carta 5.1 - Estado forte, ingenuidades democráticas e cerveja artesanal

                                          

                                               É carnaval, Zeferina, e não estou com vontade de me explicar direito para os que leem as cartas. Escrevo apontamentos acolherados, aqui, sobre a necessidade que os seres humanos humilhados têm de alguém que queira erguer um estado forte, um estado nacional, uma cidade forte, governos fortes e voltados para a proteção pública dos mais frágeis.  Estou lendo o Yuval Noah Harari, fazendo anotações indignadas nas beiradas das páginas dele. O guri é um mágico do tarô, um maravilhoso ilusionista. Ela fala de toda a história da humanidade, nos últimos vinte mil anos, e chama de “cooperação” aquilo que o revolucionário russo Vladimir Ilyich Ulyanov, o tal Lenin iria chamar de “centralismo democrático”, no início do século vinte. Não lembro de nada que eu tenha lido diretamente em Lenin, mas devo ter lido pilhas de textos de revistinhas, polígrafos e jornais pequenos da esquerda brasileira sobre esse assunto. Pois é, uma meleca mesmo, o pessoal da nova tecnologia descobriu que pode usar a fórmula que bem quiser, combinada com outras tantas inventadas em acontecimentos históricos muito distintos, que se isso puder depois ser reproduzido em ratos de laboratórios e, mais tarde, em humanos é ciência e admite qualquer engendramento de linguagem. E a filosofia e os demais ramos das ciências sociais que vão plantar batatas, mesmo, porque já temos uma moda muito recente e forte de que não se precise ensinar essas coisas abstratas e transcendentes nas escolas dos adolescentes, essas coisas que não podem ser reproduzidas e testadas em laboratório, esses assuntos de Sócrates, Platão, Kant, Schopenhauer, Foucault e Deleuze. Bobagens não científicas já que não cabem em ratos brancos dentro de jaulas de tortura ou tubos de ensaio. 
                                   Pois o guri, o Harari, diz o seguinte: “Quase invariavelmente a vitória vai para aqueles que cooperam melhor – não só nas lutas entre Homo Sapiens e outros animais, como também em conflitos entre diferentes grupos humanos (óbvio que o guri jamais vai usar a expressão “luta de classes”, ele já a desmereceu no início do livro). Assim, Roma conquistou a Grécia não porque os romanos tivessem cérebros maiores ou técnicas mais efetivas na fabricação de ferramentas, e sim porque eram capazes de cooperar (grifo meu) mais eficazmente. Em meio à história, exércitos disciplinados derrotaram com facilidade hordas desorganizadas, e elites unificadas dominaram massas desordenadas (grifo meu)”. Isso o guri botou na página 139.  
                              Essas hordas desorganizadas, aqui no meio do meu carnaval, parecem ser o pessoal do PT e dos outros partidos de esquerda, aqui pra nós. E ele segue falando que as revoluções “comumente são feitas por pequenas redes de agitadores, e não pelas massas”. E ele segue dizendo que os comunistas assumiram o controle do “vasto Império Russo porque se organizaram bem”.  Fica subentendido que os comunistas perderam a vez porque são menos eficazes do que o capital cognitivo, o exército disciplinado do nosso momento, tão bonitinho e emocionante em sua feição Obama e família, tão revoltado agora com sua incontinência Trump.
                                            Foi aí que eu fui ver uma parte do meu escrito chamado Tempos e Tutelas – contribuição à História do Direito e da Justiça do Trabalho no Brasil, apresentado em 1997, na universidade PUCRS. Aí, bom, Táta, é carnaval e eu só estou fazendo apontamentos antes de uma cerveja bem gelada.  Sim, estou super cuidando da bebida. Beber bem pouco, só hoje um pouco mais, aquela cerveja que nunca mais tomei. Para comemorar a grande festa das ruas e seus alegres gritos de foratemer. Então, escrevi sobre a lei do ventre livre, veja só, você, Zeferina, não é nascida ingênua? Fantástica essa palavrinha: não somos os mestiços todos nascidos ingênuos? Escrevi:

“A historiografia mais recente tem revalorizado a Lei do ventre-livre, a partir da apreciação das ações de liberdade que ela regula. Antigamente esta lei era considerada, pela historiografia, como ineficaz e até mesmo sem validade. Em nossa dissertação descobrimos um novo aspecto desta lei. Este aspecto está no seu próprio nome: o ventre-livre. A conquista da liberdade, por meio da alforria, vinha sendo obtida desde remotos tempos do Brasil colônia. Entre 1850 e 1871, esse fluxo das alforrias vai se somar a outros dois fluxos: as políticas derivadas do abolicionismo e a política da substituição dos negros escravos pelos imigrantes brancos europeus. O abolicionismo tem sua origem difusa, mas poderíamos fixar o final do século XVIII e início do XIX, como um tempo no qual o liberalismo se propaga, no Brasil. Entre 1850 e 1871, o abolicionismo vive um momento complexo. A partir de 1871 ele vai encontrar uma certa simplicidade, diante da solução econômica oriunda da imigração (italiana e alemã). A Abolição, neste enquadramento, passa a ser uma lei perversa imposta principalmente para desorganizar as possibilidades de ação dos negros e para joga-los para fora do mercado de trabalho. Além disso, a Abolição permite que os imigrantes iniciem sua vida de contratos a partir da ausência das conquistas dos negros, a partir dali apagadas nos cenários das linguagens jurídicas e políticas. Os negros adquirem apenas o direito de ir embora, enquanto os brancos pobres são tratados quase como escravos, em certa medida de suas vidas, embora possuidores da proteção da condição de trabalhador livre e, portanto, da vantagem imensa de se manterem agregados em famílias e clãs de suas origens europeias, com manutenção de linguagem e identidade étnica. Até 1871, ainda se discutia como incorporar os negros, no mercado de trabalho, como homens livres. [Era um enorme problema, pensa bem, como tu chega para um sujeito e diz: “tá, agora tu não é mais meu”; e isso para milhões de homens e mulheres negros.] A lei do ventre livre fez uma significativa diferença entre alforriados e ingênuos.  A ideia era de que os ingênuos deveriam nascer livres e como tal serem tratados desde o nascimento. [Bom, mas como é que uma barriga pode ser livre em um corpo escravo?] Os deputados daquele tempo pensavam que os libertos não poderiam jamais apagar as marcas de terem sido escravos um dia. [A vida toda, para muitos] A ideia era construir a cidadania integral dos negros, a partir de uma geração, a que nasce de ventre livre. A lei do ventre livre não teve eficácia porque se confundiu com o abolicionismo e as tratativas para a aplicação da fórmula da Lei da Abolição. Nessa fórmula estava inscrita a imigração de trabalhadores livres europeus”.

