Querida Zeferina - carta onze - como e quando vendemos a alma ao diabo


Querida Zeferina,


O Mal é burro, no fim das ilusões sobre ele: “como puderam nos fazer tanto mal?” fica sendo a sua lembrança. O Mal, esse com eme maiúsculo, é o diabo, um deus a ser vencido, disposto à vingança, a maltratar muitos viventes, à guerra. O Mal é uma doença simples que quando é novidade, não tem antídoto. Assiste o sofrimento da maioria dos seres vivos se espalhando diante de seus olhos e justifica dizendo que não há outro caminho. E o Mal sabe que mente e os humanos que se deixam contaminar pelo Mal sabem que ele mente. Pode acontecer de se passarem mil anos sombrios, mas quando nasce a flor-de-lótus, a luz, a beleza, todo o mundo vê e o Mal passará a ser contado como um deus vencido, “aqueles tempos sombrios”. Eu sou humana, Zeferina, uma fêmea sapiens, e só posso entender a nossa história, a do gênero humano, inventada nesses setenta mil anos alcançados pela minha consciência, não posso falar sobre uma hipotética história de uma “nova espécie não mais sapiens”. Só humanos capturados pelo Mal poderão falar em “novas espécies mais inteligentes que os sapiens”, porque eles são sapiens e estão mentindo sobre quererem ver todos iguais a eles, todos seus descendentes, mortos em uma guerra. São neonazistas. Uber nazistas, ou os mesmos nazistas de sempre, agora disfarçados de radicais libertários, programadores e pesquisadores bem sucedidos. Nós, humanistas republicanos, entendemos assim: a beleza está nas formas que alegram, dão prazer, acalmam, nos fazem sentir paz, desejo de “mais daquilo” ou simplesmente o encontro de um ócio, um soninho, um sonho bom. Então, uma hora o Mal será vencido e serão realizadas festas, comemorações, danças e cantorias para dizer “viva! O Mal maior sumiu, finalmente”. E nesse momento alegre serão contadas histórias de como o grande tirano foi derrubado, como foi derrotado e por quem. O Bem, assim mesmo com bê maiúsculo, são os heróis e eles poderão deixar de ser um sujeito super forte e único, um super humano, porque afinal já sabemos que esses caras acabam sendo ou ditadores ou apenas personagens de um filme caro. Mas não precisamos ser ingênuos e tecer teorias enfadonhas para dizer que “oh, não queremos mais os heróis”, “queremos ser nós mesmos, sem deuses”. Bobagens, porque desde aí, se conseguirmos matar o mal, ou ao menos prendê-lo em uma tumba, mesmo sendo só nós mesmos, pensaremos “oh, somos heróis!” e é isso. E os bons momentos serão os nascimentos, os renascimentos, o fim das guerras, a prisão do Mal e nós mesmos. Viva nós mesmos!
Mas para chegar ao ponto em que o Mal é preso ou destruído, não basta evitar praticá-lo ou não se deixar contaminar por ele, porque alguém precisa ficar vivo para contar a história e depois juntar outros para ir lutar contra o mal. Então há que se vender a alma ao diabo, em alguma medida, quando tudo é escuridão e o deus sumiu. Sim, o deus não precisa ser um velho barbudo sentado numa nuvem branca no céu azul. Numa cadeira de rei. Pode ser um monte de deuses de tudo quanto é sexo e variações misturadas que andam chamando de gêneros, tipo misturas de os e de as que uns aqui, nesse tempo sem luz do Mal absoluto, chamam de xis. Pode ser um monte de divindades entre animais e coisas humanas. Tanto faz. Eu queria escrever “uarever”, gosto tanto dessa fala do tanto faz em inglês, o tal “uarever”, mas como estão querendo acabar com o português brasileiro e criar um dialeto de inglês e português misturado, e ainda um português só falado, com gírias e sem uma escrita cheia de significados complexos, eu peguei nojo e estou me esforçando para não falar nada em inglês, nem uarever, porque afinal, partir para uma língua mutante e definida por uma oralidade volátil e desnacionalizada é mesmo o reino do Mal. Mas não vou falar em línguas hoje.
