialismo também foi corrompido – perdendo suas estratégias estáveis - pelas lógicas pós-modernas oriundas das engrenagens dos sistemas de produção e distribuição do Capital em sua fase comandada pelo sistema financeiro e pela nova tecnologia, em particular as técnicas e máquinas da área da informática, da química, da biologia e das teorias da linguagem. Resumindo, não estamos exatamente adentrando perigosamente em um Estado de Exceção porque nunca saímos dele de um modo consistente. Na verdade, não saímos de fluxos perversos de sociabilidade (não é isso, em síntese, o tal Estado de Exceção?) nem mesmo nas aparências, muito bem exemplificadas pela manutenção das gravatas como adereço vinculado à noção de seriedade e responsabilidade e seus congêneres saltos finos e enormes.
  3.               No modelo republicano de subordinação dos oprimidos, baseado nos conceitos de cidadania para todos e direitos individuais universais, a tensão central que produz as estruturas política e jurídica diz respeito à distância entre o estatuto jurídico e a condição real. Esse espaço não pode ser intransponível em um tempo tão alongado que faça o sujeito de direito tornar-se incapaz de alcançar o estatuto que lhe confere o direito, e realizar esse direito na vida real. O direito que nunca se realiza, que nunca é exercido, que acaba não sendo nem conhecido pelo indivíduo que deveria saber pratica-lo, esse direito só é um acontecimento real como uma ficção, mentira, delírio ou ilusão. Poderá ser um mito, ou participar da construção de um mito, mas aí já não mais será um direito.
  4.       Em 1990, os mais considerados intelectuais brasileiros ainda debatiam em suas teses universitárias a presença e as dimensões da personalidade do escravo brasileiro, nos diferentes momentos do escravismo (entre 1500 até 1888). As falas mais respeitadas dos discursos visíveis em nosso país ainda não sabiam dizer, de um modo unânime e consagrado, com que intensidade poderia ter havido nos negros (e em seus parentes mestiços e bastardos) uma ou várias ideias de “si mesmo” que abrigassem entendimentos sobre serem eles sujeitos de direito (e de que direitos).  A UNICAMP era um dos celeiros mais férteis nos quais se começava a falar sobre conflitos entre escravos crioulos (os nascidos no Brasil) e os boçais, africanos recém-chegados. Silvia Hunold de Lara, em 1988 – ano em que é promulgada a nova Constituição pós-ditadura militar – registra a presença de variados comportamentos de escravos, tornando as categorias “escravo” e “senhor” definidas uma em relação à outra em formas diferenciadas e ambíguas. Houve negros com diferentes entendimentos e sentimentos sobre suas possibilidades de posse e uso de direitos concretos, desde os que construíam laços afetivos sólidos com seus donos, passando pelos capangas que agrediam e matavam outros escravos e chegando até as negras lindas que conseguiam construir relações de cumplicidade definitivas que as protegiam e até permitiam que trouxessem ao mundo filhos bastardos, mestiços e alforriados, proles privilegiadas para o possível orgulho de suas mães. Nem aqui no Brasil e nem em lugar algum do mundo e da história da humanidade, o escravismo se reduziu a uma relação o tempo inteiro brutal. Em uma relação duradoura, de vida inteira possivelmente, não será viável que o cotidiano aconteça baseado apenas na brutalidade, na agressão direta e constante. Mesmo na escravidão das charqueadas, no extremo sul do Brasil, na qual não era raro que um escravo morresse depois de dois anos em meio ao gado, às mortes banais, ao sangue e às moscas e ao sofrimento constante, mesmo ali havia dinâmicas de apaziguamento das dores, de descanso e relaxamento.
  5.         É fundamental que se entenda que o escravismo é um ambiente no qual “ser escravo” é natural, normal e a crítica aos procedimentos e às subjetividades próprias às situações é muito difícil de ser feita. Kátia Mattoso escreve em 1982: “A inserção social do escravo, sua aceitação pelos homens livres numa sociedade fundamentada no trabalho servil, dependerá estreitamente da resposta que o trabalhador-escravo dá a seus senhores no plano da fidelidade, da obediência, da humildade. Essas três qualidades essenciais conformam a personalidade do ‘bom escravo’, pois assim o negro, que estava marginalizado e a quem o senhor deu um devoir faire, adquiriu uma competência, um savoir-faire, fonte de poder. Essa força proveniente do savoir-faire arrefece o temor, trata certas feridas abertas pelo desenraizamento da terra dos ancestrais, devolve ao homem escravo uma certa linguagem, uma nova morada, uma identidade particular numa espécie de contrato tácito e sólido”.[1]
  6.   .       Foi nessa mesma época (décadas de 1980 e mais ainda em 1990) – de debates intelectuais sobre o “si mesmo” dos escravos – que os primeiros processos de informatização no serviço público federal foram implantados. Nem mesmo os intelectuais dos cursos de doutorado nas universidades de ponta no Brasil tinham um conjunto de opiniões mais consolidado sobre a imensa crueldade do escravismo. O senso comum continuava sentindo-se séculos distante das gentes tratadas como animais, por uma mitologia consagrada nas escolas básicas. As grandes mídias já controlavam as emissões discursivas de um modo totalitário e tudo o que era dito e visto nas telas, revistas e jornais remetia a valores como velocidade máxima, jovialidade otimista como comportamento desejado, corpos atléticos e sempre disponíveis para o grande esforço. Rapidez, tenacidade, controle, atitude higienizada com sofrimentos e transtornos guardados em um interior invisível, imagem atlética, hirta, porém disposta a gestos suavemente heroicos. Talvez por uma operação mágica da história que viu um quase continente se desmanchar em fragmentos, a URSS desfazendo-se e dando espaço total (e caótico portanto) ao capitalismo concorrencial, passamos de um momento simpático, democrático e civil, com a inauguração das eleições diretas para presidente e a promulgação da Constituição “cidadã” de 1988, para um outro momento cheio de endurecimentos de controles manifestos na hegemonia absoluta do conceito de “qualidade total”, por si só uma ideia absurda e fascista falada com tanta naturalidade (própria do senhor de engenho) por gerentes que agora eram nomeados de “gestores”.