                                          Daí vem a frase que eu queria trazer aqui, Zeferina, nesta carta: “Ela não poderia ser aplicada [lei do ventre livre] se não houvesse um Estado forte, que obrigasse as relações individuais e privadas a seguirem a lei. Um Estado que atuasse no sentido da proteção do menor, descendente de ventre livre”.
                                      Não encontrei fonte alguma que pudesse me informar se você era ingênua, alforriada, ou se sua condição jurídica nem era levada em conta em seu ambiente familiar, quando você era uma menina pequena, Táta querida.  Porque, afinal de contas, boa parte desse enredo não chegava a muita gente pobre e plantada em lugares distantes da Corte e depois da nascida república velha. Penso que te pergunto se você era ingênua e você ri, às gaitadas, e pensa: “ingênuos são vocês aí, guria”! Depois volto neste maravilhoso assunto das ingenuidades de múltiplos tipos dos brasileiros, mas agora eu falava sobre o Estado forte, sobre os exércitos disciplinados das “elites unificadas” de quem o Harari fala tão bem. Estes sabedores da tal cooperação em larga escala. Estou pensando na tal globalização. 
                                      Então, em outro ponto do meu texto de 1997 estava escrito que a capacidade de contrato livre dos trabalhadores brasileiros começa a ser ampliada a partir da lei nº62 de 1935, no processo de erguimento da ideia da “Justiça do Trabalho”, durante – justamente – a ditadura do Getúlio Vargas chamada de “Estado Novo”. Essa lei chamava-se “lei da despedida injusta”, e foi ela, e sua experimentação nos formatos embrionários de juntas de conciliação e julgamento e no formato experimental do Conselho Nacional do Trabalho, ainda vinculado ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, essa lei que fez deslanchar uma profusão de jurisprudências garantindo diversas interpretações à estabilidade no emprego. Analisando decisões dos conselhos regionais do trabalho da época e decisões do CNT acabei afirmando que o pico da capacidade de contrato dos trabalhadores livres foi em 1941, depois disso as negociações em prol da democracia e de pactos para viabiliza-la produziram o que seria a futura Consolidação das Leis do Trabalho, a primeira versão em 1943, quando a estabilidade já aparece contida pela hipótese de uma indenização em valores monetários. Antes disso havia até interpretações sobre o lugar do trabalho, individualmente considerado, tornar-se posse vitalícia do trabalhador após dez anos ininterruptos trabalhados no mesmo local. É preciso entender que quando surgir a lei nº62 de 1935 um número significativo de trabalhadores tinham dez anos de trabalho na mesma empresa, esse grupo adquiriu essa estabilidade em debate durante o período autoritário de Vargas.
                                    Vamos dar uma olhada na Wikipédia, sobre o Getúlio Vargas: “Foi presidente do Brasil em dois períodos. O primeiro período foi de 15 anos ininterruptos, de 1930 até 1945, e dividiu-se em 3 fases: de 1930 a 1934, como chefe do "Governo Provisório"; de 1934 até 1937 como presidente da república do Governo Constitucional, tendo sido eleito presidente da república pela Assembleia Nacional Constituinte de 1934; e, de 1937 a 1945, como presidente-ditador, durante o Estado Novo implantado após um golpe de estado. No segundo período, em que foi eleito por voto direto, Getúlio governou o Brasil como presidente da república, por 3 anos e meio: de 31 de janeiro de 1951 até 24 de agosto de 1954, quando se suicidou”.
                                    Então, foi no tal “governo provisório” que produziram a invenção da lei 62 de 35, depois foi no período autoritário do tal “presidente-ditador” que começaram as experiências com essa lei nos conselhos estaduais e nacional da justiça do trabalho em formação, e foi quando essa ditadura é enfrentada para ser transformada em um pacto democrático que essa lei começa a sofrer restrições, em sua interpretação jurisprudencial (ainda que fosse em caráter experimental, já que a tal justiça do trabalho era uma elaboração embrionária e dentro do executivo, mas reunindo em seu formato juristas de notório saber, que viriam a organizar a primeira CLT de 1943). Entendeu, Zeferina? Os autoritários do período da ditadura do Estado Novo queriam defender a estabilidade no emprego para os trabalhadores brasileiros. Eles sonhavam em construir, por meio de um “exército disciplinado de uma elite unificada” uma nova dignidade para o povo brasileiro, para retira-lo tanto da condição de alforriados, quanto da condição de ingênuos e abandonar, com essa cooperação nacional organizada, os registros oriundos da escravidão negra.
                          Hoje o Yuval Noah Harari pode defender calmamente essa ideia, da gerência centralizada de um modo disciplinador em larga escala, mas agora referindo-se aos grandes gerentes do grande capital mundial. Eles podem, Hollywood deixa, respeita e representa, como elite unificada que é.  Nós temos que ficar aqui, atordoados, hordas desorganizadas esperando uma democracia qualquer, imprecisa, indefinida. Nós, ingênuos.
                                      Mas é carnaval, Táta, e eu vou cair na cerveja artesanal: pouca, cara e boa.