“A difamação de virtudes como o cuidado, a compaixão e a generosidade vai de mãos dadas com a crença, especialmente entre os pobres, de que ganhar é a única coisa que importa e de que ganhar – por qualquer meio necessário – é, em última instância, a coisa certa”, escreveu Achille Mbembe, um historiador africano divulgado em 2017 no facebook. Não concordo, não acho que é “especialmente entre os pobres”. Os pobres falam abertamente sobre isso, talvez defendam essa ideia de um modo ingênuo, sorridente, piadista. Mas eles acabam por se ajudar, não sobra outra escolha: cai o telhado de um numa chuva, todo mundo ajuda; outro foi abandonado pelo cônjuge, todo mundo releva e não faz drama, o trágico perdoado. Os pobres perdoam seus presidiários. O pobre não tem quase nenhuma chance de vender a alma ao diabo. Ou, por outra, ele vende a alma ao maldoso quando cai numa cachaça, gasta o dinheiro do gás na partida de futebol, entra em um romance que é certo que vai dar errado. Mas não passa disso, via de regra. Quem vende caro a alma ao diabo é aquele sujeito que pode conseguir melhorar de vida, deixar de ser tão pobre, conseguir a alforria. É sobre isso que quero falar, sobre conseguir a alforria. Mas o que era a alforria no Brasil de 1870? E o que era a alforria no Brasil de 1600? O diabo de 1600 creio ter sido mais poderoso do que o das vésperas da lei do ventre livre, 18 anos antes da abolição. Imagino que a venda da alma ao diabo em 1600 era muito mais necessária para a sobrevivência do que em 1870. As alforrias em 1600 deveriam ser muito raras e para conseguir sofrer menos o esquema provável era o mesmo narrado por Primo Levi, sobre o campo de concentração na Alemanha onde para ganhar comida o prisioneiro precisaria estar disponível a delatar, torturar, queimar e fazer os serviços de limpeza dos corpos. Levi contou só terem sobrevivido os que venderam de alguma maneira a alma ao diabo. Deve ter sido assim para o início do acontecimento “alforrias”, no Brasil de 1600. Depois, em 1870, já havia espaços de dignidade mais significativos, a julgar pelas ações de liberdade, os processos judiciais onde escravos provavam ter direito a alforria e eram representados por advogados abolicionistas. Ali já havia a presença de alguma alma, portanto algum deus, ou deuses e deusas, cenários de direitos padronizados, leis a protegerem todos os capazes de construir esperanças para si e os seus. Contratos, vamos dizer assim. "Você trabalhou a vida inteira para mim, dedicado, confiável, você é humano como eu, dá pra ver, merece a alforria, ter sua vida em família”. Já havia, em 1870, a ideia de proteção aos escravos velhos e essa ideia – proteger a velhice – está sendo destruída agora, em 2017.
Fico me perguntando sobre o quanto o Harari, o autor israelense do livro Homo Deus, vende sua alma ao diabo, quando fala sobre a alma humana e quando fala que: "Na essência, nós humanos não somos diferentes de ratos, golfinhos ou chipanzés. Como eles, tampouco temos alma. Como nós, eles também têm consciência e um complexo mundo de sensações e emoções. É claro que todo animal tem traços e talentos exclusivos. Os humanos têm suas aptidões especiais. Não devemos humanizar os animais desnecessariamente, imaginando que são apenas uma versão mais peluda de nós mesmos. Isso não só configura uma ciência ruim, como igualmente nos impede de compreender e valorizar outros animais em seus próprios termos". Na página 135. O Harari retira a alma dos humanos e continua a não aceitar esse grande conceito para os outros animais. Não havendo alma alguma no mundo real, bom, então tudo são objetos, pois tudo o que a palavra “alma” ilumina é o mundo exterior ao objeto manipulável pelo ser humano, desde minerais, passando por outros animais e chegando ao corpo humano interferido pela química, a biologia e a medicina.  No final do livro, o Harari vai perguntar se não deveríamos acreditar na vida como algo além dos algoritmos, mas será apenas uma manobra de engenharia de linguagem, talvez para registrar a ideia de que os nazistas têm sentimentos, que lhes sobra uma alma, talvez mais valiosa do que a alma de todos os humanos sapiens e os outros animais que já a tiveram proibida desde o início do livro.
