Por um serviço público federal brasileiro civil, humano e cuidadoso - parte dois

  1.              Como construir relações baseadas na confiança em um país de 516 anos de vínculos emocionais alimentados pelo medo? Em 1996 escrevi um capítulo de uma dissertação de mestrado com o título “O Brasil masoquista da perversão moderna” onde tentei entender um pouco sobre a enorme crueldade do escravismo especificamente brasileiro. Relendo o estudo vinte anos depois seleciono e reescrevo a partir de trechos demonstrativos de como a intensidade da violência nas relações entre indivíduos na sociedade brasileira tanto deforma quanto inibe conteúdos relacionados à palavra confiança e, também, carrega formas denominadas de “confiança” para zonas emocionais de exercício de subordinações em situação de sofrimento causando diferentes impactos sobre os coletivos nos quais essas experiências relacionais se configuram como pregnantes, se não como normativas.
  2.           Na Europa dos séculos XVI e XVII foram criados os primeiros hospícios, ou casas de correção, nas quais eram internados “os ociosos, os vagabundos, os indigentes sem trabalho, os libertinos, os dissipadores, os debochados” e também “os alienados e dementes”, segundo Hervé Beauchesne[1], e nesses locais os dementes eram exibidos atrás das grades, e plateias zombavam da loucura. “Se os loucos fossem perigosos, eram acorrentados sobre a palha; o importante era mostrar a animalidade deles” [2]. Antes disso, as concepções da igreja católica sobre loucura e normalidade orientavam os modos de ver e sentir sobre os indivíduos que perdiam a razão e eram por isso vistos como amens e furiosus, seres nos quais a alma espiritual havia se perdido e, por isso, resultavam condenados a um estado animal. Foi durante esse período medieval e renascentista europeu que o Brasil conheceu seus primeiros três séculos de escravismo.  As noções de que no Brasil o escravo era considerado coisa e não pessoa foram popularizadas a partir de teses escritas na década de 1960, em particular os livros de Fernando Henrique Cardoso, Escravidão no Brasil Meridional [3], e Jacob Gorender, O Escravismo Colonial [4], e ocuparam o imaginário popular como um senso comum de lá até hoje.  A ideia de que, bem ou mal, houve uma lei da Abolição e o trabalho veio a se tornar livre a partir de 1888, tornando os negros portadores da condição jurídica de pessoa,  levou para esse conteúdo de entendimento sobre o ontológico a sensação de “problema resolvido” e “assunto encerrado”. O tema retorna ao senso comum a partir das políticas públicas criadas nos governos de Lula e Dilma, do PT, mas agora sob a ideia de “preconceito” ou “racismo” de alguns indivíduos não portadores de uma razão esclarecida. É muito importante começar nossa reflexão sobre a confiança  a partir do entendimento de que os modos de ver e sentir do Brasil escravista não se resumiam a uma espécie de díade tranquila e pacificada na qual o indivíduo negro era tido por animal pelo indivíduo branco e, após a lei áurea, os brancos deixam-se enxergar os negros como pessoas e estes se revelam como tal, aliviados, finalmente. Não vou aqui aprofundar as consequências dessa fantasia coletiva instalada a fórceps no mundo real brasileiro. Quero apenas reter a ideia de que nessa fantasia, a de que a condição de pessoa livre, para negros puros e seus parentes mestiços, inaugurada um ano antes da República, fica situado o deslocamento distorcido que alimentou desde os primeiros códigos de leis brasileiras republicanas (iluminados pelas declarações europeias e americanas dos direitos humanos) até a organização e funcionamento de nossos órgãos judiciários pós 1889. Chamo de distorção aquilo que no título daquele capítulo da dissertação chamei de perversidade e é sobre isso que vamos refletir agora. Tentaremos entender o tanto de perversidades (transbordamentos de um avesso ou corrupções) de diferentes matizes que podemos encontrar ao examinarmos as relações que abrigam-se sobre a denominação de confiança em nossos pais. Não estou falando aqui apenas e diretamente sobre os tais cargos de confiança que são, em última instância, o principal objeto de análise do conjunto dessa parte do ensaio, falo das relações de confiança entre pais e filhos, entre pessoas casadas ou que namoram, entre vizinhos, professoras(os) e alunos(as) e tantas outras possibilidades de encontros entre indivíduos, entre os quais os locais de trabalhos nas empresas privadas, os órgãos formadores da estrutura do Estado brasileiro e as diferentes representações políticas culturais, tais como os partidos, as igrejas, os sistemas de atividades culturais e de lazer, como o futebol, o cinema, a televisão.
