Por um serviço público federal brasileiro civil, humano e cuidadoso - parte três

  1.              Essa é a terceira parte de um ensaio no qual construo a defesa da ideia de que o Brasil é um país de estrutura (formas em múltiplas escalas e relacionadas entre si) tensionada em relações de poder inscritas em uma tradição escravista. Defendo que o fim da ditadura militar - consolidado na Constituição de 1988 - foi uma repetição da dinâmica de “excesso na alegoria” havida na Abolição da escravatura, cem anos antes. Sendo assim, todas as sucessivas perdas de direitos para alguns setores (professores, servidores públicos, aposentados, habitantes de periferia urbana, indígenas) e a posterior crise institucional desenvolvida em sua visibilidade desde o “junho de 2013” e amadurecida nos episódios da tentativa de impeachment a dividir o país em uma guerra de duas trincheiras, enfim, toda essa evolução não reflete mais do que uma permanência de longa duração.
  2.       Em síntese, vivemos em um país extremamente violento no qual os direitos humanos fundamentais não estão garantidos para a maior parte da população, na maior parte do tempo, e não estão garantidos o tempo inteiro para ninguém. Dos brasileiros, os mais ricos e célebres precisam se mover em carros blindados e com escolta armada e os mais pobres e invisíveis precisam deixar-se comandar por estruturas militarizadas de diferentes procedências. Da década de 1980 até hoje, a incipiente classe média nascida no desenvolvimentismo pós-30, migrou para lugares igualmente militarizados e de suas liberdades de escolhas, de estéticas, de comportamento afloraram medos, fissuras, compulsões, ausências de reconhecimento. Nesse enredo químico e físico escravocrata, a palavra CONFIANÇA se relaciona com significados de subordinação e fidelidade partidária ou familiar e as estruturas dos órgãos dos três poderes do Estado brasileiro se mantêm corrompidas por signos da tradição patrimonialista anterior à Abolição da escravatura. Esse patrimonialismo também foi corrompido – perdendo suas estratégias estáveis - pelas lógicas pós-modernas oriundas das engrenagens dos sistemas de produção e distribuição do Capital em sua fase comandada pelo sistema financeiro e pela nova tecnologia, em particular as técnicas e máquinas da área da informática, da química, da biologia e das teorias da linguagem. Resumindo, não estamos exatamente adentrando perigosamente em um Estado de Exceção porque nunca saímos dele de um modo consistente. Na verdade, não saímos de fluxos perversos de sociabilidade (não é isso, em síntese, o tal Estado de Exceção?) nem mesmo nas aparências, muito bem exemplificadas pela manutenção das gravatas como adereço vinculado à noção de seriedade e responsabilidade e seus congêneres saltos finos e enormes.
  3.               No modelo republicano de subordinação dos oprimidos, baseado nos conceitos de cidadania para todos e direitos individuais universais, a tensão central que produz as estruturas política e jurídica diz respeito à distância entre o estatuto jurídico e a condição real. Esse espaço não pode ser intransponível em um tempo tão alongado que faça o sujeito de direito tornar-se incapaz de alcançar o estatuto que lhe confere o direito, e realizar esse direito na vida real. O direito que nunca se realiza, que nunca é exercido, que acaba não sendo nem conhecido pelo indivíduo que deveria saber pratica-lo, esse direito só é um acontecimento real como uma ficção, mentira, delírio ou ilusão. Poderá ser um mito, ou participar da construção de um mito, mas aí já não mais será um direito.
  4.       Em 1990, os mais considerados intelectuais brasileiros ainda debatiam em suas teses universitárias a presença e as dimensões da personalidade do escravo brasileiro, nos diferentes momentos do escravismo (entre 1500 até 1888). As falas mais respeitadas dos discursos visíveis em nosso país ainda não sabiam dizer, de um modo unânime e consagrado, com que intensidade poderia ter havido nos negros (e em seus parentes mestiços e bastardos) uma ou várias ideias de “si mesmo” que abrigassem entendimentos sobre serem eles sujeitos de direito (e de que direitos).  A UNICAMP era um dos celeiros mais férteis nos quais se começava a falar sobre conflitos entre escravos crioulos (os nascidos no Brasil) e os boçais, africanos recém-chegados. Silvia Hunold de Lara, em 1988 – ano em que é promulgada a nova Constituição pós-ditadura militar – registra a presença de variados comportamentos de escravos, tornando as categorias “escravo” e “senhor” definidas uma em relação à outra em formas diferenciadas e ambíguas. Houve negros com diferentes entendimentos e sentimentos sobre suas possibilidades de posse e uso de direitos concretos, desde os que construíam laços afetivos sólidos com seus donos, passando pelos capangas que agrediam e matavam outros escravos e chegando até as negras lindas que conseguiam construir relações de cumplicidade definitivas que as protegiam e até permitiam que trouxessem ao mundo filhos bastardos, mestiços e alforriados, proles privilegiadas para o possível orgulho de suas mães. Nem aqui no Brasil e nem em lugar algum do mundo e da história da humanidade, o escravismo se reduziu a uma relação o tempo inteiro brutal. Em uma relação duradoura, de vida inteira possivelmente, não será viável que o cotidiano aconteça baseado apenas na brutalidade, na agressão direta e constante. Mesmo na escravidão das charqueadas, no extremo sul do Brasil, na qual não era raro que um escravo morresse depois de dois anos em meio ao gado, às mortes banais, ao sangue e às moscas e ao sofrimento constante, mesmo ali havia dinâmicas de apaziguamento das dores, de descanso e relaxamento.