Manifesto Feminista de 1990 - Não comemore o 8 de março

Resistência em Série
MANIFESTO FEMINISTA
Existem muitos dias comemorando vários tipos de pessoas. Dia do trabalhador, dia do índio, dia do negro... O dia do trabalhador não é o dia do índio, o dia do índio não é o dia do negro, o dia do negro e do índio não é o dia do trabalhador. O dia do professor não é o dia do pai, o dia do pai não é o dia do professor. O dia da mãe não é o dia da professora, o dia da professora não é o dia da mãe. O dia da criança não é o dia de todos os filhos e nem todo o filho teve o direito de ser criança. O dia do pai não é o dia do namorado, o dia da mãe não é o dia da namorada, o dia dos namorados não é o dia do pai nem da mãe e o dia da mãe não é o dia do trabalhador.
O dia da eleição não é o dia da liberdade, o dia do trabalho não é o dia da liberdade, os dias do pai, da mãe e da criança não são dias de liberdade. Não existe liberdade no dia-a-dia e os dias do Planeta estão contados.
No primeiro dia Deus separou a luz das trevas. No segundo dia, Deus formou o céu da terra. No terceiro dia, Deus criou as plantas, as frutas e as sementes. No quarto dia, Deus criou répteis, aves e animais domésticos. No sexto dia, Deus criou o Homem para dominar os répteis, as aves do céu e os animais domésticos. No sétimo dia, descansou após a obra que foi feita. Deus criou a mulher para auxiliar o homem no 8º dia? Esses são os dias da Bíblia.
O 8 de março é o dia internacional da mulher. E o dia da mulher é o dia de quem?
No nono dia, Deus condenou o homem à dor do trabalho e a mulher à dor do trabalho de parto. Depois disso o homem criou a fábrica e a fábrica condenou a mulher à dor do homem, à dor dela mesma e a todas as dores. A fábrica dividiu os homens e o Grande homem que se adona das fábricas rouba o trabalho do pequeno. E todos eles, que saem da dor do trabalho de parto, roubam o trabalho, no privado e no público, da mulher. Eles roubam nosso corpo em todos os lugares.
O Capitalismo e o Socialismo mostram toda a sua violência:
- milhares de mortos na Romênia Socialista;
- a Nicarágua absurdamente tentando provar sua razão para os americanos-ingleses;
- os índios em extermínio, no Brasil;
-o massacre dos jovens chineses na praça da Paz Celestial.
Vencidas pela violência de Pequim, queremos derrubar todos os muros de Berlim. E no Planeta, o protesto das terras e das águas machucadas é não chorar ou chorar demais. Homens e mulheres têm medo da falta de chuva e medo da terra que desaba dos morros.
Na passagem do renascer surge o privado e o público, quando os homens inventaram a máquina a vapor e os cavaleiros e os nobres perderam o seu valor. Tornou-se proibido ao homem chorar em público. Chorar, que era um ato respeitável, prestigiado, torna-se sinal de fraqueza. Se o público tornou-se masculino e o público é coletivo, o feminino não faz parte do coletivo. Se a história é a manifestação das ações coletivas, o coletivo é sempre público e o público é masculino, o feminino não tem história. É a falta de...
Nós, mulheres, fazemos amor e carinho no privado, assim como choramos. Envelhecemos e nos tornamos doloridas lavando, passando, cozinhando, enquanto os poderosos capitalistas e socialistas fazem a guerra. A vida está no privado e o privado é um cárcere. A história do feminino está no privado, onde as lágrimas podem correr.
Se Deus criou a mulher no 8º dia e, no 8 de março de 1857, cento e vinte e nove mulheres operárias da fábrica Cotton, Nova York, foram vítimas de uma das chacinas efetuadas contra a luta/ dos oprimidos, nós, na verdade, no nosso dia-a-dia, não sabemos o que um “oito” tem a ver com o outro, nem o que eles significam. Por que a morte das americanas-inglesas vale mais do que a morte das americanas índias ou africanas? E por que a morte das operárias que morrem na fábrica é mais importante que as mortes de cinco mil mulheres que morrem, por ano, de aborto? E por que a morte destas mulheres vale mais do que a de Chico Mendes e de uma Augusta Floresta Encantada Amazônica? E por que 129 operárias da fábrica Cotton representam as mulheres rotas e alteradas, que criam crianças mudas e telepáticas, meninas cegas e inexatas? Não existe liberdade no dia-a-dia! Por que pensar nas feridas como rosas cálidas?
Aparecemos na fala da direita e da esquerda na frente de um tanque e comprando sabão. Só que a direita mostra a mulher na frente de uma máquina de lavar eletrônica e a esquerda na frente de um tanque de cimento. E nem a esquerda e nem a direita  valorizam o trabalho doméstico de limpar. Não temos o direito de ter filhos quando quisermos, não conseguimos ter os filhos que queremos. Não temos nada para comemorar. Hoje em dia nada mais podemos fazer, tudo já tem alvará, regulamento e programa. Calouro, eleitor e torcida em todo o lugar podemos ser. Se fizermos boca-de-urna, Sassá Mutema não há de faltar.
A nossa fala não é legítima. A não legitimidade da fala feminina em um mundo masculino é a nossa loucura. O nosso hospício é um hospício não legitimado que se dá no privado. E quando aparece no espaço do Collor, representado pela Míriam, ex-namorada do Lula, atrapalha tanto a direita quanto a esquerda. E tantas Mírians assustadas, querendo se libertar. E no mundo tudo embola:
- Aqui, no Brasil, um pastor anuncia a boa ventura. Cazuza Santificado ressuscita em turbilhões todos os torturados, e, em nome dos tantos milhões que Li Peng crucificou desmancha-se apoplético, aidético e exegético: minha vida é minha vida e porque é minha, minha vida, minha vida sempre será!
O mundo renascia:
O Rei Sol, absoluto, com poder de vida e morte sobre qualquer um: Luís XIV, declarou:
-eu sou todos os ministros. Eu respondo por todos os ministros. O Estado sou eu! L’Etá c’est moi!
O Estado tem sido, em toda a nossa história, um homem só ou um grupo de grandes homens. O capitalismo está destruindo o Planeta. O socialismo nunca defendeu a felicidade do homem, da mulher, da infância, da velhice e da natureza. As mulheres sempre criaram a vida. Cada pequeno homem, na casa e no coração de cada mulher é fraco e infeliz, mas poderoso. Somos todos culpados, somos todos inocentes.
Mírians somos todas nós se não há censura. Esperamos um príncipe encantado, esperança justa e legítima. Mas por que apostar na espera desconhecida, se esta significa a destruição do Planeta? Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.
Todos os príncipes sempre nos maltrataram. A Espécie Humana sempre foi governada por homens destrutivos e mulheres submissas.
Malditas e enlouquecidas. Mal-amados e perdidos. Trabalhadoras, índias, negras, professoras. Pais, mães e crianças. Filhos e filhas: não tendes direito a nada, nem ao corpo, nem à alma e nem à palavra cantada.
Subir a montanha sagrada, renegar todas as tábuas, encher o corpo de espíritos, falar para todo o horizonte. Plin, plin: Despertar a China inteira em nós.
Passo a passo, pedra a pedra
Vamos construindo sonhos,
Vamos fazendo edifícios cheios de esperanças novas e nossas.
Passo a passo, pedra a pedra, vamos regando desertos de ferro, cimento e areia.
Vamos derrubando portas, vamos cortando as cadeias.
Passo a passo, pedra a pedra lutamos numa guerra civil para sair inteiras.
(Poema de Arinda Ojeda, presa pela ditadura militar chilena)