  3.          Levantando o véu dessa torção que introduz o conceito de trabalho livre no Brasil como um acontecimento de fundamento ontológico, uma realidade exata de pessoas livres, falada, pensada e desejada, mas não existente como memória coletiva, percebemos, na leitura de historiadores, antropólogos e sociólogos brasileiros, que as três raças e tantas mais etnias que existiram nesse país, em seus quase quatro séculos de muitos escravismos diferentes formavam sólidas “normalidades” diferentes. Nada no mundo escravocrata brasileiro é exatamente normal porque na formação do vínculo relacional há um profundo e insuperável desconhecimento do “outro”. A condição de “ser mais próximo de um animal” para um indivíduo enfurecido ou estranho ao meu modo de entendimento sobre racionalidades é uma percepção até hoje utilizada por qualquer um de nós, ainda que não explicitamente. No máximo alguns vanguardistas adeptos de filosofias que reconhecem capacidade racional e de cultura em alguns animais os entendem próximos ou portadores de algo assim como uma dignidade própria a nossa espécie por definição epistemológica de partida. Mas mesmo esses acabam afirmando a animalidade maior presumida dos humanos que ainda devoram carne embalada de “animais” torturados pela indústria de alimentos. Assim, os negros e indígenas insubmissos nos séculos anteriores ao início da República foram tratados aqui como foram os loucos no século XVII europeu, era preciso “mostrar a animalidade deles”.  Essa animalidade não era uma ausência ignorante e isenta de emoções, uma cegueira tranquila e formalista, era uma situação de abissal desconfiança entre ambas as partes, o negro e seu dono, o indígena e seu captor, desconfiança necessariamente administrada por regramentos de contenção, de limitação desses medos recíprocos por meio de estratégias de conduta, normas de comportamentos... confiáveis. Assim, os negros e indígenas preservados, minimamente protegidos em direitos de sobrevivência eram os que se submetiam integralmente à condição de seres humanos diferentes e inferiores, mas essa integralidade de submissão era apresentada sob a forma de uma aparência, de uma conduta digamos teatral. Era uma submissão total em sinais de corpos em movimento e era sempre insuficiente pois só poderia se manifestar como forma, jamais como sentimento real. Era apenas a sua imagem, a visibilidade de uma couraça mostrada dentro de lógicas planejadas. Debaixo do escravismo e ao mesmo tempo a céu aberto os negros cantavam, dançavam, homenageavam seus mortos, casavam quando lhes era permitido, rezavam seus cânticos ou mesmo as rezas católicas, constituíam família e lutavam pela alforria de filhos, pais e mães, não raro a vida inteira.  E falavam. Entre si e com os brancos. Os negros e indígenas tinham suas próprias linguagens e também sabiam aprender a falar a língua dos brancos.
  4.           Louco, ainda, é eu estar aqui a me dedicar em explicações consistentes e detalhadas, para você que me lê, sobre o simples fato de que os negros se percebiam e eram percebidos como gente. Vivemos sob o signo da noção de escravos - como coisas - reverenciada como uma mitologia de um passado muito longínquo,  que a faz passar como obviedade inscrita como senso comum na tradição. O outro lado da moeda desse mesmo signo vem a ser a coisificação da noção de “pessoa” que passa a banalidade inscrita também no senso comum, como uma mesmidade para qualquer um: somos todos pessoas assim como o Windows 10 tem uma determinada janela de entrada para todo e qualquer computador que o possua. Como não seria louca uma reflexão sobre uma Cultura, a brasileira, toda ela constituída de sucessões de perversidades e engendramentos violentos? Como não seria dissonante um pensamento sobre a palavra confiança em um país onde só ficamos tranquilos a 100% se somos possuidores de capacidade total de autonomia individual frente às circunstâncias? O sonho de todo brasileiro e brasileira de ganhar uma fortuna em jogos lotéricos está mais associado ao desejo de “não depender de ninguém” do que a fantasias de grandiosas aventuras de consumo. Qualquer um “outro” já nos leva ao exercício de controle da tensão.
  5.          Ricardo Benzaquen de Araújo[5] desenvolve uma tese aprofundada sobre as imagens de um mundo real sincrético, plástico, repleto de ambiguidades e polimórfico. Este mundo todo posto em referência estética, formal e linguística a uma norma superior clara e eficaz: os seres humanos trazidos da África por meio de sequestros e seus descendentes poderiam ser vendidos e comprados e seus corpos pertenciam a seus donos  (creio que muitos indígenas ou mestiços aprisionados também, creio ter havido uma franja de informalidade nas relações de escravização, mas não possuo esse estudo). Mas era uma norma perversa e, portanto, mutante em sua aplicação concreta, insuficiente, e o mundo real fingia obediência o tempo inteiro. Um dos fenômenos da história do escravismo brasileiro foram as Ações de Liberdade que eram processos judiciais nos quais os negros escravos eram parte, representados por um advogado, uma vez que sua condição civil era “não responsável por si”. Nelas o negro alegava que seu dono o havia alforriado antes da morte e a contestação era feita pelos filhos do dono morto que alegavam a propriedade por herança. Como os negros tinham vivido uma vida inteira com seus donos eram possuidores de provas materiais sobre a relação afetiva construída, relação esta que os brindara com declarações de alforria em leito de morte do dono. Os negros ganhavam estas ações, os juízes reconhecendo suas alforrias concedidas.  Isso antes da lei da Abolição, o escravo existindo como autor – ainda que não responsável – em um processo judicial.