Descobri o título desse capítulo ao ler uma carta iniciada em 2012, assim: “Desde o dia em que fugi de Porto Alegre estive mergulhada em um susto permanente, euforia camuflada pela astúcia atenta de um estrangeiro fugitivo. Somente hoje senti a emoção consolidada de estar morando em uma cidade pequena de interior, quando voltava quase à noite pelas ruas vazias, um ou outro voltando também, pequenas ruas fluindo em direção à praia, calma e cheiro e barulhos de mar lá longe e tão perto. Estou ficando menos maluca do que estive lá, durante quase vinte anos. Como se um espírito de angústia, um estado de alerta, estivesse evaporando de meu corpo, aos poucos. Tenho variações de medo, do dia até à noite, como as mudanças de cor nos joelhos contundidos das crianças, nos olhos espancados das mulheres e dos prisioneiros. O roxo escuro, inchado, vai se transformando em espaços amarelados e fica parecendo haver uma possibilidade de que aquilo deixe de acontecer e desapareça. Tudo o que aconteceu comigo, nas margens do Guaíba, conosco, com toda a gente comum e, sobretudo, com os líderes de acontecimentos dissidentes; o assédio moral em todos os lugares, na política e no trabalho, os homens atacando mulheres subversivas tanto no Islã como no interior de qualquer ponto geográfico e político do Brasil da década de noventa, tudo deve ter contado, em algum sentido, com a nossa própria participação. Nós migramos em direção ao lugar da bruxa, do louco, do decaído; nós aceitamos a representação. A pessoa participa do sofrimento que lhe foi proposto. Sente culpa pela derrota. O homo sacer, do pensador Giorgio Agamben, o sujeito escolhido para o sacrifício atola, não sai do lugar, não vai embora”. Em 2012, eu desejava que em noventa os dissidentes tivessem sido capazes de fugir.
Não é uma questão de falta de informação, Zê, de engano. Há uma entrega ao estilo Fausto, do Goethe, e no caso brasileiro dos dramas atuais ela foi realizada desde 1990 e atinge todos os que tentaram "se dar bem" no hiperconsumo do início da revolução tecnológica da informática. Lá, desde setores da tal esquerda (de todos os tipos de agrupamento), passando por uma grande parte da juventude com 10 anos de idade em 1990, que cresceu nessa lenha de se entupir de imagens e mercadorias voláteis, e chegando nas massas pobres e em pânico que adicionaram o fundamentalismo evangélico como imagem de potência politica e catártica, todos esses setores aderiram a uma linguagem mentirosa, perversa, cheia de silêncios e falsificações. Então, já lá, todos sabiam que "a cada quatro pessoas mortas pela polícia três são negras". Todos os que sabem ler sabiam. Então o direito penal alimentador de presídios e polícias foi robustecido lá. Houve uma destruição em massa, no campo da ética, a partir de final da década de oitenta, no Brasil. Podemos, então, distinguir dois acontecimentos distintos para a situação “vender a alma ao diabo”: o tipo dos que obedeceram a tiranos para salvar suas vidas, nos campos de concentração alemães, na segunda guerra mundial, ou os escravos das senzalas brasileiras – nos séculos XVII, XVIII e XIX - que se acomodaram em relações perversas para conseguirem alforrias ou algum tipo de proteção, são um tipo de “venda da alma ao diabo”, para sobreviver dentro de um cenário de tortura emocional e física praticada contra toda a sociedade civil. Nesses mesmos cenários, de inauguração de uma guerra ou um genocídio, há o tipo de acontecimento dos que fogem para ficar entre os torturadores, também para sobreviver, mesmo não sendo o próprio Mal, não sendo o próprio diabo, mas para sobreviver entre os que mandam, os que tomam de assalto os governos, os que gerenciam as máquinas de adestramento da sociedade civil, os que detêm o controle sobre as armas e os exércitos.  