  7.          Lembro-me de vários episódios dignos de nota, na evolução dos acontecimentos que acabaram por produzir o conjunto conceitual de assédio moral no mundo jurídico brasileiro do direito do trabalho e mais especificamente do direito administrativo, voltado ao problema dos sofrimentos dos servidores públicos federais. Lembro-me com clareza do que significou sofrermos agressões que não tinham nome ainda, o que nos colocava em situação simbólica semelhante aos negros boçais, os recém-chegados nos navios negreiros: éramos intensamente agredidos por pessoas sorridentes e não tínhamos palavras para descrever nosso sofrimento. Sofrer de dor na lombar, no pescoço e nos olhos era um problema de velhice e inadaptação exclusiva do “eu” que sofria e era um problema a resolver “consigo mesmo”. Lembro-me que uma vez coloquei tanto spray anestésico e de anti-inflamatório no pescoço que a minha chefia da época falou, divertida: “mas tu estás é cheirando isso!...“, comentário que motivou risadinhas e risadonas nervosas de todos em volta. Um inesquecível detalhe foi o fato de que vivíamos uma época de incrível expansão do uso de vários instrumentos da nova tecnologia, desde a fotocópia, até a utilização de máquinas de datilografia eletrônicas, muito mais leves e propiciando uma velocidade muito aumentada. Já no final da década de 1990, o aparecimento de impressões em máquinas matriciais, a partir de computadores de edição de texto no espaço DOS, aquele das letras verdes em fundo preto, os TK3000. Inesquecível porque fez surgir o processo de grandes volumes e não raro com o tamanho entre 30 e 60 centímetros. Isso incluso em um período no qual foi detectado um fenômeno que se consagrou como “explosão judicial”. Lembro-me de ocasiões nas quais precisávamos ordenar os processos e coloca-los em prateleiras, primeiro uma vez por semana e depois todos os dias, momento em que utilizávamos todo o espaço do chão do lugar evitando apenas caminhar sobre os processos, ou tirando os sapatos para não marca-los. Lembro-me que todo o nosso sofrimento era tratado como sendo insignificante, pois que provisório, já que vivíamos a grandiosa introdução da tecnologia da informática e todas as novidades acabariam sendo sucedidas por “novas novidades”, sendo o futuro um lugar provavelmente paradisíaco no qual os jovens aproveitariam delícias de experiências diante das quais nós éramos heroicos “bandeirantes”, desbravadores de um futuro cheio de glórias e facilidades inimagináveis. Toda a nossa circunstância se revestia da caraterística da “desterritorialização”. Éramos como que boçais em navios a caminho de uma terra nova e desconhecida.
  8.            Mas deixemos as memórias para outra ocasião e vamos nos deter em um único dia sobre o qual eu tenho provas materiais de sua existência e de suas incríveis dimensões. Em 1999, houve a introdução do primeiro programa dedicado e em rede com telas de janelas, ou páginas, na Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul. Seu nome: INFOR.  Sobre esse dia, eu consegui a permissão e o apoio do sindicato para realizar um questionário nas Varas do Trabalho de Porto Alegre. Os dados nunca foram sistematizados e divulgados e eu deixei de atuar no sindicato, logo depois de sua aplicação, por desentendimentos políticos com membros da diretoria. Levei os questionários comigo e eles estão arquivados e em parte digitalizados. Em momento oportuno, espero que esse trabalho de pesquisa possa ser retomado e concluído, mas registro aqui um dos resultados que me pareceu mais impactante. Havia um conjunto grande de perguntas e foram respondidos perto de cem questionários válidos em um universo de 300 pessoas, aproximadamente. A tabulação destes cem questionários apresenta um inusitado desenho: todos os servidores responderam que eram muito inteligentes, tinham muita coragem e estavam muito entusiasmados no primeiro dia de implantação do primeiro programa em rede de atendimento ao público e atividades de secretaria. Todos menos os que anularam os seus questionários e duas servidoras apenas, que responderam que tinham algum medo, que não se sentiam plenamente inteligentes para tal situação e que se sentiam razoavelmente tensas. Diferentemente dos métodos utilizados sempre pelos sindicatos do Brasil e da Europa, até onde eu conheço, esse questionário foi entregue com identificação dos entrevistados. Daí que é possível identificar as duas mulheres e tentar entender porque somente duas mulheres de perfil de esquerda “outsider” e feminista se sentiram aptas a declarar fragilidades naquele episódio. Entendo que as pessoas estavam suficientemente apavoradas para se sentirem pressionadas a uma adaptação de máxima agilidade, como náufragos. Ou como negros sequestrados que precisam sair urgentemente da condição de boçais e integrar a condição de ladinos, os escravos que já haviam aprendido a linguagem do lugar, no Brasil colonial (e depois imperial) das grandes plantações e da mineração.
  9.        No entanto, esse novo ato inaugural de uma nova dimensão das tradições de fidelidade, obediência e humildade trouxe escalas inéditas dos mesmos valores patrimonialistas das lógicas das hierarquias e sistemas de funcionamento do Estado brasileiro. No Brasil colonial, os negros tinham uma expectativa de vida relativamente curta e o tráfico negreiro somado à reprodução da vida pela formação de instâncias relacionais locais alimentavam soluções de continuidade. No Brasil do início da informatização em massa, aproximadamente na década de 90, as soluções para a desterritorialização, o não pertencimento e a consequente crise de reconhecimento, estiveram ligadas não mais à reposição da mão-de-obra, mas agora sustentadas pela adição química generalizada. Os computadores entraram em cena apoiados na introdução maciça dos anti-inflamatórios, antipiréticos e analgésicos, da ampliação do uso de drogas legais e ilegais e dos antidepressivos, ansiolíticos e benzodiazepínicos. Os mais espertos ainda moveram-se em direção a um patamar de reconciliação com identidades de elite, de nobreza e de fidalguia (desde sempre buscadas por quem se abrigou nos espaços dos três poderes do Estado brasileiro) associando a medicação a atividades de esgrima (alguns exímios) de artimanhas e cenários psicanalíticos e da psicologia em geral. Em última instância, precisávamos nos tornar, o mais rápido possível ladinos, para não sermos excluídos de um futuro que se descortinava como generoso apenas para os mais jovens.





[1] MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1982, pg 102.

Por um serviço público federal brasileiro civil, humano e cuidadoso - parte dois

  1.              Como construir relações baseadas na confiança em um país de 516 anos de vínculos emocionais alimentados pelo medo? Em 1996 escrevi um capítulo de uma dissertação de mestrado com o título “O Brasil masoquista da perversão moderna” onde tentei entender um pouco sobre a enorme crueldade do escravismo especificamente brasileiro. Relendo o estudo vinte anos depois seleciono e reescrevo a partir de trechos demonstrativos de como a intensidade da violência nas relações entre indivíduos na sociedade brasileira tanto deforma quanto inibe conteúdos relacionados à palavra confiança e, também, carrega formas denominadas de “confiança” para zonas emocionais de exercício de subordinações em situação de sofrimento causando diferentes impactos sobre os coletivos nos quais essas experiências relacionais se configuram como pregnantes, se não como normativas.