  5.         É fundamental que se entenda que o escravismo é um ambiente no qual “ser escravo” é natural, normal e a crítica aos procedimentos e às subjetividades próprias às situações é muito difícil de ser feita. Kátia Mattoso escreve em 1982: “A inserção social do escravo, sua aceitação pelos homens livres numa sociedade fundamentada no trabalho servil, dependerá estreitamente da resposta que o trabalhador-escravo dá a seus senhores no plano da fidelidade, da obediência, da humildade. Essas três qualidades essenciais conformam a personalidade do ‘bom escravo’, pois assim o negro, que estava marginalizado e a quem o senhor deu um devoir faire, adquiriu uma competência, um savoir-faire, fonte de poder. Essa força proveniente do savoir-faire arrefece o temor, trata certas feridas abertas pelo desenraizamento da terra dos ancestrais, devolve ao homem escravo uma certa linguagem, uma nova morada, uma identidade particular numa espécie de contrato tácito e sólido”.[1]
  6.   .       Foi nessa mesma época (décadas de 1980 e mais ainda em 1990) – de debates intelectuais sobre o “si mesmo” dos escravos – que os primeiros processos de informatização no serviço público federal foram implantados. Nem mesmo os intelectuais dos cursos de doutorado nas universidades de ponta no Brasil tinham um conjunto de opiniões mais consolidado sobre a imensa crueldade do escravismo. O senso comum continuava sentindo-se séculos distante das gentes tratadas como animais, por uma mitologia consagrada nas escolas básicas. As grandes mídias já controlavam as emissões discursivas de um modo totalitário e tudo o que era dito e visto nas telas, revistas e jornais remetia a valores como velocidade máxima, jovialidade otimista como comportamento desejado, corpos atléticos e sempre disponíveis para o grande esforço. Rapidez, tenacidade, controle, atitude higienizada com sofrimentos e transtornos guardados em um interior invisível, imagem atlética, hirta, porém disposta a gestos suavemente heroicos. Talvez por uma operação mágica da história que viu um quase continente se desmanchar em fragmentos, a URSS desfazendo-se e dando espaço total (e caótico portanto) ao capitalismo concorrencial, passamos de um momento simpático, democrático e civil, com a inauguração das eleições diretas para presidente e a promulgação da Constituição “cidadã” de 1988, para um outro momento cheio de endurecimentos de controles manifestos na hegemonia absoluta do conceito de “qualidade total”, por si só uma ideia absurda e fascista falada com tanta naturalidade (própria do senhor de engenho) por gerentes que agora eram nomeados de “gestores”.
  7.          Lembro-me de vários episódios dignos de nota, na evolução dos acontecimentos que acabaram por produzir o conjunto conceitual de assédio moral no mundo jurídico brasileiro do direito do trabalho e mais especificamente do direito administrativo, voltado ao problema dos sofrimentos dos servidores públicos federais. Lembro-me com clareza do que significou sofrermos agressões que não tinham nome ainda, o que nos colocava em situação simbólica semelhante aos negros boçais, os recém-chegados nos navios negreiros: éramos intensamente agredidos por pessoas sorridentes e não tínhamos palavras para descrever nosso sofrimento. Sofrer de dor na lombar, no pescoço e nos olhos era um problema de velhice e inadaptação exclusiva do “eu” que sofria e era um problema a resolver “consigo mesmo”. Lembro-me que uma vez coloquei tanto spray anestésico e de anti-inflamatório no pescoço que a minha chefia da época falou, divertida: “mas tu estás é cheirando isso!...“, comentário que motivou risadinhas e risadonas nervosas de todos em volta. Um inesquecível detalhe foi o fato de que vivíamos uma época de incrível expansão do uso de vários instrumentos da nova tecnologia, desde a fotocópia, até a utilização de máquinas de datilografia eletrônicas, muito mais leves e propiciando uma velocidade muito aumentada. Já no final da década de 1990, o aparecimento de impressões em máquinas matriciais, a partir de computadores de edição de texto no espaço DOS, aquele das letras verdes em fundo preto, os TK3000. Inesquecível porque fez surgir o processo de grandes volumes e não raro com o tamanho entre 30 e 60 centímetros. Isso incluso em um período no qual foi detectado um fenômeno que se consagrou como “explosão judicial”. Lembro-me de ocasiões nas quais precisávamos ordenar os processos e coloca-los em prateleiras, primeiro uma vez por semana e depois todos os dias, momento em que utilizávamos todo o espaço do chão do lugar evitando apenas caminhar sobre os processos, ou tirando os sapatos para não marca-los. Lembro-me que todo o nosso sofrimento era tratado como sendo insignificante, pois que provisório, já que vivíamos a grandiosa introdução da tecnologia da informática e todas as novidades acabariam sendo sucedidas por “novas novidades”, sendo o futuro um lugar provavelmente paradisíaco no qual os jovens aproveitariam delícias de experiências diante das quais nós éramos heroicos “bandeirantes”, desbravadores de um futuro cheio de glórias e facilidades inimagináveis. Toda a nossa circunstância se revestia da caraterística da “desterritorialização”. Éramos como que boçais em navios a caminho de uma terra nova e desconhecida.