Nem lembro dos motivos alegados pela Hannah Arendt para o que ela definiu como sendo a banalização do mal. Talvez eu discorde dela, talvez o Mal não seja banal. Talvez a gente precise entender e perdoar. Entender que lá em noventa foram produzidos discursos de aceitação do mal, de integração no modelo que estava sendo criado ali, naquela cena da queda do muro de Berlim, mas por medo, por covardia, e não por maldade da esquerda surgida no fim da União Soviética.  “Não há propriamente um 'fascismo’ agora, ele aconteceu no furor do consumismo, lá no Lula paz e amor desenvolvimentista e conciliador. Lá implantaram os coach e a neurolinguagem. Lá era um fascismo, dentro da esquerda e da direita, todos querendo ter um carro enorme de tração na quatro rodas, uma geladeira de inox, com enormes compartimentos, falar inglês, viajar para Europa e Miami todo ano, ser chique e vitorioso. Isso era fascismo e isso chegou na produção de consumo da tal classe média nova e baixa, que não cresceu para ser política, mas para ser massa de manobra. A tal esquerda bem sucedida vendeu a alma ao diabo em 1990 e a população foi junto. O golpe sobre a Dilma foi só a cereja do bolo”, escrevi no facebook, dias atrás.
Como se vende a alma ao diabo? Indo aos poucos, aparando arestas aqui, aumentando arestas ali, ou mesmo ficando quietinha num canto de um emprego público. Eu penso ter vendido um pedacinho da alma ao diabo quando aceitei ficar viva e silenciar, apostar em uma saída individual e, mesmo com sofrimentos de longa duração, chegar a uma aposentadoria integral, sair na "lista de Schindler" dos aposentados federais de antes do golpe e da "reforma" da previdência. Há um passo a passo na fórmula do Fausto, do Mephisto. O problema é: quem vende a alma ao diabo sabe que está fazendo isso e, ao fazer o pacto, decide por um caminho quase sem volta. A população que aderiu a rituais catárticos, fundamentalistas, como grandes festas e shows, grandes programas de reality show na televisão, grandes resultados de pesquisas eleitorais, no momento em que se deparar com o fim do sonho e da catarse, quando ficar de frente com o cenário do “campo de concentração”, dos modos de destruição de populações inteiras por meio de um etnocídio, poderá desistir das ilusões e se reagrupar em movimentos defensivos. Mas a parcela que aderiu a estratégias de participação em ambientes de elite só poderá sair da cena dominada pelo grande Mal, pelo diabo, se migrar, novamente aos poucos, para linhas de ação abolicionistas, quando a elite sapiens republicana começar a abandonar o robô Darth Vader e tentar se reinventar como gerência do que sobrou da sociedade civil depois da guerra.

Por esses motivos, Zeferina, eu não desprezo as manifestações do Ciro Gomes, ou de qualquer outro membro de uma elite capaz de algum discurso visível no campo abolicionista, defensor de alforrias, apto a disputar o poder. Por essas razões valorizo as possibilidades da fala do Lula de agora, não mais o do Duda Mendonça. Para entender as diferentes formas de vender a alma no passado que engendrou o estado de exceção é preciso perdoar e colocar-se em posição compassiva, generosa. Do contrário, até por dentro de falas libertárias e radicais os mais apavorados poderão estar tecendo novos pactos com novos estados policiais. O Mal é o mais bem sucedido inventor de novidades. O Diabo aparece como o revolucionário mais eficiente, o discurso mais exato, mais competente (como falava a Chauí, em oitenta). Lamento ter escrito essa última frase, eu queria que não fosse assim. Precisamos pensar sobre a ideia de “assalto”, de revolução como uma tomada do poder central em uma sociedade civil. Acho que para romper com o Diabo precisamos deixar de querer vencer totalmente.