  2.           Na Europa dos séculos XVI e XVII foram criados os primeiros hospícios, ou casas de correção, nas quais eram internados “os ociosos, os vagabundos, os indigentes sem trabalho, os libertinos, os dissipadores, os debochados” e também “os alienados e dementes”, segundo Hervé Beauchesne[1], e nesses locais os dementes eram exibidos atrás das grades, e plateias zombavam da loucura. “Se os loucos fossem perigosos, eram acorrentados sobre a palha; o importante era mostrar a animalidade deles” [2]. Antes disso, as concepções da igreja católica sobre loucura e normalidade orientavam os modos de ver e sentir sobre os indivíduos que perdiam a razão e eram por isso vistos como amens e furiosus, seres nos quais a alma espiritual havia se perdido e, por isso, resultavam condenados a um estado animal. Foi durante esse período medieval e renascentista europeu que o Brasil conheceu seus primeiros três séculos de escravismo.  As noções de que no Brasil o escravo era considerado coisa e não pessoa foram popularizadas a partir de teses escritas na década de 1960, em particular os livros de Fernando Henrique Cardoso, Escravidão no Brasil Meridional [3], e Jacob Gorender, O Escravismo Colonial [4], e ocuparam o imaginário popular como um senso comum de lá até hoje.  A ideia de que, bem ou mal, houve uma lei da Abolição e o trabalho veio a se tornar livre a partir de 1888, tornando os negros portadores da condição jurídica de pessoa,  levou para esse conteúdo de entendimento sobre o ontológico a sensação de “problema resolvido” e “assunto encerrado”. O tema retorna ao senso comum a partir das políticas públicas criadas nos governos de Lula e Dilma, do PT, mas agora sob a ideia de “preconceito” ou “racismo” de alguns indivíduos não portadores de uma razão esclarecida. É muito importante começar nossa reflexão sobre a confiança  a partir do entendimento de que os modos de ver e sentir do Brasil escravista não se resumiam a uma espécie de díade tranquila e pacificada na qual o indivíduo negro era tido por animal pelo indivíduo branco e, após a lei áurea, os brancos deixam-se enxergar os negros como pessoas e estes se revelam como tal, aliviados, finalmente. Não vou aqui aprofundar as consequências dessa fantasia coletiva instalada a fórceps no mundo real brasileiro. Quero apenas reter a ideia de que nessa fantasia, a de que a condição de pessoa livre, para negros puros e seus parentes mestiços, inaugurada um ano antes da República, fica situado o deslocamento distorcido que alimentou desde os primeiros códigos de leis brasileiras republicanas (iluminados pelas declarações europeias e americanas dos direitos humanos) até a organização e funcionamento de nossos órgãos judiciários pós 1889. Chamo de distorção aquilo que no título daquele capítulo da dissertação chamei de perversidade e é sobre isso que vamos refletir agora. Tentaremos entender o tanto de perversidades (transbordamentos de um avesso ou corrupções) de diferentes matizes que podemos encontrar ao examinarmos as relações que abrigam-se sobre a denominação de confiança em nossos pais. Não estou falando aqui apenas e diretamente sobre os tais cargos de confiança que são, em última instância, o principal objeto de análise do conjunto dessa parte do ensaio, falo das relações de confiança entre pais e filhos, entre pessoas casadas ou que namoram, entre vizinhos, professoras(os) e alunos(as) e tantas outras possibilidades de encontros entre indivíduos, entre os quais os locais de trabalhos nas empresas privadas, os órgãos formadores da estrutura do Estado brasileiro e as diferentes representações políticas culturais, tais como os partidos, as igrejas, os sistemas de atividades culturais e de lazer, como o futebol, o cinema, a televisão.
  3.          Levantando o véu dessa torção que introduz o conceito de trabalho livre no Brasil como um acontecimento de fundamento ontológico, uma realidade exata de pessoas livres, falada, pensada e desejada, mas não existente como memória coletiva, percebemos, na leitura de historiadores, antropólogos e sociólogos brasileiros, que as três raças e tantas mais etnias que existiram nesse país, em seus quase quatro séculos de muitos escravismos diferentes formavam sólidas “normalidades” diferentes. Nada no mundo escravocrata brasileiro é exatamente normal porque na formação do vínculo relacional há um profundo e insuperável desconhecimento do “outro”. A condição de “ser mais próximo de um animal” para um indivíduo enfurecido ou estranho ao meu modo de entendimento sobre racionalidades é uma percepção até hoje utilizada por qualquer um de nós, ainda que não explicitamente. No máximo alguns vanguardistas adeptos de filosofias que reconhecem capacidade racional e de cultura em alguns animais os entendem próximos ou portadores de algo assim como uma dignidade própria a nossa espécie por definição epistemológica de partida. Mas mesmo esses acabam afirmando a animalidade maior presumida dos humanos que ainda devoram carne embalada de “animais” torturados pela indústria de alimentos. Assim, os negros e indígenas insubmissos nos séculos anteriores ao início da República foram tratados aqui como foram os loucos no século XVII europeu, era preciso “mostrar a animalidade deles”.  Essa animalidade não era uma ausência ignorante e isenta de emoções, uma cegueira tranquila e formalista, era uma situação de abissal desconfiança entre ambas as partes, o negro e seu dono, o indígena e seu captor, desconfiança necessariamente administrada por regramentos de contenção, de limitação desses medos recíprocos por meio de estratégias de conduta, normas de comportamentos... confiáveis. Assim, os negros e indígenas preservados, minimamente protegidos em direitos de sobrevivência eram os que se submetiam integralmente à condição de seres humanos diferentes e inferiores, mas essa integralidade de submissão era apresentada sob a forma de uma aparência, de uma conduta digamos teatral. Era uma submissão total em sinais de corpos em movimento e era sempre insuficiente pois só poderia se manifestar como forma, jamais como sentimento real. Era apenas a sua imagem, a visibilidade de uma couraça mostrada dentro de lógicas planejadas. Debaixo do escravismo e ao mesmo tempo a céu aberto os negros cantavam, dançavam, homenageavam seus mortos, casavam quando lhes era permitido, rezavam seus cânticos ou mesmo as rezas católicas, constituíam família e lutavam pela alforria de filhos, pais e mães, não raro a vida inteira.  E falavam. Entre si e com os brancos. Os negros e indígenas tinham suas próprias linguagens e também sabiam aprender a falar a língua dos brancos.
  4.           Louco, ainda, é eu estar aqui a me dedicar em explicações consistentes e detalhadas, para você que me lê, sobre o simples fato de que os negros se percebiam e eram percebidos como gente. Vivemos sob o signo da noção de escravos - como coisas - reverenciada como uma mitologia de um passado muito longínquo,  que a faz passar como obviedade inscrita como senso comum na tradição. O outro lado da moeda desse mesmo signo vem a ser a coisificação da noção de “pessoa” que passa a banalidade inscrita também no senso comum, como uma mesmidade para qualquer um: somos todos pessoas assim como o Windows 10 tem uma determinada janela de entrada para todo e qualquer computador que o possua. Como não seria louca uma reflexão sobre uma Cultura, a brasileira, toda ela constituída de sucessões de perversidades e engendramentos violentos? Como não seria dissonante um pensamento sobre a palavra confiança em um país onde só ficamos tranquilos a 100% se somos possuidores de capacidade total de autonomia individual frente às circunstâncias? O sonho de todo brasileiro e brasileira de ganhar uma fortuna em jogos lotéricos está mais associado ao desejo de “não depender de ninguém” do que a fantasias de grandiosas aventuras de consumo. Qualquer um “outro” já nos leva ao exercício de controle da tensão.
