Faça amor, arrume a casa, reze e respire.

                                             Pedro Américo: pintor universal. Brasília, DF.


Na véspera do ano mil o senso comum esperava o fim do mundo. Ele não veio e surgiu então o renascimento na Itália e em todo o Mediterrâneo, com os primeiros ideólogos e cientistas que viriam a auxiliar, indiretamente, as falas masculinas que alimentaram os códigos dos inquisidores cristãos, como o Malleus Maleficarum, condenando os modos religiosos xamânicos às torturas e fogueiras. Nessa história toda, a “república” sempre significou uma hierarquia onde os conhecedores da linguagem e dos códigos sagrados detinham o controle dos exércitos. Assim, sempre quis a humanidade.
Não concordo com a dramaticidade dos textos que sugerem estarmos, no Brasil de 2016, à beira de um desastre imediato, de uma guerra imperialista ou civil. Estamos migrando para uma zona de desmanchamento do que teria sido um “estado nacional”, construído desde 1822, por um punhado de homens montados em cavalos e com suas espadas erguidas aos céus, à beira de um riacho chamado Ipiranga. Mais tarde, inventaram uma música, chamada hino, que começa com as palavras “ouviram do Ipiranga”, e que milhares de pessoas cantam juntas e em pé, ainda em 2016, antes de jogos de futebol nos quais aparecem homens que moram em várias partes do mundo e ganham mais de um milhão de reais por mês, vestindo uma camiseta amarela que homenageia aqueles lá, das espadas na beira do rio.
Então, esse desmanchamento do “estado nacional” já acontece desde sempre, em certa medida, nas bordas do que fica do lado de fora das imagens do tal riacho do Ipiranga e dos campos de futebol. Um exemplo que nos últimos dias tem me revoltado, e muito, é o nome atual da antiga copa Libertadores. Afinal, uma das riquezas do meu capital emocional é justamente o Internacional, meu time querido, ter ganhado essa copa e depois o mundial, e com gol do Gabiru sobre o Barcelona do Ronaldinho Gaúcho. Tipo vitória sobre o Grêmio também, na semiótica. Agora o negócio se chama Bridgestone. Isso sim foi um enorme ataque simbólico às Américas Latinas e não vi nenhuma esquerda protestar, vejam como estamos desarmados filosoficamente falando. Vejam como se organiza o Capital Financeiro em nosso território "nacional", cobrando juros que são, tecnicamente falando, roubo a céu aberto sobre os 90% mais pobres da população e sobre os 9% ensanduichados entre os pobres e os 1% ricos, nove por cento que vários petistas se dedicaram a “desmoralizar” tão escandalosamente como aquela deputada do marido preso, a que dava pulinhos de “sim,sim,sim”, orgasmos comedidos de donzela quase virgem em corpo de perua politizada. Veja a dimensão das terceirizações que simplesmente legalizaram todo e qualquer caixa dois ou desvio de dinheiro por caminhos ilegais ou fora do controle do tal “estado nacional”. E nossos juízes e juristas, os doutrinadores republicanos e nacionais, faz décadas, aceitando essas terceirizações e fazendo de conta que o Estado “solidário”, ou as grandes empresas “solidariamente responsabilizadas” realmente manteriam o controle das circulações monetárias e de renda.
Os textos apocalípticos partem da ideia de que tínhamos antes uma democracia razoavelmente agradável e tranquila e que cairemos numa zona de guerra civil. Não me parece que estávamos bem nesses últimos 25 anos, embora durante um tempo houvesse um PIB que se impunha como sucesso, e um discurso hegemônico feliz. Por sinal, quem quiser aprender um pouco sobre contenção da miséria leia o ótimo livro “Os pobres na idade média” de Michel Mollat, e veja como se pode passar séculos distribuindo bolsas famílias para contenção de miséria e proteção de direitos mínimos de sobrevivência.  E não me parece que quem tinha as rédeas da situação, até aqui, tenha perdido esse controle, não obstante a ingratidão tremenda para com o Partido dos Trabalhadores, sempre tão comedido, tão mercantilista, tão adorador do consumo. O que há é uma desordem violenta, mas controlada por quem a produz, nas instituições da República. Mas a "república" já era bastante formal e de superfície em grande medida. Não quer dizer que, excluindo o modelo "república" provisória e circunstancialmente em vários períodos, não houvesse um tanto de estrutura de proteção de direitos para uma parcela da população. E que a outra parcela, a maioria, já não estivesse mergulhada em situação de exercício bem limitado de direitos. Claro está que para que a parcela menor, 10%, continue a "manusear" um conjunto de direitos de tipo "capitalista", a parcela maior, 90%, precisa ser mantida ordeira e cumpridora das determinações que organizam a sua "subalternidade". Isso vai piorar um tanto? Talvez, mas não o suficiente para "estragar tudo", todo esse ordenamento de direitos mínimos para 90%. Então, seria bom que falas de desespero não se entusiasmassem tanto. Temos uma estrutura escravista de mais de três séculos, várias ditaduras e tirinhas de tempo de ensaios de algumas possibilidades de estética democrática. Então, o Brasil esta bem sólido em sua estrutura. Não vejo desespero em grande escala. Já somos adaptados a muita violência faz muito tempo. De nada adianta uma parte da esquerda se desesperar. Respirem, respirem, respirem.