NO 8 DE MARÇO:
- Não comemore.
- Pense em quem você foi até agora na vida.
- Faça uma meditação em reverência à vida, à paz e à liberdade.
- Olhe-se no espelho.
- COLOQUE-SE EM POSIÇÃO DE RESISTÊNCIA.
- Tente publicar, na íntegra, o texto em algum jornal.
- Converse com mais duas pessoas sobre o texto.
ALERTA FEMINISTA
Janeiro/90
Dinah, Laura, Lelê, Pacy, Sirley, Tiane






Querida Zeferina - carta 3.1 - cistite, o macho e os cobertores



                                        Querida táta,


                                     Estou com um roteiro já bem cheio de assuntos para falar contigo. Agora estou com cistite, toda dolorida e sensível, sentada perto da porta aberta do banheiro, pronta para sair correndo. Agora resolvi escrever essa carta aqui, saindo fora do roteiro um pouco, mais espontânea ainda, já que paro para correr ao banheiro e escrevo sentindo uma ardência pungente. Talvez assim fique mais claro o que digo por aqui nesse mundo todo ele embrulhado em autismos de novos tipos, contaminantes de suas linguagens, uma torre de babel como a da bíblia: ninguém se entende e todo mundo vocifera certezas absolutas.
                                    Agora penso que esta cistite representa bem uma parte importante do que preciso dizer aqui neste planeta esquizofrenizado, ao menos falar a alguns que podem me ouvir, ao menos em Porto Alegre. Como poderia eu falar a elas e eles e ser entendida sem ter que fazer um tratado do tamanho do livro da Simone de Beauvoir? Estou lendo o Homo Deus, do Harari, já falei a você, Zeferina? Tanto quanto ao ler O Segundo Sexo da Simone, neste livrão do menino israelense famoso dá pra você sentir o que eles querem dizer já nas primeiras cinquenta folhas. O que eles têm em comum é uma forte erudição no conjunto temático que abordam. Eles são cada um uma espécie de “Google” sintético sobre os seus assuntos. Sabem tudo e mais um pouco. Mas o conteúdo do conjunto da obra de cada um acaba sendo mesmo uma frase simples, dita por qualquer humano sem estudo algum, todos os dias: “eu acho que tal coisa é assim e deveria ser assado”. O livro do Harari, por exemplo, defende que de dentro do conhecimento produzido pela espécie humana homo sapiens vai surgir uma nova espécie, ou mais de uma, e não necessariamente de um formato que pudesse ser chamado ainda de humano. O guri defende que estamos criando máquinas que até podem se tornar autônomas e se reproduzirem como uma espécie de organismo coletivo, e que esse tipo de acontecimento pode vir a dominar não só o planeta Terra, mas também todo um largo território do cosmos, do universo; esse que a gente imagina por fotos de satélites altamente potentes, mas nunca semelhantes ao olho humano diretamente posto em ação. Ele defende então que o ser humano pode estar em extinção, e isso a se realizar nos próximos cinquenta anos. Ou cem, no máximo. E o cara, esse menino, vende milhões de exemplares dos seus livros pelo mundo, esse nosso cheio de humanos destrambelhados. Fico imaginando que efeito o pensamento dele pode ter em quem o lê. (banheiro correndo). Também estou nos primeiros capítulos da Simone e já tenho a sensação de saber o que lá está escrito. Juro que vou ler todo o livro e respeitá-lo, mas agora estou pensando ser o trabalho doméstico um tema tratado pela companheira de Sartre como um padrão de acontecimentos secundários, em termos de valor, aos acontecimentos realizados no mundo público onde se faz a política, o saber da arte reconhecida como tal, com A maiúsculo, o saber do conhecimento acumulativo e histórico das engrenagens tecnológicas que geram a história humana desde o domínio do fogo e a invenção da roda. Lembro que Marx também entendia o mundo da reprodução humana como um mundo natural e o mundo da produção de riquezas, máquinas e mercadorias como um mundo histórico. Tenho essa impressão porque a dama existencialista começa seu pensamento pela ideia de que o lugar do trabalho doméstico é um território inessencial, lugar de coisas, de nadas políticos.
                                          Passam pelo meu pensamento um milhão de ideias, passam correndo e eu não tenho tempo para trazê-las aqui, agora. Sempre se tem, nesse mundo que começou em Galileu e Copérnico e veio até os autodenominados “pós-doutores” brasileiros e super-phDs americanos e europeus, a necessidade de construir explicações enciclopédicas para qualquer ideia que queria salvar-se da margem das postagens domésticas no facebook, com poucos leitores. A ideia matriz do saber absoluto domina a espécie humana atual, sapiens sapiens, e é ela que comanda a espinha dorsal tanto do livro de Simone quanto do livro do Harari, um phD em história, que tende a afirmar serem os homo sapiens mais burros do que seu filho, o computador, e que poderão vir a morrer (como morreu o deus em Nietzsche) para dar lugar ao filho, o sujeito inorgânico: “Depois de quatro bilhões de anos perambulando no reino dos compostos orgânicos, a vida eclodirá na vastidão do reino inorgânico e assumirá formas que não podemos vislumbrar mesmo em nossos sonhos mais loucos. Afinal, esses sonhos ainda são produto da química orgânica” (na introdução do Homo Deus, para quem está lendo as minhas cartas). Então é o mito originário de que o conhecimento acumulado em maior quantidade e mais apto a convencer coletividades inteiras, ou ser usado para a fabricação de instrumentos para dominar, pela força ou pela ilusão, essas mesmas coletividades, esse conhecimento é essencial, sendo inessencial ou coisa tudo o que não o compõe como fórmula, receita, química ou, como dizem os guris gerentes do nosso mundo autista, algoritmos. Tomei um remédio para dor e ele está começando a fazer efeito. A porta do banheiro já está fechada, agora. A máquina de lavar está produzindo cobertores limpos e eu os estendo no sol desafiador que invade e esquenta furiosamente o mundo lá fora.