  5.          Ricardo Benzaquen de Araújo[5] desenvolve uma tese aprofundada sobre as imagens de um mundo real sincrético, plástico, repleto de ambiguidades e polimórfico. Este mundo todo posto em referência estética, formal e linguística a uma norma superior clara e eficaz: os seres humanos trazidos da África por meio de sequestros e seus descendentes poderiam ser vendidos e comprados e seus corpos pertenciam a seus donos  (creio que muitos indígenas ou mestiços aprisionados também, creio ter havido uma franja de informalidade nas relações de escravização, mas não possuo esse estudo). Mas era uma norma perversa e, portanto, mutante em sua aplicação concreta, insuficiente, e o mundo real fingia obediência o tempo inteiro. Um dos fenômenos da história do escravismo brasileiro foram as Ações de Liberdade que eram processos judiciais nos quais os negros escravos eram parte, representados por um advogado, uma vez que sua condição civil era “não responsável por si”. Nelas o negro alegava que seu dono o havia alforriado antes da morte e a contestação era feita pelos filhos do dono morto que alegavam a propriedade por herança. Como os negros tinham vivido uma vida inteira com seus donos eram possuidores de provas materiais sobre a relação afetiva construída, relação esta que os brindara com declarações de alforria em leito de morte do dono. Os negros ganhavam estas ações, os juízes reconhecendo suas alforrias concedidas.  Isso antes da lei da Abolição, o escravo existindo como autor – ainda que não responsável – em um processo judicial.
  6.        A perversidade é uma palavra que se relaciona com ideias como mistura, caos, desordem, hibridização. “Notemos que híbrido provém do grego “hybris”, que significa violência, excesso, descomedimento, exagero”, diz Janine Chasseguet-Smirgel e, ainda “o princípio da separação como fundamento da lei (...) A anomia implica a confusão, indiferenciação de valores” [6]. Essa palavra, perversidade (ou perversão) não aparece em Ricardo Benzaquen de Araújo, um antropólogo que escreveu e publicou sua tese em uma época na qual predominavam os entendimentos alegres sobre as qualidades mestiças e carnavalescas do povo brasileiro (a terrível década de 1990, onde todos os mecanismos de destruição do Estado brasileiro foram plantados e desenvolvidos), mas ela está em Gilberto Freyre e é muito bem iluminada pelo complexo conceito de “antagonismos em equilíbrio” desenvolvido  quase à exaustão por Ricardo. Nessa leitura, a família é a base da colonização e ela é, desde o início, mestiça. Os brancos acasalavam com as índias, segundo Gilberto, e são estas famílias – e não o Estado – que vão formar a aristocracia colonial. Em outra parte do ensaio poderemos estudar um pouco sobre o conceito de patrimonialismo, relendo Raymundo Faoro.
  7.          É Gilberto Freyre quem descreve várias situações destas famílias nas quais fica evidenciada a relação sado-masoquista nas relações sexuais entre o senhor e as escravas, entre o menino branco e o “muleque leva-pancadas” e, finalmente, o sadismo da senhora contra a mulata, “por ciúme ou inveja sexual” [7]. Examinando essas mesmas passagens, Ricardo mostra que Gilberto se move em seu texto da dor para o prazer, sem realizar uma síntese.  O que Benzaquen de Araújo não diz e nem eu disse na década de 1990 (porque nós não éramos capazes de falar sobre nós mesmos e nem refletir sobre como nossos lugares de fala estavam amordaçados por armadilhas de um tempo que só começou a desatar e transbordar seus descontentamentos precisamente em junho de 2013), é que reside exatamente na tensão desse equilíbrio sem síntese a mais profunda desconfiança que jamais foi descrita em nossos cenários de grandes mídias controladoras de opinião.
  8.         Eu havia escrito, na parte um, que este capítulo abrigaria mais três pontos, que eram: 1. Significados históricos e significados possíveis para a palavra “confiança” no serviço público federal brasileiro; 2- As palavras “trabalhador”, “trabalhadores” e suas possibilidades de significantes dentro do serviço público federal; 3- Apontamentos para uma refundação de organizações dos servidores públicos federais do judiciário brasileiro. E que com essa parte dois estaria encerrada minha intervenção no debate futuro sobre os rumos do SINTRAJUFE. Creio que propus esse formato ainda pressionada pela desconfiança de não encontrar interlocutores, um medo ainda obediente aos infelizes três minutos de assembleias que não estudavam qualquer conteúdo e eram apenas plebiscitárias. Mas como ainda ter pressa diante de uma configuração política que evidencia seus rumos em direção ao caos? Como continuar fingindo que o nosso “eu” é pessoa e que os “outros” coisas que se virem? Uma imensa multidão de milhões de “outros” coisas? Pessoas coisas aos montes, evitamos dizer animalizadas – mas pensamos – como algumas torcidas organizadas dos grandes clubes de futebol que saem às ruas para cumprir rituais de danças ao final das quais aparecerá um morto? E coisas tão desejadas, como aquele lindo Jeep da propaganda, que ganham a potência de nos pessoalizar como indivíduos confiáveis?
  9.           Mantenho a estrutura do ensaio. Seguirei desenvolvendo essa reflexão até alcançar significados possíveis da palavra confiança, retornarei ao tema da palavra “trabalhador”, e encontrarei ideias para refundarmos um judiciário brasileiro confiável. Mas vou começar fazendo um grande esforço emocional para confiar em mim mesma, que escrevo, e para confiar em você que me lê.  Sejamos pessoas, tentemos ao menos.





[1] BEAUCHESNE, Hervé. História da Psicopatologia, São Paulo, Martins Fontes, 1989, pg.19.
[2] Idem, pg.19.
[3] “a reificação do escravo produzia-se objetiva e subjetivamente”. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional – O negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
[4] “A humanidade se criou pelo trabalho e, por mediação dele, se concebeu humanamente – nisto reside a verdade da fenomenologia hegeliana. Já ao homem escravo só foi dado recuperar sua humanidade pessoal pela rejeição ao trabalho”. GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial, São Paulo, Editora Ática, 1985.
[5] BENZAQUEN de Araújo, Ricardo. Guerra e Paz – Casa-Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro, ED 34, 1994.
[6] CHASSEGUET-SMIRGEL, Janine. Ética e Estética da Perversão. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.
