Fazendo feijão

Virgínia Woolf  entrou na minha casa na forma de um livro parado na estante e assustador. Deram-me um livro chamado "Os diários de ...", justo no momento mais devastado da minha vida, quando eu havia perdido quase todas as relações afetivas até então construídas; e veio o livro parar na prateleira como se ficasse lá, me olhando, com uma intenção de denúncia.  Eu tinha um medo horrível de ser como ela, de ficar esperando a morte todos os dias, nada mais importando. Na mesma época, alguém me segredou: há quem acredite que você será a próxima; diziam isso sobre Dóris, uma feminista inteligente e intelectual, exitosa em seu suicídio, nos idos de final dos anos 80, início dos 90. Aquilo tudo teve a força do afeto, por mais incrível que pareça, ligando meu famoso botão da rebeldia; não vou me matar, não serei nunca o que querem que eu seja, não honrarei expectativas banais. Como é lindo o movimento feminista, doce e lento, corpo-a-corpo, tão lento como uma tartaruga de duzentos anos.

O Zézinho falara, lembro-me perfeitamente do sorriso irônico e impaciente dele naquela hora, olhando pra mim como se eu fosse exageradamente ingênua: -"o feminismo é obra da burguesia!", referindo-se à luta pelo direito ao voto feminino, à invenção da pílula anticoncepcional e à bandeira da igualdade de direitos entre gêneros; dizia ele que a guerra levara o Capitalismo a necessitar das mulheres no trabalho assalariado e em atividades públicas, externas ao mundo doméstico. Lembro-me de tê-lo olhado com indignação, sentindo a opinião dele como má fé própria dos homens que fazem política, eu não suportando a pressão dos homens de esquerda para consagrar uma interpretação do mundo na qual as mulheres adequadas e respeitáveis eram as que pronunciavam solenemente a desimportância, a secundariedade dos desejos femininos diante dos desejos operários revolucionários. E isso tudo foi antes daquela Virgínia Woolf invadir minha estante, denunciando-me em meu solitário fracasso.

Choro, soluçando, agora. Seco os olhos, as lágrimas caindo aos borbotões, com a manga da camiseta verde musgo. Choro de alívio por ter conseguido passar por todas as ameaças dos últimos 30 anos. O José Carlos  Oliveira (não lembro se é "de Oliveira"), o Zézinho, era chamado, de modo pejorativo, Zé-guerrilha, nem sei por quem, era uma fofoca, um comentário que eles faziam entre si, os meninos do Setor Jovem do MDB, lá por 1978, quando eu convivia com eles. Parece que "inimigos" o nomeavam dessa maneira, ao estilo que hoje chamam de buylling. O Zézinho provavelmente defendia Cuba e a Revolução Russa com unhas e dentes, daquele modo ansioso e agitado como ele era sempre, mas era, na verdade, um trotskysta, daqueles que apareciam na história da esquerda brasileira como não tendo nunca, jamais, pensado em guerrilha. Na solenidade de réquiem dedicada à ele, na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, Brasil, lembro-me do Adão Villa Verde e do Gerson Almeida falando, devastados por uma emoção grandiosa, repetirem as últimas palavras do Zé, pronunciadas no hospital onde morrera, antes da infecção pelo HIV se tornar uma enfermidade controlável: ele havia dito ser urgente e decisiva a imersão radical do conjunto dos militantes da esquerda no espaço institucional. O Zézinho queria uma ocupação pacífica e persistente das estruturas do Estado: era um democrata-socialista, defensor do que foi tentando e ainda é objetivo do Partido dos Trabalhadores: ganhar eleições e,digamos, virar o jogo por meio de uma conquista de espaços de hegemonia, ao estilo do que dizem que pensou Gramsci, que eu nunca li.

