Deus é mãe

                                   


                                Há uma fala hegemônica entre os "pobres" que é definida no ditado popular "manda quem pode e obedece quem precisa". Bom, aqueles caras, Lenin e sua turma, costumavam dizer que não há como fazer uma revolução sem partido. O sujeito e a sujeita comuns sabem disso, como o ditado demonstra: é preciso aparecer alguém 'outro' que 'mande' outra coisa, para que se possa escolher a quem se deve obediência. 

                                     Olha, eu também preferiria que ninguém obedecesse ninguém e que as escolhas humanas fossem magicamente regidas por um somatório encantado de autonomias, essa é a minha mais arraigada crença, religião, da qual eu precisei para sobreviver do nascimento até os 19 anos e, depois que me perdi do Partido dos Trabalhadores, dos 32 anos até hoje. Mas acho que a minha religião é a mais improvável na história da humanidade. Ao menos até o século XXI, em seus primeiros 20 anos, a autonomia dos indivíduos humanos só cabe aos artistas, e mesmo entre esses, só aos mais audaciosos e inauguradores. 

                                    Sendo assim, eu diria que a sujeita e o sujeito comuns tentam nem se lembrar que os malvados comandam as sociedades, pois temem afundar na depressão, no "banzo" do negro africano recém-chegado ao Brasil, o 'boçal' do Império brasileiro antes da proibição do tráfico negreiro, antes da República Velha. Agora o banzo se chama depressão e é uma melancolia mortal de saudades de um lugar inexistente no mundo; e os deprimidos ou tomam drogas permitidas, ou proibidas ou entram em uma religião de gritos, ou outra de silêncios e não são mais só os negros, já é um quase todo mundo. 

                                      Assim, os comuns colocam sua descrença no sistema em um canto da consciência e se entregam a um cotidiano no qual a fé em alguma crença projeta a vida em dois sentidos: conformar-se com o mal do ambiente, acreditar em uma bondade interior ao si mesmo do sujeito e da sujeita que crê e desejar que o exterior produza um poder alternativo que modifique a impossibilidade de seguir alguém justo, bom. Esse é o desejo do 'salvador', do 'herói', do 'deus' ou de uma representação do 'deus'. Poderia ser um partido, mas infelizmente não tivemos essa chance até hoje, apenas ensaios muito tímidos e de fácil desmonte. 

                          O Papa Francisco já sabe disso, alguns pouquíssimos teóricos e pensadores acadêmicos e orgânicos (a um sonho e não a uma organização real) também já entendem o drama da ausência de 'religião', algo a respeitar no mundo, na sociedade. Alguns outros religiosos também meditam sobre isso. Então, o sujeito e a sujeita comuns se esforçam por esquecer a Samarco e o desastre da inundação da cidade de Mariana pela lama tóxica da barragem da mineradora de Minas Gerais, Brasil. E se esforçam para não dar atenção aos náufragos da Síria; e se esforçam para nem pensar nos desgovernos no Brasil. Não querem saber de um exterior que, convulsionado, comprime a suas vidas a um "temor do tirano" cotidiano. Rezam para que o que vier a acontecer não seja perto de onde ele vive. 

                                  Para Giorgio Agamben, essa é a impotência do homo sacer, o matável, o sujeito e a sujeita comuns que vivem uma vida nua, desprotegida de um estatuto normativo respeitável, 'religere'. O indivíduo dentro do Campo de Concentração só poderá ser libertado por algo exterior, de fora, um agente salvador. Para Lenin e Trotsky, um partido. Para algumas feministas, uma PartidA. Está mesmo quase impossível, mas a água atravessará a muralha, deus é mãe.