  6.        A perversidade é uma palavra que se relaciona com ideias como mistura, caos, desordem, hibridização. “Notemos que híbrido provém do grego “hybris”, que significa violência, excesso, descomedimento, exagero”, diz Janine Chasseguet-Smirgel e, ainda “o princípio da separação como fundamento da lei (...) A anomia implica a confusão, indiferenciação de valores” [6]. Essa palavra, perversidade (ou perversão) não aparece em Ricardo Benzaquen de Araújo, um antropólogo que escreveu e publicou sua tese em uma época na qual predominavam os entendimentos alegres sobre as qualidades mestiças e carnavalescas do povo brasileiro (a terrível década de 1990, onde todos os mecanismos de destruição do Estado brasileiro foram plantados e desenvolvidos), mas ela está em Gilberto Freyre e é muito bem iluminada pelo complexo conceito de “antagonismos em equilíbrio” desenvolvido  quase à exaustão por Ricardo. Nessa leitura, a família é a base da colonização e ela é, desde o início, mestiça. Os brancos acasalavam com as índias, segundo Gilberto, e são estas famílias – e não o Estado – que vão formar a aristocracia colonial. Em outra parte do ensaio poderemos estudar um pouco sobre o conceito de patrimonialismo, relendo Raymundo Faoro.
  7.          É Gilberto Freyre quem descreve várias situações destas famílias nas quais fica evidenciada a relação sado-masoquista nas relações sexuais entre o senhor e as escravas, entre o menino branco e o “muleque leva-pancadas” e, finalmente, o sadismo da senhora contra a mulata, “por ciúme ou inveja sexual” [7]. Examinando essas mesmas passagens, Ricardo mostra que Gilberto se move em seu texto da dor para o prazer, sem realizar uma síntese.  O que Benzaquen de Araújo não diz e nem eu disse na década de 1990 (porque nós não éramos capazes de falar sobre nós mesmos e nem refletir sobre como nossos lugares de fala estavam amordaçados por armadilhas de um tempo que só começou a desatar e transbordar seus descontentamentos precisamente em junho de 2013), é que reside exatamente na tensão desse equilíbrio sem síntese a mais profunda desconfiança que jamais foi descrita em nossos cenários de grandes mídias controladoras de opinião.
  8.         Eu havia escrito, na parte um, que este capítulo abrigaria mais três pontos, que eram: 1. Significados históricos e significados possíveis para a palavra “confiança” no serviço público federal brasileiro; 2- As palavras “trabalhador”, “trabalhadores” e suas possibilidades de significantes dentro do serviço público federal; 3- Apontamentos para uma refundação de organizações dos servidores públicos federais do judiciário brasileiro. E que com essa parte dois estaria encerrada minha intervenção no debate futuro sobre os rumos do SINTRAJUFE. Creio que propus esse formato ainda pressionada pela desconfiança de não encontrar interlocutores, um medo ainda obediente aos infelizes três minutos de assembleias que não estudavam qualquer conteúdo e eram apenas plebiscitárias. Mas como ainda ter pressa diante de uma configuração política que evidencia seus rumos em direção ao caos? Como continuar fingindo que o nosso “eu” é pessoa e que os “outros” coisas que se virem? Uma imensa multidão de milhões de “outros” coisas? Pessoas coisas aos montes, evitamos dizer animalizadas – mas pensamos – como algumas torcidas organizadas dos grandes clubes de futebol que saem às ruas para cumprir rituais de danças ao final das quais aparecerá um morto? E coisas tão desejadas, como aquele lindo Jeep da propaganda, que ganham a potência de nos pessoalizar como indivíduos confiáveis?
  9.           Mantenho a estrutura do ensaio. Seguirei desenvolvendo essa reflexão até alcançar significados possíveis da palavra confiança, retornarei ao tema da palavra “trabalhador”, e encontrarei ideias para refundarmos um judiciário brasileiro confiável. Mas vou começar fazendo um grande esforço emocional para confiar em mim mesma, que escrevo, e para confiar em você que me lê.  Sejamos pessoas, tentemos ao menos.





[1] BEAUCHESNE, Hervé. História da Psicopatologia, São Paulo, Martins Fontes, 1989, pg.19.
[2] Idem, pg.19.
[3] “a reificação do escravo produzia-se objetiva e subjetivamente”. CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional – O negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977.
[4] “A humanidade se criou pelo trabalho e, por mediação dele, se concebeu humanamente – nisto reside a verdade da fenomenologia hegeliana. Já ao homem escravo só foi dado recuperar sua humanidade pessoal pela rejeição ao trabalho”. GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial, São Paulo, Editora Ática, 1985.
[5] BENZAQUEN de Araújo, Ricardo. Guerra e Paz – Casa-Grande e Senzala e a obra de Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro, ED 34, 1994.
[6] CHASSEGUET-SMIRGEL, Janine. Ética e Estética da Perversão. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.
[7] FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala, Rio de Janeiro, Record, 1990, pg. 50.

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