versão dois         foto: Daisy Weston  

Querida Zeferina - carta nove - Lulalá e o nascimento da população escravizada




                                     Querida Zê,


                                 Essa carta vai sair meio Henry James em A volta do parafuso, ou então Mary Shelley e seu Frankenstein.  É isso, para falar a verdade, estou agora a descrever um enredo sinistro ou uma monstruosidade. Preciso fazer isso. Há uma falsa calmaria, o medo cega, paralisa. Em geral os autores falam sobre a injustiça dos sofrimentos impingidos aos subordinados, sobre os modos de revolta, sobre a natureza econômica da relação, sobre aspectos menores jurídicos e culturais da situação vivida como realidade cotidiana. Falam como quem olha para um objeto exterior a um observador tranquilo. Não falam sobre uma totalidade, lavam as mãos como Pilatos. Tem gente da esquerda falando calmamente, como se uma greve geral fosse só questão de decidir: "bom, vou entrar em greve", como se fôssemos gregos capturáveis pelo dinheiro alemão. Já eu, assustada, quero falar sobre o dilaceramento interno num humano conduzido à escravidão em caráter definitivo. Quero falar a partir da dor que sinto. Nunca li sobre como nasce um escravo assim como se lesse um diário. Vou resumir porque tudo nas minhas cartas demanda uma sequência bem mais alargada, coisa que deixo para depois. Até porque dói, muito, e estou para escrever isso aqui faz mais de mês. Estou exausta, para falar a verdade. Não só porque o assunto dói, como também porque é um assunto quente no Brasil de 2017, no momento em que estão impondo leis ameaçadoras para todos os trabalhadores subordinados, principalmente os que fazem trabalhos repetitivos e têm pouca capacidade de negociação individual ou coletiva.
                                           O escravo nasce em um adulto capturado e exposto como um sujeito nu. Ele nasce quando o sequestro fica claro como definitivo, quando ele entende que perdeu – para sempre - a identidade, o território, qualquer poder sobre o próprio corpo. A desonra é o maior problema do escravo recém-nascido. O escravo que nasce de um escravo já não é mais tão escravo, porque ele já nasce em ambiente de luta abolicionista; nasce como um filho de guerreiro, mesmo sendo o mais emudecido cativo da senzala. O escravo, em seu nascimento como tal, aparece em um sujeito sequestrado e humilhado, um refugiado sem qualquer território seu, um cativo, que foi um sujeito com cidade e nome até antes do sequestro. Então, o maior problema do escravo, na inauguração do fenômeno, é justamente sua vergonha de sua nudez, de sua derrota, de seu abandono. "Como me deixei aprisionar? Como deixei que todos os que estavam comigo se perdessem de mim?”, são as angústias do escravo nu e revelado a si próprio como tal. Vai demorar um tempo até que ele se permita estar nu e sem nome, entenda a sua condição praticamente "pornográfica" e se acalme.  A nudez em público não é só a ausência de vestes, ela é a ausência de nome próprio com dignidade perante os outros. Os carteiros prestes a serem demitidos em março de 2017, no Brasil, devem estar se sentindo, Zeferina,  como se seus nomes não valessem nada para quem decide sobre a vida deles. Eles são sacrificáveis, como falou Giorgio Agamben no livro Homo Sacer, e seus nomes não importam mais, assim como suas vestes. Eles estão nus.
