Obrigada, PT!


Se a opinião pública não fosse controlada pela grande mídia e se a mídia não fosse controlada pelo Capital eu acharia razoável o argumento de que a jogada do Maranhão na presidência da Câmara teria sido indevida. Isso supondo que ela fosse fruto de uma artimanha dos defensores do mandato de Dilma, e não de um aviso do presidente anterior, suspenso pelo STF. Mas todos os acontecimentos são híbridos, desde a retirada da ditadura militar como formato de controle político. Em todos os acontecimentos desde então, vide a manipulação eleitoral via o binômio pesquisa/mídia, tem havido violência do poder econômico. Foi isso exatamente que capturou o Partido dos Trabalhadores e seus aliados (e não podemos dizer "se tivesse sido de outro modo", porque ninguém conseguiu fazer de outro modo). Deriva daí que o Congresso Nacional é um dos produtos finais da violência enorme dos gerenciamentos de controle social.  E resulta que um dia esse produto final realizaria seu esplendor, sua maturidade dentro de um ethos desde sempre não apenas autoritário, mais que isso, perverso.
Aliás, o começo deste hibridismo no qual as leis, as regras, são descumpridas ou insuficientes foi o modo como se deu a ocupação do território nacional, com seu escravismo de características únicas no mundo moderno. Só aqui, diferentemente do processo abertamente violento dos Estados Unidos, a confraternização entre escravos e senhores era estimulada e vivida como moldura de uma crueldade acintosamente perversa. No campo jurídico, esse hibridismo migra para a primeira república, e subsequentemente para todas as outras, por meio da própria Abolição da escravatura. A Lei Áurea foi um ato violento, pois a força dos escravocratas impôs a ideia de indenização aos donos dos escravos, seguindo a lógica de que o mal chamado “mercado” é um “deus”. Essa força impediu a reflexão, tímida na época, sobre a necessidade de indenização aos prejudicados pela injustiça da escravidão. Ora, se era uma injustiça a ser abolida, precisaria ser retirada do cenário produzido por ela, ou seja, precisaria ter identificados seus responsáveis e estes precisariam ser coagidos a indenizar os prejudicados. Ao contrário, a pressão dos escravocratas no parlamento da época acabou impondo a ideia de que simplesmente abolir a regra do escravismo, sem indenizar ninguém, seria uma dádiva generosamente ofertada pelos donos das minas, das charqueadas, das grandes plantações de café e açúcar. Afinal, precisamos relembrar, as extinções de escravismos e colonialismos da era moderna foram realizadas como generosidades efetuadas pelos que os produziram e estiveram apoiadas em justificativas muito mais relacionadas a ideias de produtividade e eficiência dos mecanismos do tal “mercado” do que a algum tipo de descoberta lógica no campo da ética.Então, é preciso entender todos os acontecimentos como imersos em um tipo de guerra, no Brasil, desde sua fundação, em 1500, como um território invadido e colonizado por um império. Em uma guerra há um hibridismo na codificação: parte dela se dá com um grande acordo sobre regras onde haverá um vencedor aceito por todos; outra parte é um espaço de violência pura, na qual todos os lances são válidos e vence o mais forte, o mais sagaz, o mais violento (e a violência máxima é o ataque inesperado com força descomunal, como em Hiroxima). Há, inclusive, uma parte que é o hibridismo do hibridismo e ela realiza um conjunto de jogadas-trapaças, que são jogadas inesperadas, mas supostas na estrutura geral do acordo sobre regras.
Além da especificidade brasileira, é preciso lembrar que toda a história da humanidade até hoje foi conduzida pela violência do mais forte, que, em última instância é a lei do pai, do patriarca. O patriarca é simbolicamente “o mais forte” porque um dia ele foi de fato o mais forte, em termos de força física, e ele ocupa aquele lugar em representação a todos os homens efetivamente mais fortes; e também em representação às mulheres mais fortes e associadas aos homens fortes. E ele será destituído, derrubado, morto, exilado ou silenciado em um mosteiro ou asilo quando não mais puder representar esse conjunto hierárquico de força bruta. E outro representante maior do signo da força bruta ascenderá ao poder, podendo ser eleito por um conselho de anciãos ou mesmo por um colégio de eleitores confiáveis. Essa é a ideia que fundamenta a palavra "deus" nas religiões monoteístas, bélicas e articuladoras de muitos impérios. O conceito de "verificável" do pensamento científico também abriga um conteúdo bélico e patriarcal, pois muitos acontecimentos humanos não podem ser medidos, talvez a maioria deles, e entre os que podem ser verificados, reproduzidos, somente os que os poderes patriarcais escolhem são alavancados por um conhecimento tecnológico de verificação. Mesmo a ação de uma maioria, uma parte da população insuflada por uma liderança, poderá ser um acontecimento violento e inaugurador de intenso sofrimento coletivo, como o nazismo, por exemplo. Então, precisamos nos mover dentro de uma guerra, mesmo quando queremos combate-la e extingui-la.
A jogada do Maranhão não produziu violência, ao contrário, ela jogou um balde de água, conteve a velocidade dos mais fortes, acalmou os ânimos.  Foi quase uma trégua, dado o fato de ter sido anulada por ele mesmo, na madrugada do dia seguinte. No intervalo de um dia, uma pequena jogada mostrou a importância da presidência da Câmara dos deputados federais e o motivo pelo qual ela esteve ocupada, durante todo o período de aprovação do processo de impeachment da presidenta, pelo Eduardo Cunha e tudo o que ele significa.  Obviamente o processo retomaria seu curso, a derrubada da presidenta Dilma, já que o que determina esse acontecimento é o controle do congresso pelas bancadas da bala, do boi e da bíblia, garantido pela grande mídia, com liderança central da Rede Globo de televisão. Esse controle, não obstante inúmeras diferenças de escala e particularidades próprias ao mundo dos espetáculos e das multidões, é o mesmo que produziu a lei da Abolição e a retirada de cena da ditadura militar.
Falo tudo isso para assinalar que uma parte do golpe efetuado hoje, 11 de maio de 2016, não revela uma grande inauguração macabra e de consequências trágicas incalculáveis, como parte do discurso dos defensores do mandato da presidenta eleita, Dilma Rousseff, quer registrar. Sim, um grupo grande de brasileiros está muito triste e preocupado; sim, viveremos um período de ampliação dos acontecimentos repressivos. Mas não é corajoso e lúcido afirmar que caímos em um abismo. Ainda não é, não obstante as ameaças que são praticadas e anunciadas na atualidade contra grande parte dos seis bilhões de habitantes do planeta. O risco de que bilhões de humanos sejam jogados na condição em que foram os sírios é visível a olho nu. Mas os brasileiros ainda estão bem longe de uma situação de devastação das cidades e da sociedade civil, em que pese as enormes dificuldades de garantias de direitos constitucionais pétreos para a maioria dos habitantes dos centros urbanos. A hegemonia que realiza um ataque formal por meio do impeachment da presidenta já vinha sendo desenhada faz tempo e todos sabemos que se a aliança com o PMDB não produzisse o lastro para a eleição de presidentes do Partido dos Trabalhadores, Dilma não teria sido eleita.  Ora, mas se todo o processo de chegada do PT ao poder se deu a partir de alianças com forças que hoje o derrubam, a queda da Dilma estaria a anunciar um cansaço por parte dos donos do poder com relação a estratégias e formas humanistas e republicanas? E esse cansaço, produtor do ataque midiático e político ao governo do PT, resultaria em um mergulho imediato do Brasil e dos brasileiros em um momento de radical e imediata perda dos espaços exíguos de garantias constitucionais?
Não creio que a derrota tenha essa dimensão, embora esse risco esteja posto. A diferença é que a nossa memória, a dos descendentes dos escravos e dos abolicionistas, está muito mais potente agora, mais capaz de introduzir novas regras no jogo, novos instrumentos de pacificação e desconstrução das guerras conhecidas, de muitas guerras já vividas. Sim, estamos muito mais ameaçados do que estivemos durante a década de 1980, mas desde o início das terceirizações e das práticas de desregulamentação e exposição dos trabalhadores e das trabalhadoras ao assédio moral como regra de gerenciamento, já na década de 1990, começamos a sofrer importantes perdas de direitos. Temos uma enorme população plenamente consciente de que não pode perder mais nada.  Parte dessa capacidade de resistência e entendimento devemos à experiência vivida no período de governos do Partido dos Trabalhadores e seus aliados, tanto por seus acertos quanto por seus erros, uma vez que o erro cometido produz sua crítica e movimenta as possibilidades . A ideia mestra de “governabilidade”, por exemplo, carrega um duplo significado, mais uma vez híbrido: de um lado ela é constrangedora porque explicita o real controle do poder nas mãos do Capital, o verdadeiro dono de todas as engrenagens; de outro, ela é revolucionária, porque alimenta a experiência de que violentos são eles, os donos do poder. Nós, os escravos e abolicionistas de sempre, somos pacíficos e ordenadores do bem estar comum e os únicos recursos potentes que temos são a memória coletiva humana, a consagrar a ética da pacificação, do cuidado e do equilíbrio ecológico, como única chance de sobrevivência no planeta.