[7] FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala, Rio de Janeiro, Record, 1990, pg. 50.

Por um serviço público federal brasileiro civil, humano e cuidadoso - parte um

1.       


  1.      Gostaria de escrever um ensaio consistente lançando uma reflexão das mais importantes na atualidade: precisamos estudar a ideia de que “os servidores públicos só pensam em conseguir mais dinheiro pra acumular mais patrimônio e poder gastar mais e mais em shoppings centers daqui ou de Miami ou lojas chiques ou não tão chiques de vários lugares do mundo, como Paris, ou Roma, ou cidades orientais repletas de balangandãs luminosos”.  Daqueles textos com índole positivista, cheios de citações, de preferência em inglês ou alemão, cheios de dados estatísticos, com jeito de texto que fala toda a verdade. Gostaria de ter a força da escrita de um intelectual acadêmico consagrado, com vários livros bem distribuídos e vendidos, e saber com que linguagem seria possível abordar esse assunto de tal forma que me tornasse muito convincente e capaz de inaugurar um debate mais do que necessário, urgente, entre os filiados ao Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no Rio Grande do Sul, o SINTRAJUFE, o meu sindicato.
  2.        Infelizmente não tenho esse lugar da fala e não passo de ser a voz de uma técnica judiciária que desejou ir a um congresso (ou plenária, já seria bom) nacional de servidores públicos do judiciário, no Brasil, durante quase trinta anos e nunca conseguiu. Bom, na verdade não é só esse o meu currículo (nunca somos um único “si mesmo”, nem por um minuto, um “eu” completo e acabado, imóvel, no dizer de Judith Butler) e deveria ser dito, nesse ponto, que sou uma das três mulheres que chamaram a primeira reunião do primeiro núcleo de apoiadores do Partido dos Trabalhadores na Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul, na década de 1980. Fui também membro do comando da primeira greve geral no Brasil, em 1983, participante do núcleo de ação do bairro navegantes, conduzido pela costureira Avani Keller, belos tempos aqueles. Também poderia ser escrito, agora, que a autora deste texto cansou de se sentir humilhada em assembleias gerais dos servidores da Justiça do Trabalho (realizadas em Porto Alegre) quando, às poucas vezes que conseguiu conquistar o microfone em uma reunião dessas, ouviu a inesquecível chamada de “um minuto!” quando apenas tinha falado por dois agoniados minutos e chegado ao meio de um pensamento que vinha de dentro da mais séria e sincera preocupação, demonstrando que não só a mesa da tal assembleia não se interessava pelo que era dito, bem como a própria assembleia não tinha o menor interesse em ouvir alguma ideia desconhecida e não defendida por alguma das organizações políticas das tradições da esquerda brasileira.
  3.       Não vou declinar nomes e siglas. Registro, para fins de máxima clareza, que o primeiro sindicato dos servidores públicos federais, no RGS, o SINTRAJUSTRA, da Justiça do Trabalho, foi construído com hegemonia absoluta da esquerda e que todos os que se filiaram a ele, e posteriormente ao SINTRAJUFE, adotaram a conduta de dedicar um voto de confiança a essas organizações de esquerda, aceitando métodos de direção que desfavoreciam intensamente a participação de servidores desvinculados a uma daquelas organizações. As dinâmicas das assembleias excluíam falas não contidas em um limitado e simplificado sistema de conceitos sobre os objetos de atenção das atitudes coletivas dos servidores reunidos, como se esses servidores não tivessem – na sua maioria esmagadora – curso superior e não fossem aptos a elaborações mais inteligentes sobre a vida real e a sociedade brasileira. Como se não fossem servidores públicos concursados, necessariamente capazes de pensar o país em suas múltiplas nuances. E todo o quadro funcional aceitava de bom grado essa condução da esquerda Lulalá, inclusive a tal direita, que é, portanto, cúmplice dessa esquerda em seus métodos sindicais populistas e fomentadores do individualismo consumista e teria de fazer a mesma autocrítica solicitada agora, raivosamente, pelas ruas.
  4.        Hoje, no momento em que escrevo, são 31 de março de 2016. Portanto eu vou falar quantos minutos a minha fala necessitar, em homenagem a minha própria luta, desde 1977, e à luta de milhares de brasileiros contra a ditadura militar e todas as outras ditaduras que sempre estiveram em algum lugar geográfico ou político dentro desse país, desde 1500 (desde antes, diriam as feministas mais radicais). Não, calma, já ia eu adentrando pela fala convulsionada, tão cara a essa tradição de esquerda, tão usada nos microfones nas últimas três décadas, aquelas falas que por encanto sempre cabiam em três minutos, nunca eram admoestadas com um aviso rigoroso (um minuto!) e recebiam aplausos sem dúvidas e sem ônus algum. O assunto de agora é o seguinte: a diretoria do SINTRAJUFE lançou um manifesto no Facebook com o texto anexado no fim deste aqui e com a foto que ilustra essa publicação minha (em meu blog pessoal). Foi intensamente criticada pelos servidores que se organizam sob a hashtag #naovaitergolpe o que me motivou a começar uma “saraivada” de críticas, já que entendo que a foto e o manifesto inauguram um novo momento político no qual a esquerda deverá ser duramente criticada pelos servidores públicos que queiram proteger e ampliar seus direitos à participação política. E, com ela, criticaremos a tal “direita”, pois que esta sempre esteve ao lado ou subsumida à direção sindical da esquerda, enquanto lhe era cômodo. Em um minuto, pois já sinto o bafo quente de diretorias imaginárias em meu pescoço, alinhavo um resumo: entendo que nessa postagem da imagem os dirigentes enunciaram uma posição de DIRETORIA do sindicato, diretoria eleita, diga-se de passagem. Uma posição que julgo errada, mas que inova o comportamento até agora prenhe de sentimentos corrompidos dos membros do conjunto de todas as posições políticas que atuaram no sindicato desde que este foi fundado. Chamo de “sentimentos corrompidos” um sistema de conduta no qual a sinceridade é o que menos importa, ou melhor, deve ser evitada totalmente, porque as estratégias de ação produzem falas que são usadas como alegoria de um conteúdo que não pode ser falado.  A corrupção não é construída pela ação pontual de “grandes bandidos imorais”, ela se desenvolve a partir de pequenas manipulações mentirosas, enganadoras, cotidianas em espaços da existência comum, todos sabem, e só a partir daí ela vai agregar ações de grande porte, de grupos organizados. Em novos textos desenvolverei melhor o tema, por ora já está bem entendido.