                                          Então, um escravo nascendo não é uma pessoa aprisionada subitamente, sequestrada e apavorada. Isso é um prisioneiro. Também não é um filho de escravo acostumado a sê-lo, por exemplo, filho de uma ama de leite em uma casa grande no Brasil colonial, uma criança nascida em um ambiente de enredos emocionais estáveis, habituais. Um homem que desembarca de um navio negreiro em uma época em que já se sabe bem o que são essas embarcações, já se foge delas na África e, ao chegar ao Brasil, 1730 vamos supor, ele entra em um enredo que aparece cheio de entendimentos claros e acomodações. Um africano chegado nesse cenário verá um mundo, uma sociedade. Verá nos olhos dos outros escravos a evidência de que ali há um modo de vida, ainda que difícil de viver.  Cenários possíveis e roupas correspondentes, nomes. Nesse caso, a condição de escravo está lá, mas também está lá a resistência –mesmo difusa e sem exército - e o recém-chegado mergulha nesse enredo tentado entender o ambiente, ajustar-se a ele adaptando-se às regras visíveis desde o início.  A escravização de uma população inteira, toda ela colocada sob a condição de “sem nomes e sem cidade” começa em uma violência desmedida, com muitas mortes e enlouquecimentos, mas inaugura para os sobreviventes um acontecimento que eu vou chamar de abolicionismo, para, desde já, estabelecer uma comunicação de memória entre o que podemos fazer agora e o que conseguiram fazer os escravos brasileiros desde 1550 até 1888, quando os donos do poder, neste país, precisaram inventar uma saída no sentido jurídico de liberdade formal. Então foram mais de trezentos anos de luta, mas construindo um caminho de vitórias parciais e progressivas. Podemos aprender com eles.
                                                 Eu quero falar sobre o sujeito que se entende por livre, integrado a uma vida em comunidade, e é aprisionado em uma situação desconhecida e inaugural, para ele e para todos a sua volta. Então, tenho que falar sobre o que Franco Berardi informa acerca de um crescimento assustador dos suicídios entre os jovens homens de 18 a 34 anos, no mundo, “sendo a depressão – patologia emocional mais presente no comportamento suicida – identificada como a segunda forma de incapacidade mais recorrente no planeta, até 2020”. Quero falar sobre os jovens nerds da base eleitoral do Trump, um agrupamento niilista que faz o elogio da rejeição às mulheres e se diverte com a própria identidade de “fracassados”, segundo li na Folha de São Paulo de 19 de março de 2017. Quero falar de quando as memórias coletivas e individuais se esvaem de dentro de um corpo humano e ele se transforma em um outro animal, durante um tempo sem saber quem virá a ser no final de uma metamorfose dilacerante, macabra. Penso em todos os que dançam essas músicas estúpidas de ritmos anestesiantes e depois imitam as propagandas das televisões e morrem e matam em ultrapassagens suicidas nas estradas brasileiras. Penso no enjoativo excesso de bundas expostas em imagens repetidas e no aumento evidente da solidão nas grandes cidades. Todos esses estão ficando nus, perdendo seus nomes próprios como símbolos que importam.
                             O escravo aparece como tal no momento em que se entrega emocional e cognitivamente ao encarceramento definitivo. O Harari, que tem quarenta anos e é professor na universidade Hebraica de Jerusalém, nascido em Israel, conta, em seu último grande best seller, Homo Deus, a tortura cometida contra ratos que boiam em um tubo de ensaio:  
Por exemplo, as companhias farmacêuticas usam rotineiramente ratos como objetos experimentais no desenvolvimento de antidepressivos. De acordo com um protocolo amplamente utilizado, pegam-se cem ratos (em nome da fidedignidade estatística) e põe-se cada um deles em um tubo de vidro cheio d’água. Os ratos esforçam-se incessantemente para escalar a parede do tubo, sem sucesso. Depois de quinze minutos, a maioria para de se movimentar. Eles apenas flutuam no tubo, apáticos ao seu entorno. Pegam-se então outros cem ratos, que são jogados nos tubos, mas são puxados para fora depois de catorze minutos, pouco antes de estarem prestes a entrar em desespero. Na sequência, eles são secos, alimentados e lhes é concedido um breve descanso – e então são jogados no tubo novamente. Na segunda vez, a maioria dos ratos luta durante vinte minutos antes de entregar os pontos. Por que esses seis minutos a mais? Porque a memória do sucesso obtido desencadeia a liberação de algumas substâncias bioquímicas no cérebro que lhes dá esperança e adia o advento do desespero”.