                                     O trabalho doméstico não é esse tipo de conhecimento, ele não integra a mitologia do saber humano da espécie sapiens sapiens, a não ser naquilo que nele afirma  mercadorias a somarem à mitologia milenar do domus como um lugar materno-infantil. O saber materno doméstico não é mensurável. Claro, inúmeras coisas dentro da casa de cada uma de nós –as produtoras titulares do trabalho doméstico- são objetos fabricados. Algumas de alta tecnologia, como as máquinas de lavar, sagradas para qualquer tipo de feminismo. Mas o fazer cotidiano da limpeza da casa, dos panos, das peças, das louças, dos móveis, o fazer cotidiano do preparo de comida, mesmo quando a partida se dá com pré-cozidos industriais, é um conhecimento não pensado na academia, a universidade, não pensado nos locais onde todos se esforçam por produzir discursos enciclopédicos, políticos, filosóficos, historiográficos. Esse fazer cotidiano só é pensado no mundo intelectual quando se trata de metamorfoseá-lo em mercadoria vendável. Aí ele passa a ser culinária étnica e ou sofisticada, técnicas em geral associadas ou a produtos ou a ideias de sedução ou redução de esforço. E é aí que começam a aparecer os homens na produção desse trabalho. Mas sempre fica aquele lugar natural, um lugar onde há um conhecimento contido ali, ágrafo, iletrado, sem cálculos de produtividade, valor ou sabedoria. Passam muitos pensamentos por mim, agora, e não há como enfeixá-los em uma ordem algorítmica. Talvez meu pensamento seja do tipo doméstico e talvez alguém deva tentar explicar como esse tipo de pensamento se dá. Ou talvez esse segredo deva ficar como está e a hipertrofia desse mundo humano das linguagens enciclopédicas deva ser repensada.
                                       Estou quase indo correndo fazer mais um xixi ardido. Como uma criança trançando as pernas e evitando o banheiro para continuar o brinquedo, falo agora o que me parece crucial no momento (xixi primeiro, já volto). O macho da espécie humana não deixou de fazer o trabalho doméstico por arrogância, ou por uma necessidade violenta de uma natureza própria a sua condição potencialmente viril. O macho homem era o único ser humano não obrigatoriamente implicado naquilo que era, nas cavernas, o domus das relações de reprodução humanas: mulher grávida, bebês, doentes e velhos. O macho homem era o único ser humano que poderia proteger esse agrupamento complexo e doméstico de reprodução humana, o único que poderia pegar algum instrumento tornado arma e proteger a coletividade de algum ataque de outro animal ou de outros grupos étnicos ou mesmo outros tipos de humanos. Isso porque ele nunca teve a capacidade de engravidar. Então, durante quase todos os setenta milhões de anos da sua existência (exceto os últimos séculos, quando foram inventadas as máquinas domésticas e as químicas de controle da reprodução, como os hormônios e as barreiras mecânicas qualificadas, como os modernos dispositivos intra-uterinos), o macho da espécie humana foi obrigado a desenvolver mitologias que o capacitassem a superar o medo do mundo exterior, ameaçador, inóspito, e que permitissem a ele garantir a paz doméstica, na medida do seu alcance. É preciso entender isso, Zeferina. Não é? É preciso entender a historicidade dessa divisão entre o doméstico e o político. E, o mais importante que desejo dizer agora, a hipótese de estarmos vivendo o fim dessa divisão tal como ela se deu desde dezenas de milhões de anos não deveria nos autorizar a descartar o conjunto da memória humana armazenada na condição de macho ou de fêmea da espécie sapiens sapiens.  Se precisamos sair de formatos construídos pela tradição milenar, formatos do ser homem e do ser mulher, por que exatamente precisamos fazer isso ao ritmo alucinado da produção de novíssima tecnologia, a produção de robôs, de nanotecnologia, de bioquímica de última geração? Por que deveríamos nos submeter ao pensamento de que o conhecimento enciclopédico, esse produzido no mundo público, político, predominantemente dos homens, deve determinar a velocidade dos acontecimentos humanos, nesse século vinte e um?
                                              Mais um cobertor está quase pronto para ir ao sol. Estou comendo rodelas de abacaxi. Ora, minha querida Zê, você não acha que há uma lógica muito simples, delicada e modesta, doméstica, a nos dizer, a nós, mulheres, que se somos a espécie humana sapiens sapiens e se algo nos ameaça a existência somos nós mesmos que devemos nos proteger? E não podemos fazer isso com calma, pensando bem, aproveitando as opiniões e sensações de bilhões de humanos? Não podemos pensar isso mais lentamente, com a naturalidade com a qual fazemos os trabalhos domésticos que são bem feitos?  Por que deveríamos apressar-nos e dizer que o macho humano não presta, que a fêmea humana deve ser superada, que toda e qualquer lógica milenar humana perdeu o sentido?
                                                O melhor trabalho doméstico humano é manual, artesanal, lento e calmo. Os cobertores estão perfumados, o sol inunda o verde em volta da minha casa.


versão um. foto:  Luiz Eduardo Robinson Achutti.


