Se a opinião pública não fosse
controlada pela grande mídia e se a mídia não fosse controlada pelo Capital eu
acharia razoável o argumento de que a jogada do Maranhão na presidência da
Câmara teria sido indevida. Isso supondo que ela fosse fruto de uma artimanha
dos defensores do mandato de Dilma, e não de um aviso do presidente anterior,
suspenso pelo STF. Mas todos os acontecimentos são híbridos, desde a retirada
da ditadura militar como formato de controle político. Em todos os
acontecimentos desde então, vide a manipulação eleitoral via o binômio
pesquisa/mídia, tem havido violência do poder econômico. Foi isso exatamente
que capturou o Partido dos Trabalhadores e seus aliados (e não podemos dizer
"se tivesse sido de outro modo", porque ninguém conseguiu fazer de
outro modo). Deriva daí que o Congresso Nacional é um dos produtos finais da
violência enorme dos gerenciamentos de controle social. E resulta que um dia esse produto final
realizaria seu esplendor, sua maturidade dentro de um ethos desde sempre não apenas autoritário, mais que isso, perverso.
Aliás, o começo deste hibridismo
no qual as leis, as regras, são descumpridas ou insuficientes foi o modo como
se deu a ocupação do território nacional, com seu escravismo de características
únicas no mundo moderno. Só aqui, diferentemente do processo abertamente
violento dos Estados Unidos, a confraternização entre escravos e senhores era
estimulada e vivida como moldura de uma crueldade acintosamente perversa. No
campo jurídico, esse hibridismo migra para a primeira república, e
subsequentemente para todas as outras, por meio da própria Abolição da
escravatura. A Lei Áurea foi um ato violento, pois a força dos escravocratas
impôs a ideia de indenização aos donos dos escravos, seguindo a lógica de que o
mal chamado “mercado” é um “deus”. Essa força impediu a reflexão, tímida na
época, sobre a necessidade de indenização aos prejudicados pela injustiça da
escravidão. Ora, se era uma injustiça a ser abolida, precisaria ser retirada do
cenário produzido por ela, ou seja, precisaria ter identificados seus
responsáveis e estes precisariam ser coagidos a indenizar os prejudicados. Ao
contrário, a pressão dos escravocratas no parlamento da época acabou impondo a
ideia de que simplesmente abolir a regra do escravismo, sem indenizar ninguém,
seria uma dádiva generosamente ofertada pelos donos das minas, das charqueadas,
das grandes plantações de café e açúcar. Afinal, precisamos relembrar, as
extinções de escravismos e colonialismos da era moderna foram realizadas como
generosidades efetuadas pelos que os produziram e estiveram apoiadas em
justificativas muito mais relacionadas a ideias de produtividade e eficiência
dos mecanismos do tal “mercado” do que a algum tipo de descoberta lógica no
campo da ética.Então, é preciso entender todos os acontecimentos como imersos
em um tipo de guerra, no Brasil, desde sua fundação, em 1500, como um
território invadido e colonizado por um império. Em uma guerra há um hibridismo
na codificação: parte dela se dá com um grande acordo sobre regras onde haverá
um vencedor aceito por todos; outra parte é um espaço de violência pura, na
qual todos os lances são válidos e vence o mais forte, o mais sagaz, o mais
violento (e a violência máxima é o ataque inesperado com força descomunal, como
em Hiroxima). Há, inclusive, uma parte que é o hibridismo do hibridismo e ela
realiza um conjunto de jogadas-trapaças, que são jogadas inesperadas, mas
supostas na estrutura geral do acordo sobre regras.
Além da especificidade brasileira,
é preciso lembrar que toda a história da humanidade até hoje foi conduzida pela
violência do mais forte, que, em última instância é a lei do pai, do patriarca.
O patriarca é simbolicamente “o mais forte” porque um dia ele foi de fato o
mais forte, em termos de força física, e ele ocupa aquele lugar em
representação a todos os homens efetivamente mais fortes; e também em
representação às mulheres mais fortes e associadas aos homens fortes. E ele
será destituído, derrubado, morto, exilado ou silenciado em um mosteiro ou
asilo quando não mais puder representar esse conjunto hierárquico de força
bruta. E outro representante maior do signo da força bruta ascenderá ao poder,
podendo ser eleito por um conselho de anciãos ou mesmo por um colégio de
eleitores confiáveis. Essa é a ideia que fundamenta a palavra "deus"
nas religiões monoteístas, bélicas e articuladoras de muitos impérios. O
conceito de "verificável" do pensamento científico também abriga um
conteúdo bélico e patriarcal, pois muitos acontecimentos humanos não podem ser
medidos, talvez a maioria deles, e entre os que podem ser verificados,
reproduzidos, somente os que os poderes patriarcais escolhem são alavancados
por um conhecimento tecnológico de verificação. Mesmo a ação de uma maioria,
uma parte da população insuflada por uma liderança, poderá ser um acontecimento
violento e inaugurador de intenso sofrimento coletivo, como o nazismo, por
exemplo. Então, precisamos nos mover dentro de uma guerra, mesmo quando
queremos combate-la e extingui-la.