Está na página 130, do Homo Deus. Eu fiquei imaginando que o rato, quando para e fica boiando, poderá ser tirado dali e, em um certo tempo necessário para superar o trauma, sair correndo atrás de um canto seguro, uma toca, uma moita no meio da mata, se lhe fosse possível fugir. Seria um luto traumático do rato, ele ficaria para sempre um rato paranoico, mas conseguiria uma retomada, cheia de adrenalina, de um chance de vida a mais. Fico pensando que esses pesquisadores devem ter tentado estudar o quanto essa memória de crença na vida digna pode ser resgatada pelo rato e em quanto tempo ele cai definitivamente numa deriva deprimida, para sempre. Um rato morto vivo ou um rato autista, manifestando sentimentos em frequências gravadas em repetições não mais no padrão inteligível da sua espécie.  Eles devem ter feito essa parte da experiência, mas o Harari não inclui, em seu livro essa situação. No livro Homo Deus, esse jovem phD. em Oxford, está tentando mostrar a crueldade do animal da espécie homo sapiens, abrindo espaço para que o discurso sobre a ética da tradição moderna seja sentido pelos leitores como falácia, invenção delirante. Mas essa narrativa sobre a crueldade só poderá ir até o ponto em que fica mantida a comparação entre a frieza do pesquisador e o sofrimento do pequeno branquinho peludo. Quando essa comparação se estende para o significado do tempo de sofrimento e da condição apática em situação de sobrevida do rato, aí perde o sentido – no livro cheio de algoritmos – porque irá despertar o conhecimento que todo o leitor mestiço, negro ou indígena poderá trazer da memória coletiva sobre a escravidão, o encarceramento definitivo dentro de um corpo sem direito algum, dependendo de favores até para comer e caminhar.
                                               Quanto tempo deve ter demorado para  que os cem ratinhos brancos se tornassem apáticos em definitivo? Para o resto de suas vidas, não importando a beleza e gostosura de alimentos e gramados e matinhos oferecidos pós-trauma? Imagino os cientistas colocando séries de ratinhos, em grupos de cem, dia após dia, e esticando o tempo dos naufragados dentro dos tubos de ensaio e depois os retirando e oferecendo boa condição de vida até eles se recuperarem. Fazendo isso com várias séries de ratos, alongando mais e mais o tempo, fazendo séries diárias durante meses, até que se realize a mágica: pronto, aqui está a situação emocional de um escravo com banzo, pensaria um estudioso do escravismo colonial brasileiro.  Ou pensaria  um estudioso sobre a formação deste neo-escravismo tecnológico do século vinte e um. Não podemos saber como se sentiram os primeiros africanos sequestrados para o Brasil em navios atravessando o Atlântico, né, Zeferina? Não temos as narrativas dessa pesquisa que começou nos primeiros navios negreiros, quando chegavam quase todos mortos, poucos sobreviventes da travessia no oceano Atlântico, empilhados em um porão úmido de navio, doentes, pestilentos, imundos, desesperados dias a fio. Chegando aqui, eram apartados uns dos outros, vendidos e jogados em senzalas com outros africanos estranhos, de falas estranhas, ninguém se entendendo. Ganhavam a denominação de negros boçais, a palavra significando, até hoje, o sujeito que não entende nada do que se passa a seu redor. Quanto tempo e quantas vezes de travessia para os traficantes entenderem que estavam a perder tempo e dinheiro, dado o elevado número de mortos?  Quando os navios começaram a utilizar espaço para colocar redes, para armazenar fezes e separá-las dos prisioneiros, para fazer algum tipo de higiene, alguma água do mar para lavarem-se; quando começaram a usar redes para dormirem os mais velhos, as mulheres, os adoecidos de medo e melancolia?  