É carnaval, Zeferina, e não estou
com vontade de me explicar direito para os que leem as cartas. Escrevo apontamentos acolherados, aqui, sobre a necessidade que os seres humanos humilhados têm de alguém
que queira erguer um estado forte, um estado nacional, uma cidade forte, governos
fortes e voltados para a proteção pública dos mais frágeis. Estou lendo o Yuval Noah Harari, fazendo
anotações indignadas nas beiradas das páginas dele. O guri é um mágico do tarô,
um maravilhoso ilusionista. Ela fala de toda a história da humanidade, nos
últimos vinte mil anos, e chama de “cooperação” aquilo que o revolucionário
russo Vladimir Ilyich Ulyanov, o tal Lenin iria chamar de “centralismo democrático”, no início do século
vinte. Não lembro de nada que eu tenha lido diretamente em Lenin, mas devo ter
lido pilhas de textos de revistinhas, polígrafos e jornais pequenos da esquerda
brasileira sobre esse assunto. Pois é, uma meleca mesmo, o pessoal da nova tecnologia
descobriu que pode usar a fórmula que bem quiser, combinada com outras tantas
inventadas em acontecimentos históricos muito distintos, que se isso puder depois
ser reproduzido em ratos de laboratórios e, mais tarde, em humanos é ciência e admite qualquer engendramento de
linguagem. E a filosofia e os demais ramos das ciências sociais que vão plantar
batatas, mesmo, porque já temos uma moda muito recente e forte de que não se
precise ensinar essas coisas abstratas e transcendentes nas escolas dos adolescentes, essas coisas que não
podem ser reproduzidas e testadas em laboratório, esses assuntos de Sócrates,
Platão, Kant, Schopenhauer, Foucault e Deleuze. Bobagens não científicas já que
não cabem em ratos brancos dentro de jaulas de tortura ou tubos de ensaio.
Pois o guri, o Harari, diz o seguinte: “Quase invariavelmente
a vitória vai para aqueles que cooperam melhor – não só nas lutas entre Homo Sapiens e outros animais, como
também em conflitos entre diferentes grupos humanos (óbvio que o guri jamais
vai usar a expressão “luta de classes”, ele já a desmereceu no início do
livro). Assim, Roma conquistou a Grécia não porque os romanos tivessem cérebros
maiores ou técnicas mais efetivas na fabricação de ferramentas, e sim porque
eram capazes de cooperar (grifo meu) mais eficazmente. Em meio à
história, exércitos disciplinados derrotaram com facilidade hordas
desorganizadas, e elites unificadas dominaram massas desordenadas (grifo meu)”. Isso o guri botou na página 139.
Essas hordas desorganizadas, aqui no meio do meu carnaval, parecem ser o pessoal do PT e dos outros partidos de esquerda, aqui pra nós. E ele
segue falando que as revoluções “comumente são feitas por pequenas redes de
agitadores, e não pelas massas”. E ele segue dizendo que os comunistas
assumiram o controle do “vasto Império Russo porque se organizaram bem”. Fica subentendido que os comunistas perderam
a vez porque são menos eficazes do que o capital cognitivo, o exército
disciplinado do nosso momento, tão bonitinho e emocionante em sua feição Obama
e família, tão revoltado agora com sua incontinência Trump.
Foi aí que eu fui ver uma parte
do meu escrito chamado Tempos e Tutelas –
contribuição à História do Direito e da Justiça do Trabalho no Brasil, apresentado
em 1997, na universidade PUCRS. Aí, bom, Táta, é carnaval e eu só estou fazendo
apontamentos antes de uma cerveja bem gelada.
