O silêncio interior



Um desmonte partidário, desconfiguração de diferenças entre partidos políticos, começa a ser descrito no interior da linguagem que se ergue nesse novo governo excepcional (todos concordam que não é um governo normal?). Os interinos afirmam que representarão o próprio Estado, sem limitarem-se aos seus próprios partidos. Foi o que disse José Serra, em 20.05.16, ao globo news da Miriam Leitão, falando sobre o comportamento da diplomacia no "Temerismo". Ora, isso nada mais é do que a velha fórmula "O Estado sou eu", de Luís XIV, fórmula que o próprio Serra disse combater, anos atrás. Em paralelo, o PT decide não proibir alianças com o PMDB nos municípios, revelando que a tese do “golpe” não atinge a esfera municipal. Como pode haver uma ditadura ‘aprisionando’ a ‘presidenta afastada’ no palácio da Alvorada (quem vai lá tem que mostrar a identidade para seguranças postos lá pelo governo interino) e, em paralelo, amizades fraternas entre os dois lados em municípios brasileiros?  Bom, a linguagem está um caos, uma torre de babel, e disso decorre que os partidos tendem a ser camaleônicos, abrigando misturas de fascismos, teologias repressivas, liberalismos nos detalhes e condutas, republicanismos fakes, esquerdismos fakes, marxismos banalizados e inúteis, trotskismos evangélicos e pregações evangélicas que não precisariam ser, mas são esquizofrênicas. A prova é a presença de discursos que criticam ardentemente os humoristas políticos e elogiam os reality shows, ao mesmo tempo em que criticam ardentemente o neoconservadorismo yuppie, dos cabelinhos escovados. Alguém ligado à Marina Silva disse isso nas redes sociais. Ou então quando um homossexual diz, ameaçador, estar certo de que as diferentes manifestações de gêneros e sexualidades devem ser protegidas e todos os ‘preconceitos’ punidos com exemplar rigor, sugerindo que os modos de ver a vida devem ser forçados a uma uniformização por meios repressivos e não pelo debate cultural. Alguém ligado à Dilma disse isso nas redes sociais. Meleca geral.
Disso abre-se um portal para fluxos defensivos nas ruas, nas escolas, nas praças, no teatro, no cinema, nos quais os partidos não existirão, dando lugar para pequenos agrupamentos, tribos políticas, múltiplos 'ninguéns', inúmeras partições, partidos reais? Ora, mas isso não se mantém, disse um. Será? Será que a prática de 'estar na rua juntos' não veio para se consolidar como um modo de fazer política? Invertendo a lógica é de se perguntar então até quando as polícias especializadas em repressão às tribos nas ruas conseguirão manterem-se agressivas e agredindo? Há que se considerar que uma das coisas em questão é justamente a importância filosófica e prática da rua e do espaço doméstico. Em uma sociedade onde a casa só é um bom lugar, um lugar de poder e vida boa se for a casa dos ricos, dos classe média bem colocados e dos habitantes rurais e praianos, podemos investigar os motivos para os moradores das grandes cidades, dos grandes centros urbanos, nos quais a casa dos pobres, da classe média mais empobrecida e dos jovens dos grandes edifícios são lugares dormitório onde só haverá a televisão e o computador para realizar afetos, vínculos comunitários, podemos investigar se a rua, as praças não estão já há mais tempo se revelando espaços de construção de uma nova forma de inclusão política. Ou seja, a família só é a célula básica da estrutura política para os “de cima”, para os “dos castelos”. Para os sem poder econômico a família não protege, não garante mais nada.
Com um olhar sobre as novas relações entre o que é público e o que é privado, vemos que vivemos um desmonte das tradições republicanas não só porque uma determinada elite econômica brasileira resolveu, do nada, retroagir, voltar a tempos de violência pura, ação direta militar. Podemos começar a falar, se somos adeptos da liberdade de manifestação, em um caos generalizado, na linguagem e nas formas. Nesse caos, o que há de mais sólido parece ser a ineficácia e a desagregação das velhas fórmulas dos partidos políticos nacionais e uma espécie de tentativa de defesa dos não representados pelos partidos em ruína e nem pela elite econômica por meio da simples e direta presença nas ruas, nas praças e em lugares marcados como tentativas de defesa das coletividades, como as escolas. A partir dessas desconstruções irruptivas, da linguagem e das formas, poderíamos investigar se isso que vivemos trata-se mesmo de um ‘golpe’ ou se é uma espécie de migração formal, por meio de uma precipitação por transbordamento, de uma civilização em direção a outra. Afinal, a passagem do Império Romano para a modernidade ocidental precisou de uma idade média de mil anos porque foi esse o tempo necessário para uma produção tecnológica capaz de inaugurar o mercantilismo e os correspondentes escravismos e colonialismos modernos, dos quais derivou a existências dos chamados “primeiro mundo” e “mundo subdesenvolvido”. Esse tempo de mil anos teve suas formas correspondentes, suas roupas, seus deslocamentos espaciais, suas linguagens. Mas, considerando a velocidade da produção tecnológica moderna, aumentada por uma aceleração incrível, seria de investigar a hipótese de termos chegado a uma situação na qual não mais seria materialmente possível passar de uma civilização a outra por meio de sucessivas modas e mudanças de estruturas alavancadas de tempos em tempos por momentos súbitos promovidos aos “golpes”, às “guerras nacionais” e às “revoluções partidárias”, mas agora por novos processos descritíveis apenas por palavras tais como “transbordamento”, “precipitação”, “degradação” e etc, palavras mais aproximadas das ideias de acontecimentos próprios da natureza, daquilo que não é fabricado pela espécie humana, mas se realiza a partir dos ventos, das marés, do cosmos, das águas, das pressões, das químicas micromoleculares.

A humanidade sempre se moveu a partir de dois fenômenos: a memória e a invenção. No momento político brasileiro atual podemos levantar a hipótese de que as memórias estão em uma desordem de tais proporções que mundos díspares, do ponto de vista cronológico, começam a se organizar, e que formas rudimentares e tribais se estruturam em paralelo a formas vinculadas a tradições de tempos coloniais, feudais propriamente ditas. Do lado da invenção temos, pulsando em um silêncio majestoso, as dinâmicas governadas pela tecnologia da informática que apenas anunciam a hipótese de um futuro sem outra palavra a descreve-lo que não a palavra incrível. Vivemos atualmente dentro de um filme de ficção científica, dinossauros e blade runners e os protagonistas somos nós mesmos. E eu termino esse texto com uma citação da Clarice Lispector: “Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e da Terra e da Lua. Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois ele é o de dentro da gente.”

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