  5.         Então, o grupo que assume esse manifesto de tipo “que se vão todos” adota agora uma atitude que não garante uma aliança com outras forças políticas e que sugere que o grupo se oferece como futura minoria, ainda que hoje ocupe o lugar de diretoria do sindicato. Esse é um comportamento inédito em ruptura com a tradição de acertar pendengas nas cúpulas e oferecer às tais bases um mingauzinho mastigado de conteúdo amorfo ou alavancado pela aparentemente eterna busca de poder aquisitivo para os filiados no sindicato. Por essa característica inédita saúdo a diretoria do meu sindicato – o SINTRAJUFE – e a parabenizo pelo comportamento corajoso e transparente, não obstante entenda que – por razões que não serão elencadas aqui – esse grupo político na atual diretoria está manifestando um erro de entendimento sobre a presença e solidez da democracia no país e a segurança de garantias mínimas de exercício de direitos pétreos constitucionais para os cidadãos brasileiros.
  6.         Bom, nesse ponto o leitor que se orienta pela ideia de CELERIDADE, não como um princípio jurídico daquilo que acontece no tempo a que se destina, que lhe é condizente, mas como uma ideia de “vencedor da fórmula um”, uma noção “Ayrton Senna” do acontecer da vida, com tudo o que de trágico a acompanha, esse leitor apressado e sem tempo poderá abandonar a leitura. Até aqui o texto tinha o objetivo de sugerir a necessidade de novas aberturas reflexivas que não mais indiquem culpados fáceis e inocentes “bacanas” (detesto essa palavra-uniforme da Rede Globo e que significa coisas ou pessoas “adequadas e bem enquadradas”), ao menos em um ambiente que se afirma como democrático, como o espaço sindical.  Daqui para frente teremos mais seis pontos, nos quais serão abordados conceitos, situações e valores que orientaram o movimento sindical brasileiro e especificamente o sindicalismo dos servidores federais nas últimas três décadas e que julgo merecedores de críticas consistentes e pensadas em coletivos que venham a se organizar no foco de uma resistência à guerra (qual guerra? A das bancas capitalistas contra as etnias fragilizadas em todo o planeta, contra os povos sacer – sacrificáveis – em favor de uma nova acumulação primitiva de capital). Vou elencar os seguintes temas: a expressão PLANO DE CARGOS E SALÁRIOS como bandeira central; a ideia de CONFIANÇA, no conteúdo dos cargos de chefia ou de assessoria na estrutura do Judiciário brasileiro; o conceito de TRABALHADORES adotado como signo para os servidores públicos federais. Por último, apresentarei uma ideia rascunho de POSSIBILIDADES PARA UM RECOMEÇO DE ORGANIZAÇÃO DOS SERVIDORES FEDERAIS DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO.
  7.         Vamos adiante com os que já entenderam que a política dos “três minutos para as organizações falarem” deu com os burros na água. Vamos adiante com os que já entenderam que a vida não pode ser vivida às pressas sem que se perca a memória sobre o que significa a palavra cidadania. Por um “PLANO DE CARGOS E SALÁRIOS JÁ”. Isso não é uma bandeira de luta. Qualquer instituição, órgão, empresa ou cooperativa tem um esquema de cargos e salários. Quando entrei, por concurso público, na Justiça do Trabalho, o fiz para um cargo determinado, com atribuições definidas e inclusão precisa em um sistema de remuneração hierarquizado. Isso em 1983. Esse sistema vinha sendo construído desde o Estado Novo de Getúlio Vargas e, por favor, não me digam que ele não correspondia a “planos”. Argumentam os sindicalistas da era Lula/Dilma que suas diretorias sindicais construíram propostas para diminuir as injustiças nas estruturas existentes e que essas propostas estavam DENTRO dos projetos de novos PCS, que eram debatidos em reuniões de cúpulas com representantes do governo, essas reuniões das quais eu nunca pude chegar nem perto da chance de participar, e que esses conteúdos eram debatidos em congressos nacionais de servidores, sem qualquer ressonância de conteúdo na tal “base da categoria”. Que injustiças eram essas e quais eram as novas propostas? Só conseguimos nos lembrar de duas ideias que foram erguidas como bandeiras de luta: “PCS JÁ!” e “REPOSIÇÃO DE X%”. Havia uma mentira padronizada, normativa, proibida qualquer fala em contrário. Em todas as diferentes organizações políticas, ocupantes de direções sindicais (do antigo PSTU, passando pelo novo Psol e alcançando todas as correntes ligadas ao projeto “Lulalá”) foi unânime a certeza sobre o foco exclusivo em reivindicações de defesa da capacidade de compra, de consumo dos seus sindicalizados, em alguns casos com índices de início de movimento, de partida das negociações, diante dos quais brilhavam os olhos da maioria, pois correspondiam a uma enorme melhora do poder de consumo. Registre-se aqui, com a máxima clareza: brilhar os olhos e pensar “bah... se eu ganhar essa quantia vou poder comprar um monte de coisas caras”, para a condição de SERVIDOR PÚBLICO é a engendração de uma conduta corrompida, pois o servidor público escolheu uma função social de “pensar nos outros, na população local” em primeiro lugar.  Seria obrigação do servidor público pensar em toda a estrutura de salários do país, para só então afirmar algo sobre seu próprio salário individual. Se 180 milhões de brasileiros ganham menos do que cinco mil por mês, o servidor público poderá defender que precisa receber salário maior que isso, para poder ficar imune a compras de atitudes, para poder trabalhar pela melhoria da qualidade de vida dos “outros”, mas, de alguma maneira, terá que justificar as diferenças no enquadramento de um compromisso com o bem estar social em todo o território a que serve.
  8.         Há várias características perversas (no sentido de corrompidas, torcidas, deformadas) a serem elencadas e descritas sobre esse formato que ocupou o movimento sindical de um modo totalitário, mas essa narrativa é desnecessária porque todos sabemos, todos nós vivemos os sorrisos violentos (por arrogantes e autoritários) daqueles que tinham o controle dos microfones, nas assembleias e nos congressos sindicais. Essa forma segura demais surgiu depois do período de luta contra a ditadura militar, depois do primeiro PT, no qual os militantes eram gentis e generosos para com o sujeito ignorante e tinham um comportamento solidário e fraterno junto ao cidadão comum. Parece mesmo que o momento histórico no qual vivemos agora – esse golpe para derrubar Dilma Rousseff da Presidência da República – é de uma intensa e assombrosa psicanálise coletiva da esquerda brasileira, toda ela. Os que ficam de fora, os que simplesmente aderiram à linha discursiva do PMDB (partido que comanda a elaboração geopolítica visando uma nova hegemonia pós-Partido dos Trabalhadores) mesmo se dizendo de esquerda são desconsiderados, esquecidos, por ora. É a esquerda brasileira que tenta se reinventar, se entender, se repensar no interior da trincheira do #nãovaitergolpe.
