Diálogos ecumênicos versus guerras tribais


O texto que segue surgiu em um comentário de uma postagem sobre o policiamento dentro dos campus universitários, segundo decisão já feita em Santa Catarina, na universidade federal. Gosto de entender como o conjunto da sociedade está se movendo para depois tentar ver problemas localizados. Não estamos mais em um tempo democrático, onde se pode almejar que um conjunto populacional imenso dentro de um território enorme realize, em cada comunidade, em cada município uma mesma noção de cidadania, de pertencimento. Isso começou a ser destruído na década de 1990, no Brasil, embora nunca fosse realmente um grande acontecimento. A cidadania plena sempre foi um sonho, nesse país de tradição escravista. Mas na saída da ditadura militar foi recuperado um processo anterior que já vinha sendo pensado desde o Estado Novo do Getúlio Vargas e do Oliveira Vianna, dos intelectuais de 30 e sua proposta de erguer um Volksgeist (espírito do povo) brasileiro baseado na cidadania generalizada. Acontece que tudo isso desabou a partir de 90, e o que o PT construiu, a partir de 2003, foi mais na linha da inclusão em direitos mínimos, em políticas afirmativas também, que praticamente acabaram por fortalecer dinâmicas de formação de tribos específicas, mas não em estruturação de um conjunto harmônico de cidadania política. Até porque durante todo esse tempo dos mandatos do PT foi avançando, na sociedade brasileira, o processo das terceirizações (ainda que os petistas se orgulhem de terem desacelerado esse acontecimento), que foram decisivas para a desagregação das solidariedades em comunidades específicas. O próprio discurso central do PT começou, a uma certa altura, a apontar para um determinado valor da "pobreza", da "simplicidade", em oposição a uma ideia genérica de "classe média", favorecendo a antipatia entre esses dois setores sociais e favorecendo também a proliferação do assédio moral à parte mais fragilizada dos setores de classe média. O espaço público ficou sempre controlado pela grande mídia, seja ela evangélica ou mais modernosa, como a Rede Globo. E foi justo nesse período que explodiu a revolução da informática no Brasil, inaugurando uma "desterritorialização simbólica" de gigantescas proporções. Tivemos então a proliferação de uma cultura do hiper-consumo, da aceleração e da velocidade como deuses, uma cultura agonística ao máximo, decadente, sendo o agonístico hipertrofiado uma espécie de endeusamento da competição, do super herói, dos Olimpos, das celebridades. Um dos espaços onde a concentração de renda foi defendida como um valor positivo foi no espaço do futebol, onde os considerados craques tiveram legitimado o direito, diante da opinião pública, de receberem salários de um milhão e meio por mês e de terem integrado em seus corpos montantes patrimoniais de até trinta ou quarenta milhões de reais. Isso dentro de uma normalidade - portanto dentro de uma normatização - onde a maioria dos jogadores de futebol continuaram com remunerações mínimas. Outro espaço onde a cidadania foi desconfigurada foi o da beleza feminina, que já era comandada por esteriótipos, mas passou a produzir normalidades que legitimaram a anorexia como uma doença a ser investigada por todas as meninas que pudessem "ir até lá". Foi nesse processo que houve uma ruptura do conceito de cidadão e cidadã, uma implosão interna e uma fragmentação desse conceito em um feixe esquizofrênico e que realizaria progressivamente o "devir tribal", esse devir digamos medieval, de feudos, de espécies de micro nações autônomas. Essas micro nações entrariam no cenário social para competir, para lutar entre si. O conceito de "agonístico", aqui, tem a ver com a disposição para a luta, para o enfrentamento e ele está em ruptura com o conceito de cidadania. Em uma sociedade toda ela agonística não há como evitar o policiamento no espaço exterior às tribos. Nessa situação, não há mais esse espaço público como em uma República, o espaço público agora é a Floresta, o espaço do homo sacer de Giorgio Agamben, o lugar dos "matáveis". Em situação de barbárie, como estamos, os lugares da Universidade tendem a se restringir às salas de aula, e olhe lá.  A própria "universidade" tende a desaparecer, agora cedendo espaço para espécies de "mosteiros" de temáticas e linguagens localizadas. Como sair disso? Não será indo para trás, não poderemos voltar atrás, teremos que integrar tribos e tentar sair dessa idade média a longo prazo. Precisamos começar a pensar em novas linguagens, em ecumenismo, em diálogos entre pequenas nações. Nunca, desde o ano mil do calendário cristão, a palavra diálogo teve tanta importância para o destino e até a sobrevivência da espécie humana. Mas, veja bem, a palavra em sua significação verdadeira, verídica, e não em suas simulações dissimuladas e agonísticas.

O lado de fora do textão

Ilustração: Brecht Vandenbruck

Apresento um pensamento e uma escrita anti-textão. É a premissa. Um textão carrega um determinado séquito de adeptos. Para confronta-lo sempre precisaremos ter outro textão, com outro séquito. A lógica dos textões é uma legitimidade intrínseca, um ordenamento entre as palavras que encaixa no território político do vivente que diz e dos viventes que aplaudem de um modo exatamente perfeito. É próprio da episteme do textão ele ser naturalmente perfeito para seus seguidores. Decorre que haverá outro grupo de outros viventes que também entenderão o seu textão como perfeito, as duas perfeições se roçando, se tocando, negociando uma mesma realidade, um mesmo contexto ontológico. O textão assim é um negócio entre partes. Uma mesma guerra, um mesmo ritual. Assim, o textão reflete a guerra quando reflete um exército dentro dela. É possível sair da guerra por dentro dela mesma? Sair da guerra por meio de um fim? Essa era a questão das duas grandes guerras mundiais e de todas as guerras menores. Exceto algumas guerras milenares que já prefiguravam a impossibilidade de sair da guerra por dentro dela: a guerra das etnias religiosas no oriente médio e a guerra das etnias brancas contra as negras, no recorte do continente africano, e nas Américas. E outras guerras étnicas. Fora a dúvida sobre as possibilidades futuras do homem e da mulher. Ou de que homem e de que mulher. Sempre deixaremos o grande oriente de fora, por ora. Ele com suas milenares muralhas a conter a guerra do lado de fora. Esse "lado de dentro" do grande oriente agora se expande de um modo inédito e imprevisível. O tempo não urge para quem não segue ninguém. Para quem tem inadequação consagrada. O circo perdeu grande parte da graça porque ele não funciona sem o pão. E os economistas falam sobre como produzir o pão e a gente não entende e têm medo. A inadequação agora se conjuga, surpreendentemente, com as grandes muralhas do grande oriente. A inadequação agora é um lado de dentro, um outro lado de dentro que não tem mais tempo algum e, portanto, tem todo o tempo do mundo. E, vamos começar a reflexão a partir daqui, esse lado de dentro agora ocidental e mundial é, por natureza, doméstico, comum e sacrificável. Eu estou falando de uma economia que me autoriza e que é a única sobre a qual eu posso falar.