Sim, estou super cuidando da bebida. Beber bem pouco, só hoje um pouco mais,
aquela cerveja que nunca mais tomei. Para comemorar a grande festa das ruas e
seus alegres gritos de foratemer. Então, escrevi sobre a lei do ventre livre,
veja só, você, Zeferina, não é nascida ingênua? Fantástica essa palavrinha: não somos os mestiços todos nascidos ingênuos? Escrevi:
“A
historiografia mais recente tem revalorizado a Lei do ventre-livre, a partir da
apreciação das ações de liberdade que ela regula. Antigamente esta lei era
considerada, pela historiografia, como ineficaz e até mesmo sem validade. Em
nossa dissertação descobrimos um novo aspecto desta lei. Este aspecto está no
seu próprio nome: o ventre-livre. A conquista da liberdade, por meio da
alforria, vinha sendo obtida desde remotos tempos do Brasil colônia. Entre 1850
e 1871, esse fluxo das alforrias vai se somar a outros dois fluxos: as
políticas derivadas do abolicionismo e a política da substituição dos negros
escravos pelos imigrantes brancos europeus. O abolicionismo tem sua origem
difusa, mas poderíamos fixar o final do século XVIII e início do XIX, como um
tempo no qual o liberalismo se propaga, no Brasil. Entre 1850 e 1871, o
abolicionismo vive um momento complexo. A partir de 1871 ele vai encontrar uma
certa simplicidade, diante da solução econômica oriunda da imigração (italiana
e alemã). A Abolição, neste enquadramento, passa a ser uma lei perversa imposta
principalmente para desorganizar as possibilidades de ação dos negros e para
joga-los para fora do mercado de trabalho. Além disso, a Abolição permite que
os imigrantes iniciem sua vida de contratos a partir da ausência das conquistas
dos negros, a partir dali apagadas nos cenários das linguagens jurídicas e políticas.
Os negros adquirem apenas o direito de ir embora, enquanto os brancos pobres são
tratados quase como escravos, em certa medida de suas vidas, embora possuidores
da proteção da condição de trabalhador livre e, portanto, da vantagem imensa de
se manterem agregados em famílias e clãs de suas origens europeias, com manutenção
de linguagem e identidade étnica. Até 1871, ainda se discutia como incorporar
os negros, no mercado de trabalho, como homens livres. [Era um enorme problema,
pensa bem, como tu chega para um sujeito e diz: “tá, agora tu não é mais meu”;
e isso para milhões de homens e mulheres negros.] A lei do ventre livre fez uma
significativa diferença entre alforriados e ingênuos. A ideia era de que os ingênuos deveriam nascer
livres e como tal serem tratados desde o nascimento. [Bom, mas como é que uma
barriga pode ser livre em um corpo escravo?] Os deputados daquele tempo
pensavam que os libertos não poderiam jamais apagar as marcas de terem sido
escravos um dia. [A vida toda, para muitos] A ideia era construir a cidadania
integral dos negros, a partir de uma geração, a que nasce de ventre livre. A
lei do ventre livre não teve eficácia porque se confundiu com o abolicionismo e
as tratativas para a aplicação da fórmula da Lei da Abolição. Nessa fórmula
estava inscrita a imigração de trabalhadores livres europeus”.
Daí vem a frase que eu queria trazer
aqui, Zeferina, nesta carta: “Ela não
poderia ser aplicada [lei do ventre livre] se não houvesse um Estado forte, que obrigasse as relações
individuais e privadas a seguirem a lei. Um Estado que atuasse no sentido da
proteção do menor, descendente de ventre livre”.
Não encontrei fonte alguma que pudesse
me informar se você era ingênua, alforriada, ou se sua condição jurídica nem
era levada em conta em seu ambiente familiar, quando você era uma menina
pequena, Táta querida. Porque, afinal de
contas, boa parte desse enredo não chegava a muita gente pobre e plantada em
lugares distantes da Corte e depois da nascida república velha. Penso que te
pergunto se você era ingênua e você ri, às gaitadas, e pensa: “ingênuos são
vocês aí, guria”! Depois volto neste maravilhoso assunto das ingenuidades de
múltiplos tipos dos brasileiros, mas agora eu falava sobre o Estado forte,
sobre os exércitos disciplinados das “elites
unificadas” de quem o Harari fala tão bem. Estes sabedores da tal cooperação em
larga escala. Estou pensando na tal globalização.