  8.            Mas deixemos as memórias para outra ocasião e vamos nos deter em um único dia sobre o qual eu tenho provas materiais de sua existência e de suas incríveis dimensões. Em 1999, houve a introdução do primeiro programa dedicado e em rede com telas de janelas, ou páginas, na Justiça do Trabalho do Rio Grande do Sul. Seu nome: INFOR.  Sobre esse dia, eu consegui a permissão e o apoio do sindicato para realizar um questionário nas Varas do Trabalho de Porto Alegre. Os dados nunca foram sistematizados e divulgados e eu deixei de atuar no sindicato, logo depois de sua aplicação, por desentendimentos políticos com membros da diretoria. Levei os questionários comigo e eles estão arquivados e em parte digitalizados. Em momento oportuno, espero que esse trabalho de pesquisa possa ser retomado e concluído, mas registro aqui um dos resultados que me pareceu mais impactante. Havia um conjunto grande de perguntas e foram respondidos perto de cem questionários válidos em um universo de 300 pessoas, aproximadamente. A tabulação destes cem questionários apresenta um inusitado desenho: todos os servidores responderam que eram muito inteligentes, tinham muita coragem e estavam muito entusiasmados no primeiro dia de implantação do primeiro programa em rede de atendimento ao público e atividades de secretaria. Todos menos os que anularam os seus questionários e duas servidoras apenas, que responderam que tinham algum medo, que não se sentiam plenamente inteligentes para tal situação e que se sentiam razoavelmente tensas. Diferentemente dos métodos utilizados sempre pelos sindicatos do Brasil e da Europa, até onde eu conheço, esse questionário foi entregue com identificação dos entrevistados. Daí que é possível identificar as duas mulheres e tentar entender porque somente duas mulheres de perfil de esquerda “outsider” e feminista se sentiram aptas a declarar fragilidades naquele episódio. Entendo que as pessoas estavam suficientemente apavoradas para se sentirem pressionadas a uma adaptação de máxima agilidade, como náufragos. Ou como negros sequestrados que precisam sair urgentemente da condição de boçais e integrar a condição de ladinos, os escravos que já haviam aprendido a linguagem do lugar, no Brasil colonial (e depois imperial) das grandes plantações e da mineração.
  9.        No entanto, esse novo ato inaugural de uma nova dimensão das tradições de fidelidade, obediência e humildade trouxe escalas inéditas dos mesmos valores patrimonialistas das lógicas das hierarquias e sistemas de funcionamento do Estado brasileiro. No Brasil colonial, os negros tinham uma expectativa de vida relativamente curta e o tráfico negreiro somado à reprodução da vida pela formação de instâncias relacionais locais alimentavam soluções de continuidade. No Brasil do início da informatização em massa, aproximadamente na década de 90, as soluções para a desterritorialização, o não pertencimento e a consequente crise de reconhecimento, estiveram ligadas não mais à reposição da mão-de-obra, mas agora sustentadas pela adição química generalizada. Os computadores entraram em cena apoiados na introdução maciça dos anti-inflamatórios, antipiréticos e analgésicos, da ampliação do uso de drogas legais e ilegais e dos antidepressivos, ansiolíticos e benzodiazepínicos. Os mais espertos ainda moveram-se em direção a um patamar de reconciliação com identidades de elite, de nobreza e de fidalguia (desde sempre buscadas por quem se abrigou nos espaços dos três poderes do Estado brasileiro) associando a medicação a atividades de esgrima (alguns exímios) de artimanhas e cenários psicanalíticos e da psicologia em geral. Em última instância, precisávamos nos tornar, o mais rápido possível ladinos, para não sermos excluídos de um futuro que se descortinava como generoso apenas para os mais jovens.





[1] MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1982, pg 102.

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