Teria sido, esta experiência com negros sequestrados em 1540, no sentido contrário ao dos testes com ratos da indústria química de 2010: reduzia-se aos poucos o tempo e a intensidade de sofrimento dos africanos para alcançar o nível mínimo de dignidade e aptidão para o trabalho nas grandes plantações de cana-de-açúcar no Brasil. Isso porque o banzo, a desistência da vida, era uma doença  frequente entre os primeiros negros sequestrados nos tempos coloniais.  Mas o Harari fala quase invisivelmente em maus tratos entre humanos, o assunto abrigando poucos parágrafos do livro em cenários de confrontos entre nações antigas, como se todo o conjunto da espécie homo sapiens fosse ignóbil, ignorante e má. Nada de luta de classes, extração de mais-valia, nada de maldade dos perversos que por serem cruéis sempre se tornaram as classes dominantes, nada desse tipo de pensamento. Pelo contrário, Harari afirma, sem necessidade de explicações detalhadas, que o comunismo foi uma religião estúpida semelhante ao nazismo e o capitalismo é a própria essência do que seja o gênero humano. O livro do professor israelense, lançado em 2015 com o subtítulo de “Uma breve história do amanhã”, propõe a hipótese de ser toda a espécie sapiens essencialmente violenta, perversa e, sobretudo, estúpida e que poderia estar fadada ao desaparecimento.
                                                   Ele não conta detalhes sobre esse pedaço das pesquisas feitas pelas indústrias farmacêuticas durante pelo menos o final do século vinte e o início do vinte e um, em ratos, sobre a depressão e seus limites diante da vida, mas podemos supor que os pesquisadores devem ter estudado o momento em que a apatia da depressão se torna um acontecimento permanente no roedor, e do quanto a administração de químicas pode fazer retornar nele alguma capacidade de agir, ainda que em uma dinâmica autista. Essas pesquisas eram feitas para a descoberta de hormônios que poderiam compor a fórmula de antidepressivos a serem administrados em seres humanos. Remédios que se tornaram tão comuns, na segunda década do século vinte e um, quanto as aspirinas, quase todos os adultos trabalhadores tomando algum, durante alguns meses ou anos, muitos a vida inteira. Muitos destes encontrando um modo apático de levar a vida adiante, um fracasso estável. Talvez o Trump seja um dos primeiros acontecimentos a provocar a impressão de que as estratégias de gerências do Capital cognitivo não estejam dando resultados esperados ou, ao menos, seguros para os gerentes.
                                              A nudez de um escravo não depende da roupa que veste, ou do nome que usa, ela se realiza na perda de uma memória coletiva de pertencimento a uma cidade, a uma etnia concreta, não essas etnias de embalagens, de modelos fazendo propagandas de televisão com aparências de “o negro”, “o ruivo”, “o japonês”, todos jovens lindos, magros e saudáveis, modelos inseridos em um mundo de bricolagens sem passado.  A nudez que nasce em uma população escravizada é, portanto, a destruição das memórias coletivas anteriores ao sequestro de todos, anteriores à imersão de todos em um território estrangeiro e hostil. Só sobrevivem os que  lembram, os que recordam por meio de músicas, de rezas, de danças, as lendas e os ensinamentos de seus antepassados. Talvez – apenas talvez, como falou o Jacques Derrida – o apego ao nome Lula, e à ideia Lulalá, se explique como uma razão coletiva de defesa de memória, a lembrança de um tempo em que a esperança de nomes próprios dignos e cidades de pertencimentos eram nossas bagagens, roupas e territórios simbólicos. Bom dia, Zeferina.

versão dois - foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti, loja em Havana