Li um bom texto, dos inúmeros que se amontoam nas redes sociais (isso, sim, uma grande revolução no cogito sapiens sapiens) que falava estarem ameaçadas as “instituições fortes” no golpe no Brasil, ao qual Obama e sua linda família assistem de camarote. Uma pequena correção: "instituições fortes" (referindo-se à defesa das tais democracia e república) não é uma locução adequada porque a tal "família" tão alegada no congresso nojento está descrita na Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre e também no "Os Donos do Poder" de Raymundo Faoro. É uma família que vem de Roma antiga e podemos ler sobre isso no "História da Vida Privada – do império romano ao ano mil" de Paul Veyne e outros. Esse patriciado clientelista (clientes eram os amigos da família, nas cidades antigas no mar Mediterrâneo, Europa) é uma instituição que atravessa toda a história das cidades humanas. É bem forte portanto. Essa "família" carrega dois conceitos que utilizam as palavras "confiança" e "respeito" como roupa a vestir seus hibridismos perversos sustentados pelo medo e pela crueldade. A "confiança" é sempre no capataz, naquele que vai reproduzir as ações emanadas do "eu" solitário do patriarca Nosferatus (o vampiro é o signo do perverso, o indivíduo que não vê e nem sente o “outro” a não ser desmontando, arrancando pedaços, destruindo-o). O "respeito" é o medo elevado a sentimento necessário e ordenador das hierarquias, o medo que alavanca o desejo de pacificação via subordinação: o outro feliz porque hoje não vai apanhar e nem ser violado, porque costuma não apanhar mais e é violado com relativa parcimônia, de tal sorte que quase não sangra, muito pouco, muito pouco. Esse leve sangramento cotidiano é a estrutura da hierarquia da "família", palavra que vem de "famulus", escravo.
Tudo, na domesticação, na formação da palavra "humanidade", domesticação de animais e plantas, mulheres e mais fracos, antecede o tempo livre do sábio, do artista. O que está posto para a tal "direita" é apenas manter isso ai: Família! Família! Família! O que está posto para a tal "esquerda" é fazer o relato, o arquivo histórico, de como essa humanidade conseguiu inventar outros conteúdos para as palavras "confiança" e "respeito", e de como esses conteúdos acabaram formando uma memória efetiva, eficaz e eficiente - como preferirem os juristas - das ideias de dignidade e liberdade. E, talvez (apenas talvez, mas isso já será um começo), as famílias consigam aceitar que os estranhos, os pagãos, os estrangeiros sem famílias e sem escravos possam viver ali ao lado, em "outra nação", domesticando plantas e animais de um modo reverente e religiosamente perdoado. Isso é esquerda e direita e tudo fora disso está ameaçado de esquecimento.
Sim, há algo de incrível e inédito no cenário mundial que faz do Brasil um palco principal de um show muito mais alucinado do que qualquer “rock in rio”. Desculpem se eu pergunto assim tão irreverente: quem inventou essa história de BRIC? Não consigo entender como Brasil, Rússia, Índia e China poderiam ser colocados em um balaio só e, ainda, restaurar algo – um polo libertário - que na sua inauguração – os sovietes de 1917 –, na revolução russa, estava fadado à precariedade e à manipulação simbólica. Eu, uma artesã desatenta, sempre achei a ideia de BRIC parecida com aquele velho papo da tal Cepal, para a América Latina, defendido pelos amigos do Fernando Henrique Cardoso, dos “países desenvolvidos” e “países em desenvolvimento”, como se os segundos pudessem algum dia alcançar os primeiros. Criei-me, como esquerda, ouvindo que o Partido dos Trabalhadores viria justamente para desconstruir essa ideia.   O projeto BRICs era e é, ainda, comercial e mercantil, não é? Era e é, ainda, composto por estratégias entre governos nacionais e, portanto, apoiado em ideais nacionalistas, não é? Nesse sentido tem razão os que sofrem derradeiras agonias: estamos assistindo a um acontecimento violento e desconstrutivo ao modo ditatorial, sim. Os chefes das famílias que mandam no mundo deixaram “se criar” (ao modo perverso) ideais democráticos no campo mercantil e corroeram os mesmos projetos por dentro de cada país, pelo reforço e aprimoramento de direitos - comercial e civil - violentos e agonísticos (do deus Agon, da disputa), com ênfase no Brasil. As terceirizações destruíram muita coisa por aqui e a pressão estreita sobre a tal governabilidade (um verdadeiro elogio ao mito de Sísifo, o rei aprisionado que segura e empurra uma pedra eternamente), com o controle das mídias e dos processos eleitorais, era, sim, uma tortura permanente.