Ganhei o livro da Virgínia Woolf  na época em que senti, sem entender nada, que a esquerda gaúcha estava se deixando sensibilizar por ambições pessoais, pequenos desejos de notoriedade e sucesso profissional; eu querendo gritar essa denúncia, eu exageradamente lúcida, cazuziana, cassandramente "Amy Winehouse" do feminismo gaúcho da década de 1980. O livro dos diários de Virgínia como que me acusava, da prateleira: você é incompetente para o futuro que se anuncia, você será sempre descrita como megalomaníaca, desajustada e vaidosa. Mais tarde percebi ser o desespero destino de muitos daqueles jovens com vinte anos em 1977, principalmente os que teimavam em buscar um devir libertário em meio a discursos de tomada de poder.
Como aparecem os saqueadores em um momento de mudança civilizacional?  Como os bárbaros invadem?
Durante muitos anos acordei, invariavelmente, com um sentimento de medo, um incômodo grande, como se  não quisesse ter despertado. Acordei muitas manhãs com pena de ter acordado. Só voltei a gostar de acordar quando encontrei a solução do exílio, a ilha e a distância eficiente daqueles labirintos sem ética da cidade natal. Aqui, finalmente, li o livro da Virgínia Woolf e a achei uma mulher comportada, inteligente, criativa e vítima da depressão; se ela vivesse nos dias de hoje tomaria antidepressivos e faria análise. Prefiro Clarisse Lispector. A tradição de comprimir as mulheres em limites mórficos redutores é devastadora, compacta e só pode ser quebrada no exílio das bruxas.  Chega, por hoje, esses assuntos são muito complicados e preciso cortar o charque e a linguiça.  Estou fazendo feijão.

                                                                      versão três: meio desobediente e inconclusa



O novo ascetismo: anarco-eremitas



Antigamente as pessoas escreviam e-mails, agora só vemos a utilização de mensagens curtas em redes sociais e em celulares. Você percebe como a tecnologia evoluiu com uma velocidade a cada ano maior? Você entende que a transformação constante das formas de ver, ouvir, falar e sentir cria um sentimento latente, sub-reptício, de ausência de importância para os significados de todas as coisas que não são grandes, fundos e definitivos rastros? Os ídolos, os governantes, as celebridades, os grandes cientistas, empresários, inventores, modelos, atrizes, atletas, os grandes traficantes, os mais terríveis criminosos, as vítimas mais famosas. Ainda escrevemos e-mails, no trabalho, ou para comunicações mais formais; talvez alguém na contramão dedique-se a compor longas cartas em correspondência eletrônica. Você sabe, isso vai parar,  essa velocidade cada vez maior vai bater em um muro, esse limite é quase visível. Teremos de nos acalmar.

Adiantaria construir, com cuidado e retidão, uma teoria esclarecedora de que isso é um totalitarismo de proporções inéditas e, portanto, de desmanchamento inimaginável? O remédio poderia ser uma enorme, fantástica e rigorosa explicação? Um grande livro para ser distribuído ao mundo inteiro, explicando que não podemos continuar vivendo dessa maneira?  E se fosse possível encontrar um sujeito imune e munido de um discurso inaugurador, a quem ele remeteria sua linguagem? Pensar se o sujeito acontece, se ele brota de si, se ele nasce de intersecções coletivas e realiza uma nova sociabilidade confundindo-se com ela seria um caminho de entendimento? Por meio de que atitudes podemos ter esperança de mudar o desmanchamento cruel desse mundo no qual vivemos?

Parece haver o caminho da oração, do abandono do"ego" em osmoses de entrega absoluta a devires de quem quer que impulsione os acontecimentos, seja quem for e como se pareça. Mas não estamos  vendo os caminhos de oração interferirem na velocidade com a qual o mundo é desorganizado pela tecnologia sempre em mutação. Além das entregas a deuses nomeados há, sem dúvida, uma entrega generalizada à drogadição, cada vez em maiores proporções, isto é, aumentam os que rezam e aumentam os que se tornam dependentes da adição de algo, para fazerem as suas vidas valerem a presença no mundo, seja o uso de drogas ilegais, seja o uso de álcool, de tabaco, de açúcar, de gordura, de refrigerantes, de objetos comprados alucinadamente em castelos/igrejas do deus Consumo, chamados "shopping". 