Precisamos perdoar o PT e assumir, daqui para a frente, uma nova história, com novos atores e novas regras do jogo. E, para que isso aconteça, precisamos interpretar o dia de hoje, com a derrubada da presidenta eleita Dilma por meio de uma articulação de um congresso nacional comprometido com uma elite autoritária e perversa, não como o mergulho nosso em um abismo do qual só poderemos sair por meio do desespero e de catarses políticas sangrentas, ao modo de sacrifícios culposos. Precisamos entender o 11 de maio de 2016 como um novo começo para a luta pela democracia no Brasil, utilizando tudo o que pudemos consolidar de esclarecimento e dignidade coletiva acumulada até agora e desde as lutas quilombolas e rebeldes do Brasil escravista colonial. Perdoar o PT, assim, significa não mais entendê-lo como uma espécie de “pai” impotente a quem se deva responsabilizar pela ausência de um “pai poderoso”. Perdoar o PT significa dizer: “Obrigada!Obrigado!Obrigadx! Valeu! Mas daqui pra frente sou eu mesma (mesmo, mesmx)! Somos nós e nossas cacofonias, dissonâncias e multiplicidades étnicas e éticas!”. Ou seja, vamos sair, nos mesmos, do espectro do patriarcado para poder lutar contra os patriarcas escravocratas de sempre. Vamos nós mesmas, mesmos, mesmxs, sem lenço e sem documento. Nunca esquecendo que é imprescindível que essas novas regras de luta, essas novas bandeiras, articulem a leveza dos jovens e a memória dos velhos para que se possa partejar qualquer tipo de tentativa de nação, ou nações, no território Brasil.

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