Enigmas do "Lula-aqui"

                     
                               

                                            Sim, amigo, entendo isso de a ideia dos tais “coxinhas” como uma classe média desagradável ser um pensamento consolidado no PT e, portanto, em grande parte da esquerda brasileira. Eu entendo que a academia produziu esse discurso durante a era lula e dilma, e esse foi um dos principais discursos trágicos do PT. Vc me dizer que o Lula não está inventando a roda é um argumento bom de analisar, porque está claro que o conjunto político que vc chama de "Lula" deve, precisa, inventar algo como uma nova roda, do contrário continuará afundando na impotência.  O bloco representado pela candidatura Lula para a presidência do país, a se definir nas eleições diretas de 2018, ergueu esse discurso com centralidade desde o primeiro mandato do Luis Inácio, no início dos anos dois mil, desde quando o Betinho protagonizou a campanha contra a fome. O PT se elegeu elogiando a dignidade dos pobres e humilhando o sucesso parcial e incômodo da classe média. O discurso da luta das fábricas, bancos, prestação de serviços públicos e universidades foi, então, substituído por esse discurso contra a pobreza extrema, justo no momento em que o Lula eleito no primeiro mandato – com a permissão da Rede Globo – encaminhava a primeira grande reforma da previdência no serviço público. Nos mandatos da Dilma foram reforçados e passaram à dianteira do sistema discursivo do PT as falas das minorias políticas – mulheres, negros e glbt –impulsionados por entendimentos sobre políticas públicas. Eu diria que a produção discursiva do Partido dos Trabalhadores ficou subordinada a algoritmos (sistemas inteligentes de controle de funcionamento de organismos coletivos humanos) engendrados nas universidades, nas organizações não governamentais, nos movimentos sociais de minorias políticas, nos órgãos municipais, estaduais e nacionais de realização de políticas públicas.
                                                                  Vamos tentar analisar o problema de um ponto de vista independente da ação desses algoritmos que contaminam o PT, em suas várias frentes. O fato deles, a base social do golpe temerista, serem de classe média não explica a produção dessa base social, pois eles são um índice pequeno perto do índice de classe média que apoia o Lula. Mas o uso dessa identidade "classe média" para caracterizar o "mal" induz uma parcela significativa do restante da classe média a pensar que ela não é qualificada para fazer política. Induz o trabalhador ou desempregado pobre a odiar quem tem alguma renda estável, moradia e segurança mínima. Induz as pobres diaristas a desprezarem as empregadoras menos nobres, menos ricas. Induz a separação entre os pobres e a classe média. Não é porque eles, os camisa verde-amarela, são de classe média que são transtornados, incultos, portadores de uma coragem apoiada na liderança dos empresários da grande mídia nacional, portadores de um pensamento paranoico e ingênuo. Seria muito mais inteligente e potente - como discurso - chama-los de CONSUMIDORES INGÊNUOS(NAIFES) capturados por algoritmos da gerência do grande capital financeiro. A galera das redes sociais entenderia muito melhor. Isso levaria ao cenário político um debate sobre o consumismo coisificado, o consumo predatório e destrutivo da espécie humana. Mas os acadêmicos que controlaram o discurso petista, de 1990 até ontem, não sabem pensar de um modo mais complexo porque são aprisionados dentro de "franquias" de pensamento. São contaminados por algoritmos desatualizados, pensados desde 1990, que foram inoculados no tecido do que viriam a ser as redes sociais, de quando havia alguma possibilidade de haver uma globalização humanista no planeta, alavancada pela ideia de “um outro mundo é possível”. Essas franquias dentro das universidades são controladas, em sua produção, pelo gerenciamento de tipo neoliberal dos financiamentos de pesquisa, da produção acadêmica, da formação de nomes nas universidades. Um pensador acadêmico desse tempo neoliberal nas universidades precisou forjar um discurso compacto e não pode se afastar dele, sob pena de não ser mais reconhecido. Ele foi obrigado a ser uma franquia para ser reconhecido como pensador nobre. A inteligência petista foi aprisionada dentro de um campo estreito de lógica de linguagem. Atualmente ela se compõe de um somatório de franquias discursivas, cada qual lutando para preservar sua imagem e identidade formal e química.
                                                   Mas o Lula, como você bem colocou, é um. Ele é um ser humano real, um pensamento humano que tem o poder de escapar das engrenagens dos mais eficientes robôs e seus algoritmos. E agora não é o “Lulalá”, aquele Lula ingênuo tentando chegar ao posto máximo de poder no país Brasil. Agora é o “Lula aqui”, com o sentido de “quem somos, que poder temos e que poder queremos ter”; com um sentido nacionalista retrô que, por isso mesmo, pode ser imune aos algoritmos da globalização neonazista. Podemos estar diante de um cenário em que a inteligência da robótica de última atualização só possa ser vencida por uma inteligência muito superior e humana que tenha a capacidade de ser mais “burra” que a máquina, mais antiga, em versão desatualizada. É nesse fluxo que apareceram todos os acontecimentos insurgentes, desde o 11 de setembro. O ataque às torres gêmeas obedeceu essa lógica – o pensamento mais antigo fora do contexto da última atualização é capaz de não ser lido pelos controles da inteligência mais sofisticada. Usando uma metáfora: o computador não pode ler um disco de vinil. É também nesse fluxo que apareceu o Trump, o Brexit e outros cenários tidos como “burros e atrasados”. Mas todas as reações emergentes, até agora, foram de direita, foram em linhagens do pensamento mais patriarcal e bélico, fundamentalista. Não temos ainda uma reação emergente no campo da esquerda. Nesse campo temos apenas franquias capturadas, contaminadas pelo modo gerencial da “qualidade total” neonazista. Então seria fundamental que as franquias erguidas durante a era de ouro do petismo bem sucedido e de resultado fossem abandonadas, porque elas carregam, todas, conceitos de eficiência construídos pelas ideias de “o mais moderno modelo”, “o modelo que funciona melhor nas redes de visibilidade discursiva”, e esses modelos são integrados ao cartel de algoritmos da globalização genocida.