  9.         Talvez eu devesse fazer aqui a minha confissão psicanalítica pessoal e aceitar o fato simples de a ideia de “via eleitoral” em substituição à “luta armada em prol da ditadura do proletariado” ter se realizado como uma permissão do grande capital, nacional e transnacional, aliado a todos os perversos e malvados de plantão.  Posso depor como testemunha e ré e confessar que no âmbito da cena pública a derrubada da ditadura militar, a partir de 1978,  se deu em meio a uma quase festa juvenil. Não seria de os mais velhos terem conversado com os jovens de 1980 sobre essa facilidade da saída da ditadura? Aqueles que tinham sido torturados acreditavam mesmo que a direita estava sendo banida e destituída da sua potência? Eu poderia fazer aqui uma longa análise de como a violência e a maldade como banalidades não foram retiradas dos lugares de mando e de como os subalternos foram terrivelmente humilhados durante toda a “Era Lula/Dilma”, não por uma suposta esquerda equivocada, mas pelos violentos de sempre, as pessoas para as quais um olhar triste, cansado e assustado de um subalterno só preocupava se implicasse em insubordinação. E poderia depor relatando a máxima conivência da tal esquerda com os procedimentos de ASSÉDIO MORAL praticados nos locais de trabalho em todo o serviço público federal. Isso era um impedimento de partida já posto pelos donos do poder à saída da ditadura, essa marcação de censura consagrada na derrota eleitoral do Lula em 1989 e na mudança de atitude do PT rumo à conciliação com os que impunham as privatizações, as terceirizações, a invenção da produtividade abusiva por meio do uso dos computadores para forçar os subalternos a experiências inéditas de definir até onde eles poderiam ser forçados à velocidade e ao adoecimento. Isso já não era um projeto da esquerda. Por isso eu não conseguia falar com clareza e objetividade nas assembleias gerais, por isso eu pegava o microfone para balbuciar que aquilo tudo era uma enorme mentira.
  10.   Eu dizia (antes de ouvir a mesa me oferecer signos da ilegitimidade da minha fala, de como eu era inútil e não deveria nem ter comparecido à assembleia), dizia que A LUTA NÃO DEVERIA SER ECONÔMICA, MAS SIM IDEOLÓGICA; QUE NÃO DEVERIA SER POR CATEGORIA, MAS SIM EM GRANDES ACONTECIMENTOS UNIFICADOS DE TODOS OS TRABALHADORES; que a própria ideia de sindicato dos trabalhadores, para nós servidores públicos, era uma mentira. “Nós somos o Estado brasileiro”, lembro-me como se fosse hoje das vaias que eu recebi de quatrocentos alegres e irreverentes servidores públicos reunidos em assembleia geral, ao dizer essa frase, a meu ver atual tão conectada ao ontológico por meio de uma ideia óbvia. Éramos mesmo uma parte do Estado brasileiro, mas aquela representação de um conjunto de três a quatro mil servidores só se pensava, já àquela altura, como consumidores reunidos sob a fórmula “trabalhadores”. Fórmula tão corruptivelmente socializada para todos os brasileiros membros dos 10% da parte de cima da cadeia alimentar no país. Todo o mundo virou “trabalhador” no Brasil da Era Lulalá. Isso, por si só, já era uma gigantesca corrupção de símbolos que deveria ser atentamente estudada agora. Comandados por uma mesa que distribuía várias inscrições para um mesmo grupo político e divertia-se em cortar a palavra de um indivíduo desarticulado e sem partido qualquer, os tais “trabalhadores” se compraziam em humilhar pessoas como eu. Lembro-me agora dos nomes de quem me desmereceu em intervenções me condenando por eu não estar sendo “classista”. Colegas esquerdíssimos. Eu era uma Cassandra (personagem mitológica feminina trágica, uma dos dezenove filhos do rei Príamo e da rainha Hécuba de Troia, que tentou avisar os troianos sobre os riscos de enfrentar uma guerra contra os gregos e foi executada como bruxa por ter previsto a derrota) tresloucada e meu comportamento um mero desatino, reconheço. Não condeno aquela já velha esquerda ao fogo do inferno (mesmo porque o Papa Francisco já avisou que esse fogo não existe) e os convido a essa reflexão não mais contida nas facilidades dos teatrais três minutos. Reconheço os últimos trinta anos como uma Era para dentro da qual fomos todos sugados, envolvidos em nossas precariedades existenciais. Defendo o perdão e a compaixão dentro de uma conduta amadurecida e direcionada à construção de uma nova ética sem a violência da que foi construída por aquela esquerda do bloco “lulalá”. Violência de esquerda apoiadíssima pela direita que hoje a crucifica, a transforma em Geni e se comprar em retornar a si própria, direita, como o comandante de sempre, no de sempre Zepelim prateado.
  11.  Agora, quando a situação de desordem institucional no Estado brasileiro evolui para impasses que jogaram milhões de pessoas nas ruas em passeatas e atos públicos de diferentes e antagônicos matizes, a inutilidade de falas discordantes desapareceu porque o cenário político é mesmo polifônico e procura-se desesperadamente soluções pacíficas para o impasse de trágicas proporções. Há quem diga tratar-se apenas de um desastre da direita, e que uma renovada de ânimo de petistas e apoiadores de última hora conduzirá a nau iluminista em direção a mais um mandato e novos destinos graciosos. Mas são poucos. Predomina um sentimento de incredulidade diante do abissal risco de sofrimentos futuros para a vida dos brasileiros comuns. Faz-se hegemônica a ideia, a cada dia que passa, de que aquele sindicalismo tranquilo e gerencial tem seus dias contados. E é nesse novo quadro das condições subjetivas da maioria da população que a ideia de CONFIANÇA como critério de escolha de servidores para ocupação de cargos de chefia ou assessoria no serviço público federal poderá acolher reflexões inovadoras e fecundas. Mais que isso, a ideia de CONFIANÇA deveria, e proponho que deva, nortear a refundação de novos referenciais éticos para o serviço público federal brasileiro nos quais a credibilidade dos seus servidores e a confiança tecida entre eles e deles para com a sociedade civil seja um marco fundante de um novo patamar na construção do Estado Democrático de Direito no Brasil.
  12.    Este documento terá os pontos seguintes desenvolvidos em uma parte dois a ser publicada em breve: 1. Significados históricos e significados possíveis para a palavra “confiança” no serviço público federal brasileiro; 2- As palavras “trabalhador”, “trabalhadores” e suas possibilidades de significantes dentro do serviço público federal; 3- Apontamentos para uma refundação de organizações dos servidores públicos federais do judiciário brasileiro. 

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Nota da direção do Sintrajufe/RS: fora todos os corruptos! eleições gerais já!

       Diante da crise política por que passa o Brasil, a Direção Colegiada do Sintrajufe/RS aprovou, por maioria, a publicação de nota com a posição da entidade sobre a conjuntura atual:Fora todos os corruptos! eleições gerais já!