A jogada do Maranhão não produziu
violência, ao contrário, ela jogou um balde de água, conteve a velocidade dos
mais fortes, acalmou os ânimos. Foi
quase uma trégua, dado o fato de ter sido anulada por ele mesmo, na madrugada
do dia seguinte. No intervalo de um dia, uma pequena jogada mostrou a
importância da presidência da Câmara dos deputados federais e o motivo pelo
qual ela esteve ocupada, durante todo o período de aprovação do processo de
impeachment da presidenta, pelo Eduardo Cunha e tudo o que ele significa. Obviamente o processo retomaria seu curso, a
derrubada da presidenta Dilma, já que o que determina esse acontecimento é o
controle do congresso pelas bancadas da bala, do boi e da bíblia, garantido
pela grande mídia, com liderança central da Rede Globo de televisão. Esse
controle, não obstante inúmeras diferenças de escala e particularidades
próprias ao mundo dos espetáculos e das multidões, é o mesmo que produziu a lei
da Abolição e a retirada de cena da ditadura militar.
Falo tudo isso para assinalar que
uma parte do golpe efetuado hoje, 11 de maio de 2016, não revela uma grande
inauguração macabra e de consequências trágicas incalculáveis, como parte do
discurso dos defensores do mandato da presidenta eleita, Dilma Rousseff, quer
registrar. Sim, um grupo grande de brasileiros está muito triste e preocupado;
sim, viveremos um período de ampliação dos acontecimentos repressivos. Mas não
é corajoso e lúcido afirmar que caímos em um abismo. Ainda não é, não obstante
as ameaças que são praticadas e anunciadas na atualidade contra grande parte
dos seis bilhões de habitantes do planeta. O risco de que bilhões de humanos
sejam jogados na condição em que foram os sírios é visível a olho nu. Mas os
brasileiros ainda estão bem longe de uma situação de devastação das cidades e
da sociedade civil, em que pese as enormes dificuldades de garantias de
direitos constitucionais pétreos para a maioria dos habitantes dos centros
urbanos. A hegemonia que realiza um ataque formal por meio do impeachment da
presidenta já vinha sendo desenhada faz tempo e todos sabemos que se a aliança
com o PMDB não produzisse o lastro para a eleição de presidentes do Partido dos
Trabalhadores, Dilma não teria sido eleita.
Ora, mas se todo o processo de chegada do PT ao poder se deu a partir de
alianças com forças que hoje o derrubam, a queda da Dilma estaria a anunciar um
cansaço por parte dos donos do poder com relação a estratégias e formas
humanistas e republicanas? E esse cansaço, produtor do ataque midiático e
político ao governo do PT, resultaria em um mergulho imediato do Brasil e dos
brasileiros em um momento de radical e imediata perda dos espaços exíguos de
garantias constitucionais?
Não creio que a derrota tenha
essa dimensão, embora esse risco esteja posto. A diferença é que a nossa
memória, a dos descendentes dos escravos e dos abolicionistas, está muito mais
potente agora, mais capaz de introduzir novas regras no jogo, novos instrumentos
de pacificação e desconstrução das guerras conhecidas, de muitas guerras já
vividas. Sim, estamos muito mais ameaçados do que estivemos durante a década de
1980, mas desde o início das terceirizações e das práticas de desregulamentação
e exposição dos trabalhadores e das trabalhadoras ao assédio moral como regra
de gerenciamento, já na década de 1990, começamos a sofrer importantes perdas
de direitos. Temos uma enorme população plenamente consciente de que não pode
perder mais nada. Parte dessa capacidade
de resistência e entendimento devemos à experiência vivida no período de
governos do Partido dos Trabalhadores e seus aliados, tanto por seus acertos
quanto por seus erros, uma vez que o erro cometido produz sua crítica e
movimenta as possibilidades . A ideia mestra de “governabilidade”, por exemplo,
carrega um duplo significado, mais uma vez híbrido: de um lado ela é
constrangedora porque explicita o real controle do poder nas mãos do Capital, o
verdadeiro dono de todas as engrenagens; de outro, ela é revolucionária, porque
alimenta a experiência de que violentos são eles, os donos do poder. Nós, os
escravos e abolicionistas de sempre, somos pacíficos e ordenadores do bem estar
comum e os únicos recursos potentes que temos são a memória coletiva humana, a
consagrar a ética da pacificação, do cuidado e do equilíbrio ecológico, como
única chance de sobrevivência no planeta.
Precisamos perdoar o PT e
assumir, daqui para a frente, uma nova história, com novos atores e novas
regras do jogo. E, para que isso aconteça, precisamos interpretar o dia de
hoje, com a derrubada da presidenta eleita Dilma por meio de uma articulação de
um congresso nacional comprometido com uma elite autoritária e perversa, não
como o mergulho nosso em um abismo do qual só poderemos sair por meio do
desespero e de catarses políticas sangrentas, ao modo de sacrifícios culposos.
Precisamos entender o 11 de maio de 2016 como um novo começo para a luta pela
democracia no Brasil, utilizando tudo o que pudemos consolidar de
esclarecimento e dignidade coletiva acumulada até agora e desde as lutas
quilombolas e rebeldes do Brasil escravista colonial. Perdoar o PT, assim,
significa não mais entendê-lo como uma espécie de “pai” impotente a quem se
deva responsabilizar pela ausência de um “pai poderoso”. Perdoar o PT significa
dizer: “Obrigada!Obrigado!Obrigadx! Valeu! Mas daqui pra frente sou eu mesma (mesmo,
mesmx)! Somos nós e nossas cacofonias, dissonâncias e multiplicidades étnicas e
éticas!”. Ou seja, vamos sair, nos mesmos, do espectro do patriarcado para
poder lutar contra os patriarcas escravocratas de sempre. Vamos nós mesmas,
mesmos, mesmxs, sem lenço e sem documento. Nunca esquecendo que é
imprescindível que essas novas regras de luta, essas novas bandeiras, articulem
a leveza dos jovens e a memória dos velhos para que se possa partejar qualquer
tipo de tentativa de nação, ou nações, no território Brasil.