Mas é preciso muita coragem para sair dos formatos de franquias acadêmicas, pois isso implicaria na perda das regalias e seguranças econômicas dos financiamentos editoriais e de pesquisa. Implicaria em aceitar cair em um determinado anonimato, ou em uma enorme perda de visibilidade. E isso é possível que os grandes discursos competentes, como o da Marilena Chauí, não possam mais fazer. Como os drogados em crack, ou cocaína, ou mesmo no inofensivo e mortal açúcar, não podem largar seus vícios, mesmo diante da morte certa. Então, todo o cenário do “Lula aqui” depende de o Luís Inácio conseguir envolver-se com um coletivo de lideranças que rompa com os controles das franquias e dos algoritmos mais atualizados. E ele tem capacidade física e química para fazer isso? Tem. Ele é um humano, é brasileiro e é o líder que a nação escolheu. E os dados rolam no tempo.

versão um. foto : Luiz Eduardo Robinson Achutti : Freitas, o último lambe-lambe, e o grande Silvio Tendler e seu neto Ernesto

A lógica da pedofilia como engrenagem política


Há os que esperam o fim do golpe e o começo de um rearranjo menos infeliz para a população brasileira; que até 2018 aconteça uma retomada de força política de uma frente ampla democrática e republicana capaz de fazer acontecer um processo eleitoral legítimo.
Há os que esperam uma tomada de poder pelo comando do exército, uns querendo uma ditadura militar por muitos anos, em um desejo retrô, outros querendo uma hipótese nunca ocorrida de um arranjo via poder militar para a realização de uma refundação republicana. Essa última ideia parecendo delírio, assim como a retrô também.
O mais patético de tudo isso é que o exército não tem como ocupar o comando político, e o comando do exército sabe disso. Simplesmente não é possível imaginar o exército ditando leis, quando essas leis estão sendo desmontadas agora, em meio a um cenário político de aparente degradação irrecuperável das estruturas republicanas. Mas é uma degradação lenta, tecida por maquiavélicas engrenagens aparentemente legais, formalmente legais. Por ser assim, muito lenta e superficialmente legal, essa degradação imobiliza qualquer outra alternativa política que não ela mesma, degradação. E o exército é posto nas ruas, lentamente, quase como se o governo e o judiciário estivessem envergonhados pela imoralidade do que impõem à população, como cordilheiras de maldades sobre flores inocentes e rasteiras. E o exército vai para as ruas com pena da população civil. E a população civil apieda-se de si própria. Um brutal e devastador silêncio vai se impondo. Torna-se hegemônica a ideia de que vivemos um cenário que lembra a condição indefesa da infância diante da pedofilia.
No entanto, não se trata de uma infeliz criança desprotegida, abandonada. Tão pouco se trata de uma maioria de frágeis despossuídos de capacidade de defesa: crianças, mulheres, homens e velhos pertencentes às classes mais pobres e excluídas do controle sobre os bancos e as grandes empresas donas de capital de diferentes procedências. Trata-se de todo o conjunto das cidades grandes, médias e pequenas, cidades brasileiras; trata-se de todo mundo, toda a nação. Há um silêncio crescente invadido pelo barulho senil das falas dos âncoras das televisões. Um silêncio que sofre em silêncio e tenta sobreviver. E é exatamente esse silêncio que se esforça em sobreviver a caracterização do acontecimento que leva o nome de pedofilia. A diferença é que agora, no Brasil, todo mundo sabe e, no caso da criança atacada, não há testemunhas que a possam defender.
A nossa defesa, portanto, é esse entendimento: somos todos testemunhas, temos os olhos das testemunhas, temos consciências de testemunhas. Toda a nação brasileira tem. E essa é a nossa arma, a memória coletiva. E o exército brasileiro sabe disso, tanto os soldados, quanto os generais. Há um impasse, portanto. E a tensão desse impasse é inédita, na história do Brasil.