1. O Brasil passa, hoje, por uma das mais profundas crises políticas de sua história. A população assiste, estarrecida, a sucessivas revelações de novos escândalos de corrupção a partir da Operação Lava-Jato, atingindo em cheio o governo Dilma e as demais instituições da República. A divulgação de áudios de conversas telefônicas do ex-presidente Lula e a delação premiada do senador Delcídio do Amaral (ex-líder do governo no Senado e principal articulador da manutenção do veto 26) foram apenas os últimos episódios de escândalos envolvendo Dilma (PT-RS), Lula (PT-SP), Eduardo Cunha (PMDB-RJ), Renan Calheiros (PMDB-AL), Aécio Neves (PSDB-MG) e centenas de outros parlamentares investigados. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, tem vários de seus ministros citados como possíveis braços de apoio de acusados junto ao Poder Judiciário. A crise atinge o governo, mas vai além deste: o regime está, integralmente, apodrecido.
2. O governo Dilma agoniza. As relações promíscuas com empreiteiras, a prisão de lideranças do governo e do PT e até a nomeação, como ministro de Estado, de um investigado retiram o pouco de credibilidade que ainda restava. A atual e lamentável situação é consequência da opção feita pelo PT anos atrás, quando decidiu abandonar um projeto, trair milhões que nele acreditavam e fazer “novos amigos”: os ricos e poderosos que, em sua origem, buscava combater. Ao aderir ao programa, o PT sucumbiu também ao modus operandi tradicional de seus novos aliados: a corrupção. Um giro de adequação para tornar-se partido da ordem, um caminho sem volta que, agora, cobra seu preço com o naufrágio do governo em um mar de lama, ausência total de credibilidade e impopularidade recorde. Definitivamente, o governo não tem mais condições de seguir.
3. A lama atinge o governo, mas não se restringe a ele. Não há como ignorar as inúmeras acusações que recaem sobre boa parte dos políticos que cobram a queda de Dilma. Toda a sua linha sucessória, sem exceção, está sendo investigada na Operação Lava-Jato: Michel Temer, Eduardo Cunha e Renan Calheiros são acusados de receber propina, eleger-se com dinheiro sujo da corrupção, manter contas secretas no exterior, entre outros crimes. Aécio Neves, que outrora buscava se constituir como alternativa, não tem credibilidade nenhuma depois de ser, provavelmente, o político mais vezes mencionado nas investigações. Nenhum deles é opção, todos eles devem ser investigados e punidos. A disputa pelo poder entre diferentes quadrilhas não nos obriga a defender qualquer uma delas. Exigimos a punição de todos os corruptos. Fora Dilma, Temer, Cunha, Renan, Aécio: Fora Todos! Nesse contexto, com descrédito absoluto dos poderes Executivo e Legislativo, devemos exigir a realização de uma verdadeira reforma política. Não aquela defendida pelo governo em aliança com os setores mais corruptos e reacionários do Congresso (e que nunca saiu do papel), mas uma reforma que, além do fim do financiamento privado de campanhas, aponte para o empoderamento do povo, com dispositivos como o referendo revogatório de mandatos, presente na Constituição de diversos países. No mesmo sentido, é urgente a convocação de eleições gerais, devolvendo à população o direito de escolher seus novos representantes. É essa a saída mais democrática, dando voz à soberania popular, única alternativa para efetivamente derrotar as castas políticas que atuam a serviço da corrupção e dos poderosos.
4. A Operação Lava-Jato deve continuar e se aprofundar. Sua importância fica evidente a partir de qualquer análise com mínima independência. A corrupção não é inédita na história do Brasil. Mas, pela primeira vez, assistimos a políticos poderosos sendo colocados na cadeia após roubarem a população. Por outro lado, as medidas arbitrárias adotadas pelo juiz Sérgio Moro e a flagrante seletividade nas investigações devem ser denunciadas e cobradas. Não aceitamos, por exemplo, a determinação de sigilo na "lista Odebrecht", na qual constam mais de 200 políticos de diversos partidos, dos quais 25% são do Rio Grande do Sul. Exigimos a total transparência e a quebra de sigilo das investigações, com punição a todos os corruptos, de todos os partidos, sem qualquer proteção ou exceção. Essa importante investigação, assim como várias outras, não ocorre sem o empenho de muitos servidores do Judiciário Federal, apesar dos dez anos sem reposição salarial, sem respeito por parte dos governos e da cúpula do Judiciário. São os servidores que garantem a realização da justiça, apesar de toda a injustiça com que são tratados.
5. Há um golpe em andamento. Não se trata de golpe contra o governo, mas a partir dele: um golpe contra os trabalhadores. Após a edição da Lei Antiterror, que criminaliza manifestações públicas, Dilma acaba de enviar ao Congresso o PLP 257/16, nova medida de seu plano de ajuste fiscal. O referido projeto condiciona a renegociação das dívidas dos estados ao congelamento de salário dos servidores estaduais. Além disso, prevê proibição de qualquer reajuste aos servidores federais, suspensão de novas contratações e, até mesmo, plano de demissão voluntária como forma de contenção de gastos. Sem falar na nova Reforma da Previdência, já prometida por Dilma. Um governo que, mesmo prestes a cair, continua a nos atacar é indefensável. Não é em nada diferente dos governos do PSDB, cuja queda um dia foi exigida pelo PT e pelo sindicato. Aliás, a falsa polarização existente entre defensores de um mesmo projeto tira a atenção do ataque em curso contra nossos direitos. Brigam para ter a chave do cofre, mas concordam em deixá-lo fechado para os trabalhadores. É esse o golpe que devemos enfrentar e derrotar. Esse objetivo não conseguiremos marchando ao lado do governo, tampouco fazendo coro a grandes empresários e banqueiros: apenas com independência e em unidade com o conjunto de nossa classe poderemos, efetivamente, enfrentar o ataque a nossos direitos, bem como lutar por novas e maiores conquistas.
6. Nossa categoria, em particular, acumula mais de 50% de perdas salariais nos últimos dez anos. Depois de muita enrolação e da maior mobilização de nossa história, STF e governo anunciaram, em fevereiro, um “acordo” em torno de novo substitutivo para o PLC 2.648/15. Conforme informaram, o projeto seria aprovado no mês de março, para sua implementação a partir de 1º de abril. No entanto, as últimas medidas do governo caminham em sentido oposto, com mais cortes de gastos às nossas custas. Ironicamente, o “acordo” de Dilma e Lewandowski parece ser apenas mais uma piada de 1º de abril. Não aceitaremos mais enrolação. É hora de reagir. Seja qual for a conjuntura, seja qual for o governo, a valorização da categoria deve ser sempre nossa principal bandeira. Por isso, convocamos todos(as) à mobilização para defender nossa dignidade e cobrar a imediata aprovação de nossa reposição salarial e a rejeição do PLP 257/2016. Basta de mentiras! Exigimos respeito!
                                                                                    Direção Colegiada do Sintrajufe/RS