Aprendi muito em 2016. O Brasil não vai se desmanchar porque a tradição escravista é muito mais sólida do que qualquer alegoria democrática que tenha sido tecida sobre nossos corpos doloridos. Talvez vejamos um novo momento colonial se instalando a partir de 2016. Nada que os humilhados, já ladinos (conhecedores da linguagem dos senhores), não saibam transformar em batucadas nos morros. Precisamos acalmar o pessoal, eu lamento e choro também.  Mas os budistas já nos ensinaram a respirar, vamos respirar então.
Observem que o Direito, com D maiúsculo, vem sendo produzido desde o surgimento da humanidade, desde que algum macaquinho esperto enterrou o primeiro parente querido e botou uma decoração de pedrinhas em cima, para não esquecer nunca onde ficava o local. E ele já passou por grandes desmanchamentos civilizacionais. Não vejo o porquê de o Direito, como Categoria propriamente humana (como dimensão ou lugar/ acontecimento-tipo ou coisa geral), tenha que ser abolido de uma epistemologia que dê conta do final do Capitalismo e início de outra civilização. Ora, "Direito" não é um acontecimentos propriamente capitalista ou burguês. Tem a ver com justiça e com ordenamentos de sociedades. Se não acabar por completo a espécie humana, esta ou qualquer outra que a suceda, haverá um Direito, ainda que diferente, e ainda que na curva resultante de episódios sangrentos. Estamos, sim, em um momento histórico no qual várias análises, à direita e à esquerda, desejam - a palavra é essa - que deixe de existir a palavra Direito. Isso é que é uma representação da barbárie, perda da memória efetiva, ou eficaz, ou eficiente (todos os significados destas palavras nos interessam) daquilo que construímos como “justiça refletida no dever ser”. Segundo Jacques Derrida, um lugar no qual a desconstrução é um motor contínuo, um “derramar-se da justiça sobre o direito e do direito sobre a justiça”. A barbárie, ou as, no plural, são momentos justamente de perda de memória, ou desordem de memória sobre direitos (humanos, de pessoas não humanas, de seres não identificados como pessoas, da vida em geral como território onde há água e ar). Mas a vida sempre retorna, e é só isso que conseguimos entender como significado da palavra “eternidade”, um reaparecimento de coisas em séries, em ordens, em sucessões, em tonalidades e variações de luzes. Aquilo que ressurge, brota. Isso é o sagrado para os humanos.
A gente lê um historiador marxista clássico, como Perry Anderson, e sua análise sobre a crise no Brasil e, surpreendentemente, ficamos com a sensação de que as redes sociais conseguem elaborar e compor um conjunto de análises muito mais sofisticado e cheio de feixes e prismas de significações que não são passíveis de síntese. Sentimos então que a velha dinâmica de pensadores individuais e eruditos dizendo pra gente como é o real não funciona mais. Claro que ainda desejamos grandes pensadores, mas eles não mais serão Cristos produtores de Bíblias. Seremos muitas e muitos, e falando pequenas análises ligeiras e atentas, como cantares de passarinhadas no amanhecer. O que acontece agora, no Brasil e no mundo, é sim uma grande mudança, mas ela não é revelada nem por narrativas individuais, nem por discursos fundadores, como livros. Nem mesmo essa mudança torna os velhos clássicos desnecessários. Ao ler Perry Anderson, ficamos identificando soluções e imagens que ele, um senhor nascido em 1938, não consegue identificar, nem mesmo como objeto de análise. Assim, a leitura dos velhos homens pensadores nos faz sentir donas - nós pensadoras - e donos - os amigos de sempre - de potência inaugural: há luz no fim do túnel e esse novo acontecer da episteme (e do ontológico, ele mesmo), irradia tenacidade e crença em nossos fluxos emocionais. Agora somos nós e todos os nossos nós e nossas dobras delicadas ou dramáticas.



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