Querida Zeferina - carta 2.1. - juízes, obreiros e fascinações



Querida Zeferina,

Escrevo em um caderno sem pauta, desses que se tornaram moda para pessoas elegantes. Na mão esquerda, caneta de escrita fina, desenho em letra cursiva, as crianças diriam “letra emendada”. Inventaram essa forma de escrita pensando em rapidez, até que a velocidade dos computadores impregnou a escrita à mão de uma insensatez de tal monta que os traços se tornaram mais e mais ininteligíveis. Febris. Hoje todos escrevem em pequenos computadores de mão, dedilhando letras de forma, esta aqui do texto. Nós os chamamos ainda de “celulares”, palavra derivada de célula.  Tento escrever desenhando letras, forçar-me a uma desaceleração disciplinada, não natural dada a engrenagem insana das velocidades da vida atual, os motoqueiros gritando para velhas senhoras motoristas “a faixa do meio é nossa!”, como se houvesse uma faixa sobre a pintura separando as duas mãos. Todos temem atropelar motoqueiros, isso é um dos sentimentos mais normais desse mundo terminal. Tento escrever desenhando letras, para que uma neta (quem sabe uma tataraneta?) consiga ler este caderno, um dia.
As letras da mão falam o que o corpo não consegue dizer em palavras. As assinaturas nos processos judiciais onde eu trabalhava contavam mais histórias do que os conteúdos das petições e despachos. Antes das sentenças, eu ficava imaginando as possibilidades do julgamento, para um lado ou para o outro, tentando adivinhar a partir de milimétricos e psicanalíticos detalhes da assinatura do juiz, da juíza, dos procuradores, das partes. Um dia pensei em organizar uma exposição de fotografias só das assinaturas de todos os envolvidos em um processo judicial, mas separar as assinaturas por grupos de semelhança, juntando material de mil processos. Seriam pequenos quadros de tamanho de uma folha de ofício, com a assinatura ocupando todo o espaço. E os quadros alinhados em uma parede enorme, geometricamente enfileirados. Vi uma obra de arte exposta no museu de arte da cidade de São Paulo, em uma bienal, na década de 1980. Eu viajava para lá, com uma mochila nas costas e dentro de um ônibus, para ficar na casa de quem se dispusesse a me dar abrigo. Meio nômade, antes de meu filho nascer, depois sedentária e agoniada, antes de virar ermitã resolvida, caminhando no mar azul. Fases. Desisti de viajar para sempre. O pensador Paul Virilio fala, em um dos seus livros, sobre a velocidade e o poder. Ele diz que os deslocamentos de avião, ou de trem ou carro, são mais poderosos do que os que podemos fazer caminhando. Eu, da praia do Ouvidor subindo o morro para a praia Vermelha. Mas esse poder maior era na modernidade, quando todo mundo queria ir a São Paulo ver exposições, shows e teatros. Agora, nesse “fim de um mundo” no qual vivemos, morar em um lugar calmo e cheio de passarinhos e cheiros de mato, andar de uma praia a outra, ouvir barulhos diferentes de um mar cada dia outro mar, tudo isso parece ser poderoso agora. Então, lá nos anos oitenta, vi essa obra que era nada mais nada menos do que uma enorme parede de quadros de 30 centímetros por vinte, mais ou menos, todos com desenhos perfeitos de fotos três por quatro de chineses. De longe, pareciam todos iguais, como se pareceriam, talvez, se fossem todos africanos, ou todos dinamarqueses. Não sei, talvez não, talvez a impressão que temos dos chineses seja a que mais se impõe como uma ideia de uniformidade. Nós, brasileiros. Mas olhando de perto, cada retrato, eles eram muito diferentes um do outro e, no entanto, havia uma ideia de nação ali, não apenas na ideia de “raça”, ou em outra ideia mais complexa, a de etnia, mas sim, também, em uma sutil presença de um específico sofrimento em todos os semblantes. Depois me ocorreu que uma exposição de assinaturas em processos judiciais iria deixar muito clara a relação de oposição polarizada entre juízes, procuradores e partes mais pobres, menos escolarizadas. A maioria dos reclamantes em processos judiciais trabalhistas, penso eu, entre os anos de 1980 e 2015, foi composta por pessoas de baixa escolarização. Então, Zeferina, você consegue imaginar exposições espalhadas pelo Brasil afora, com enormes painéis com dois grandes blocos de fotografias de assinaturas de reclamantes, de um lado, e de juízes e juízas de outro?
As assinaturas das mulheres de pouca escolaridade, reclamantes ou testemunhas, nestes processos, são mais bem desenhadas, com mais firmeza e clareza de intenções, mais calmas e inteligíveis. Simples e discretas, apenas seus nomes desenhados letra após letra, como aprendido nas escolas fundamentais. As assinaturas dos homens – pedreiros, pescadores, operários de indústrias de cerâmicas ou carboníferas, estivadores, caminhoneiros – nos processos de uma região portuária brasileira, a julgar pela coleção que eu examinei em Imbituba, na sua maioria, são imagens dramáticas falando muitas coisas ao mesmo tempo. Feitas por mãos calejadas, endurecidas pelo esforço contínuo, são letras que mais parecem um carro batido e todo amassado. Letras tentando ser fortes e claras, ou tentando ser recheadas de parca alquimia igual à de homens com curso superior, com volteios e pontinhos e riscadelas ao modo de rubricas, mas tudo feito com dor, imprecisão, fragilidade, faltando letras nos nomes, emendas tortas, uma melancólica virilidade em aceitar o fracasso e mesmo assim assinar, ter um marca, orgulhar-se em tê-la, restar-se dentro da humildade rabiscada e - no entanto - com identidade, sempre a mesma, uma imagem da qual se deva orgulhar, mesmo parecendo um carro velho todo amassado.
O mais importante, na verdade, é entender que não se trata de julgar apressadamente as letras dos juízes e juízas, tomando a referência preconceituosa – e tão na moda no Brasil – de que seriam assinaturas pomposas, muitas enormes, ocupando quase um terço da página (enquanto as assinaturas dos homens pobres são feitas nos cantos, inclinadas, não respeitando uma linha reta, tímidas e assustadas), nomes cheios de primeiros, segundos nomes, vários sobrenomes, assinaturas de “gente rica”. Num primeiro olhar isso aparece: as assinaturas dos juízes e das juízas são grandes, cheias de círculos, lanças direcionadas aos céus, tangentes, bolinhas e ondas, narrativas orgulhosas de “si mesmos” que se pretendem sofisticados e únicos, especiais.  As assinaturas dos juízes e juízas parecendo um pouco àqueles hieróglifos das letras das pichações tribais nas paredes dos edifícios, nas ruas, nos muros. Mas, claro, com enormes diferenças, as dos juízes parecendo carros alegóricos das escolas de samba vencedoras do primeiro grupo do carnaval do Rio de Janeiro, seguras de si, desfilando. Muito mais importante do que esse jargão do maniqueísmo tradicional, protagonista no Brasil de 2016, os ricos e os pobres, os bons e os maus (variações, para pobres maus e bons, ricos bons e maus, conforme o partido político e a tribo virtual revoltada) seria perceber, nas assinaturas dos juízes e das juízas essas diferenças mais sutis: as que se parecem com meninas obedientes e produtivas, com calcinhas sempre limpas, meias brancas impecáveis, que obedecem sempre as mães; as que parecem com propagandas de windsurfe em um dia bom de vento; as que parecem com o modo de imprimir daquelas velhas e absurdamente barulhentas impressoras matriciais, como eletrocardiogramas de alguém à beira de um ataque de nervos; as que parecem assinaturas de reis shakespearianos, as assinaturas de generais, as muito frequentes assinaturas com três pontinhos em posição triangular; as tristes assinaturas alongadas como flechas, as bizarras assinaturas de um Nosferatus solitário.