Então, em outro ponto do meu texto de 1997
estava escrito que a capacidade de contrato livre dos trabalhadores brasileiros
começa a ser ampliada a partir da lei nº62 de 1935, no processo de erguimento
da ideia da “Justiça do Trabalho”, durante – justamente – a ditadura do Getúlio
Vargas chamada de “Estado Novo”. Essa lei chamava-se “lei da despedida injusta”,
e foi ela, e sua experimentação nos formatos embrionários de juntas de
conciliação e julgamento e no formato experimental do Conselho Nacional do Trabalho,
ainda vinculado ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, essa lei que
fez deslanchar uma profusão de jurisprudências garantindo diversas
interpretações à estabilidade no emprego. Analisando decisões dos conselhos
regionais do trabalho da época e decisões do CNT acabei afirmando que o pico da capacidade de contrato dos
trabalhadores livres foi em 1941, depois disso as negociações em prol da
democracia e de pactos para viabiliza-la produziram o que seria a futura
Consolidação das Leis do Trabalho, a primeira versão em 1943, quando a
estabilidade já aparece contida pela hipótese de uma indenização em valores
monetários. Antes disso havia até interpretações sobre o lugar do trabalho,
individualmente considerado, tornar-se posse vitalícia do trabalhador após dez
anos ininterruptos trabalhados no mesmo local. É preciso entender que quando
surgir a lei nº62 de 1935 um número significativo de trabalhadores tinham dez
anos de trabalho na mesma empresa, esse grupo adquiriu essa estabilidade em
debate durante o período autoritário de Vargas.
Vamos dar uma olhada na Wikipédia, sobre
o Getúlio Vargas: “Foi presidente do
Brasil em dois períodos. O primeiro período foi de 15 anos ininterruptos, de
1930 até 1945, e dividiu-se em 3 fases: de 1930 a 1934, como chefe do
"Governo Provisório"; de 1934 até 1937 como presidente da república
do Governo Constitucional, tendo sido eleito presidente da república pela
Assembleia Nacional Constituinte de 1934; e, de 1937 a 1945, como
presidente-ditador, durante o Estado Novo implantado após um golpe de estado. No
segundo período, em que foi eleito por voto direto, Getúlio governou o Brasil
como presidente da república, por 3 anos e meio: de 31 de janeiro de 1951 até
24 de agosto de 1954, quando se suicidou”.
Então, foi no tal “governo provisório”
que produziram a invenção da lei 62 de 35, depois foi no período autoritário do
tal “presidente-ditador” que começaram as experiências com essa lei nos
conselhos estaduais e nacional da justiça do trabalho em formação, e foi quando
essa ditadura é enfrentada para ser transformada em um pacto democrático que
essa lei começa a sofrer restrições, em sua interpretação jurisprudencial
(ainda que fosse em caráter experimental, já que a tal justiça do trabalho era
uma elaboração embrionária e dentro do executivo, mas reunindo em seu formato
juristas de notório saber, que viriam
a organizar a primeira CLT de 1943). Entendeu, Zeferina? Os autoritários do
período da ditadura do Estado Novo queriam defender a estabilidade no emprego
para os trabalhadores brasileiros. Eles sonhavam em construir, por meio de um “exército
disciplinado de uma elite unificada” uma nova dignidade para o povo brasileiro,
para retira-lo tanto da condição de alforriados,
quanto da condição de ingênuos e
abandonar, com essa cooperação nacional organizada, os registros oriundos da
escravidão negra.
Hoje o Yuval Noah Harari pode defender
calmamente essa ideia, da gerência centralizada de um modo disciplinador em
larga escala, mas agora referindo-se aos grandes gerentes do grande capital
mundial. Eles podem, Hollywood deixa, respeita e representa, como elite
unificada que é. Nós temos que ficar
aqui, atordoados, hordas desorganizadas esperando uma democracia qualquer,
imprecisa, indefinida. Nós, ingênuos.
Mas é carnaval, Táta, e eu vou cair na
cerveja artesanal: pouca, cara e boa.