Querida Zeferina - carta 2.1. - juízes, obreiros e fascinações



Querida Zeferina,

Escrevo em um caderno sem pauta, desses que se tornaram moda para pessoas elegantes. Na mão esquerda, caneta de escrita fina, desenho em letra cursiva, as crianças diriam “letra emendada”. Inventaram essa forma de escrita pensando em rapidez, até que a velocidade dos computadores impregnou a escrita à mão de uma insensatez de tal monta que os traços se tornaram mais e mais ininteligíveis. Febris. Hoje todos escrevem em pequenos computadores de mão, dedilhando letras de forma, esta aqui do texto. Nós os chamamos ainda de “celulares”, palavra derivada de célula.  Tento escrever desenhando letras, forçar-me a uma desaceleração disciplinada, não natural dada a engrenagem insana das velocidades da vida atual, os motoqueiros gritando para velhas senhoras motoristas “a faixa do meio é nossa!”, como se houvesse uma faixa sobre a pintura separando as duas mãos. Todos temem atropelar motoqueiros, isso é um dos sentimentos mais normais desse mundo terminal. Tento escrever desenhando letras, para que uma neta (quem sabe uma tataraneta?) consiga ler este caderno, um dia.
As letras da mão falam o que o corpo não consegue dizer em palavras. As assinaturas nos processos judiciais onde eu trabalhava contavam mais histórias do que os conteúdos das petições e despachos. Antes das sentenças, eu ficava imaginando as possibilidades do julgamento, para um lado ou para o outro, tentando adivinhar a partir de milimétricos e psicanalíticos detalhes da assinatura do juiz, da juíza, dos procuradores, das partes. Um dia pensei em organizar uma exposição de fotografias só das assinaturas de todos os envolvidos em um processo judicial, mas separar as assinaturas por grupos de semelhança, juntando material de mil processos. Seriam pequenos quadros de tamanho de uma folha de ofício, com a assinatura ocupando todo o espaço. E os quadros alinhados em uma parede enorme, geometricamente enfileirados. Vi uma obra de arte exposta no museu de arte da cidade de São Paulo, em uma bienal, na década de 1980. Eu viajava para lá, com uma mochila nas costas e dentro de um ônibus, para ficar na casa de quem se dispusesse a me dar abrigo. Meio nômade, antes de meu filho nascer, depois sedentária e agoniada, antes de virar ermitã resolvida, caminhando no mar azul. Fases. Desisti de viajar para sempre. O pensador Paul Virilio fala, em um dos seus livros, sobre a velocidade e o poder. Ele diz que os deslocamentos de avião, ou de trem ou carro, são mais poderosos do que os que podemos fazer caminhando. Eu, da praia do Ouvidor subindo o morro para a praia Vermelha. Mas esse poder maior era na modernidade, quando todo mundo queria ir a São Paulo ver exposições, shows e teatros. Agora, nesse “fim de um mundo” no qual vivemos, morar em um lugar calmo e cheio de passarinhos e cheiros de mato, andar de uma praia a outra, ouvir barulhos diferentes de um mar cada dia outro mar, tudo isso parece ser poderoso agora. Então, lá nos anos oitenta, vi essa obra que era nada mais nada menos do que uma enorme parede de quadros de 30 centímetros por vinte, mais ou menos, todos com desenhos perfeitos de fotos três por quatro de chineses. De longe, pareciam todos iguais, como se pareceriam, talvez, se fossem todos africanos, ou todos dinamarqueses. Não sei, talvez não, talvez a impressão que temos dos chineses seja a que mais se impõe como uma ideia de uniformidade. Nós, brasileiros. Mas olhando de perto, cada retrato, eles eram muito diferentes um do outro e, no entanto, havia uma ideia de nação ali, não apenas na ideia de “raça”, ou em outra ideia mais complexa, a de etnia, mas sim, também, em uma sutil presença de um específico sofrimento em todos os semblantes. Depois me ocorreu que uma exposição de assinaturas em processos judiciais iria deixar muito clara a relação de oposição polarizada entre juízes, procuradores e partes mais pobres, menos escolarizadas. A maioria dos reclamantes em processos judiciais trabalhistas, penso eu, entre os anos de 1980 e 2015, foi composta por pessoas de baixa escolarização. Então, Zeferina, você consegue imaginar exposições espalhadas pelo Brasil afora, com enormes painéis com dois grandes blocos de fotografias de assinaturas de reclamantes, de um lado, e de juízes e juízas de outro?
As assinaturas das mulheres de pouca escolaridade, reclamantes ou testemunhas, nestes processos, são mais bem desenhadas, com mais firmeza e clareza de intenções, mais calmas e inteligíveis. Simples e discretas, apenas seus nomes desenhados letra após letra, como aprendido nas escolas fundamentais. As assinaturas dos homens – pedreiros, pescadores, operários de indústrias de cerâmicas ou carboníferas, estivadores, caminhoneiros – nos processos de uma região portuária brasileira, a julgar pela coleção que eu examinei em Imbituba, na sua maioria, são imagens dramáticas falando muitas coisas ao mesmo tempo. Feitas por mãos calejadas, endurecidas pelo esforço contínuo, são letras que mais parecem um carro batido e todo amassado. Letras tentando ser fortes e claras, ou tentando ser recheadas de parca alquimia igual à de homens com curso superior, com volteios e pontinhos e riscadelas ao modo de rubricas, mas tudo feito com dor, imprecisão, fragilidade, faltando letras nos nomes, emendas tortas, uma melancólica virilidade em aceitar o fracasso e mesmo assim assinar, ter um marca, orgulhar-se em tê-la, restar-se dentro da humildade rabiscada e - no entanto - com identidade, sempre a mesma, uma imagem da qual se deva orgulhar, mesmo parecendo um carro velho todo amassado.
O mais importante, na verdade, é entender que não se trata de julgar apressadamente as letras dos juízes e juízas, tomando a referência preconceituosa – e tão na moda no Brasil – de que seriam assinaturas pomposas, muitas enormes, ocupando quase um terço da página (enquanto as assinaturas dos homens pobres são feitas nos cantos, inclinadas, não respeitando uma linha reta, tímidas e assustadas), nomes cheios de primeiros, segundos nomes, vários sobrenomes, assinaturas de “gente rica”. Num primeiro olhar isso aparece: as assinaturas dos juízes e das juízas são grandes, cheias de círculos, lanças direcionadas aos céus, tangentes, bolinhas e ondas, narrativas orgulhosas de “si mesmos” que se pretendem sofisticados e únicos, especiais.  As assinaturas dos juízes e juízas parecendo um pouco àqueles hieróglifos das letras das pichações tribais nas paredes dos edifícios, nas ruas, nos muros. Mas, claro, com enormes diferenças, as dos juízes parecendo carros alegóricos das escolas de samba vencedoras do primeiro grupo do carnaval do Rio de Janeiro, seguras de si, desfilando. Muito mais importante do que esse jargão do maniqueísmo tradicional, protagonista no Brasil de 2016, os ricos e os pobres, os bons e os maus (variações, para pobres maus e bons, ricos bons e maus, conforme o partido político e a tribo virtual revoltada) seria perceber, nas assinaturas dos juízes e das juízas essas diferenças mais sutis: as que se parecem com meninas obedientes e produtivas, com calcinhas sempre limpas, meias brancas impecáveis, que obedecem sempre as mães; as que parecem com propagandas de windsurfe em um dia bom de vento; as que parecem com o modo de imprimir daquelas velhas e absurdamente barulhentas impressoras matriciais, como eletrocardiogramas de alguém à beira de um ataque de nervos; as que parecem assinaturas de reis shakespearianos, as assinaturas de generais, as muito frequentes assinaturas com três pontinhos em posição triangular; as tristes assinaturas alongadas como flechas, as bizarras assinaturas de um Nosferatus solitário.

Se organizássemos uma exposição de um enorme painel de dois blocos de assinaturas, as dos mais pobres de um lado e as dos juízes, juízas e procuradores de outro, a partir de uma seleção de processos judiciais brasileiros, da justiça do trabalho, entre 1980 e 2015, e ficássemos observando tentando evitar o olhar de quem vê “chineses todos iguais” separados em dois blocos óbvios; se olhássemos com o rigor e a intensidade exigida por esse “fim de um mundo” no qual estamos mergulhados, chegaríamos até a sensações estranhas, tais como não saber dizer qual dos dois grupos seria o mais amortecido por uma devastadora e solitária melancolia. Fico em dúvida, Zeferina, se não é o caso de pensarmos estarem esses juízes, juízas e procuradores vivendo um tempo também para eles terminal. Um final triste, como as meninas do grupo feminista estudantil Liberta escreveram, em 1982, por ocasião da morte da cantora Elis Regina, quando elas publicaram mais um número do que chamavam de “jornal”, onde haviam desenhado uma enorme lágrima na contracapa, toda ela desenhada com letras escritas à mão, com as músicas cantadas pela Elis. Está em uma das fotos aqui publicadas, onde se pode ler o começo da música Fascinação: “Os sonhos mais lindos sonhei... De quimeras mil, um castelo ergui...”.


versão um fotos: contracapa do jornal estudantil Liberta, de 1982 e "La bodeguita del Médio", de Luiz Eduardo Robinson Achutti