Se organizássemos uma exposição de um enorme painel de dois blocos de assinaturas, as dos mais pobres de um lado e as dos juízes, juízas e procuradores de outro, a partir de uma seleção de processos judiciais brasileiros, da justiça do trabalho, entre 1980 e 2015, e ficássemos observando tentando evitar o olhar de quem vê “chineses todos iguais” separados em dois blocos óbvios; se olhássemos com o rigor e a intensidade exigida por esse “fim de um mundo” no qual estamos mergulhados, chegaríamos até a sensações estranhas, tais como não saber dizer qual dos dois grupos seria o mais amortecido por uma devastadora e solitária melancolia. Fico em dúvida, Zeferina, se não é o caso de pensarmos estarem esses juízes, juízas e procuradores vivendo um tempo também para eles terminal. Um final triste, como as meninas do grupo feminista estudantil Liberta escreveram, em 1982, por ocasião da morte da cantora Elis Regina, quando elas publicaram mais um número do que chamavam de “jornal”, onde haviam desenhado uma enorme lágrima na contracapa, toda ela desenhada com letras escritas à mão, com as músicas cantadas pela Elis. Está em uma das fotos aqui publicadas, onde se pode ler o começo da música Fascinação: “Os sonhos mais lindos sonhei... De quimeras mil, um castelo ergui...”.


versão um fotos: contracapa do jornal estudantil Liberta, de 1982 e "La bodeguita del Médio", de Luiz Eduardo Robinson Achutti

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