Há alguém que saiba o que (ou quem) está resistindo a isso, a essa grande colisão? Defender tribos ou animais em extinção é resistir? Protestar em redes sociais é algo que bloqueia a profusão de inaugurações sem controle de quem quer que seja? Existe alguma possibilidade, diante da colossal violência praticada por um por cento sobre noventa e nove por cento da população humana, e, de resto, sobre os demais viventes no Planeta Terra, a mais ínfima possibilidade de que o espaço virtual amplie a liberdade de expressão dos indivíduos e aumente os entendimentos coletivos propiciando uma contenção do desmanchamento generalizado das memórias? O espaço virtual pode abrigar o dom de consolidar memórias e entendimentos?

E se isso for um único e devastador redemoinho? Um furacão só não desordena aquilo que não atinge.
Percebe? Quantas pessoas neste mundo se mantém descrentes de toda essa parafernália produzida pela maneira capitalista de organizar o Planeta e se sentem habitando um tempo que não é o seu? Os eremitas, as múltiplas formas do ascetismo hodierno onde estão?

Você deve estar pensando em monges passando fome no deserto.  Ascetismo: "Prática da abstenção de prazeres e até do conforto material, adotada com o fim de alcançar a perfeição moral e espiritual. O asceta submete-se a dieta rigorosa e a frequentes jejuns, sendo que os antigos cristãos se sujeitavam até a castigos físicos, como a flagelação". Do dicionário on-line. Não, não é isso. Todas as formas de sujeito e de coletividade conhecidas foram tragadas pela metamorfose compulsiva, isto é, os antigos eremitas estão por aí, pendurados em ausências enfeite, eles mesmos um prenúncio de um nada. Falo de uma nova espécie de ascetismo, não sei bem sobre o que falo, sinto, sinto ardentemente, convicta, apaixonada. Quero descobrir o que seria isso: uma subjetividade não egocêntrica surfando na inconstância dos acontecimentos, na perda de memória; abrigando entendimentos invioláveis, pétreos, inesquecíveis.


Vocês estão aí, eu sei. Não sou única. Não tenho tempo para estudar  a Bíblia e os outros livros sagrados; não me é permitido ter tempo para ler com calma os filósofos: Hegel, Marx, Nietzsche, Adorno, Lacan, Deleuze, Guattari, Safatle e tantos outros. Mal consigo estar atenta e forte. Não sei afirmar por onde anda o sujeito e no que ele configura coletividades ou é posto por elas. Sei que passa por mim uma recusa intensa do que é o mundo hoje, do que são as diversas ordens simbólicas da propriedade concentrada, da formação do Capital. Meu ascetismo não se manifesta na disciplina da abstenção dos prazeres materiais, ele é mais uma recusa constante de aceitar esse mundo do consumo e da velocidade, da guerra e do desperdício, da crueldade e da imposição; meu ascetismo é meio louco e passa, às vezes, pelo vinho, pelo cigarro, pela comida com carne e molho. E pelos remédios para suportar o medo e a tristeza de ser obrigada, todos os dias, a trabalhar de um modo insano, para sustentar uma cultura insana que nos subordina. A perfeição moral e espiritual, para mim (o meu "mim" se sente existindo, embora tenha quem diga que somos todos objetos afetados por um destino) é querer tudo e todos tranquilos, pacificados, criativos, fluentes, exatos e cheios de esperanças. 

Somos anarco-eremitas, todo mundo sabe que somos criadores de uma nova experiência de recusa do que nos é oferecido como "prazer mundano". E estamos por aí, sós. Significado de só: único. Sujeito? Será? Sim, acho que sim, o que está acontecendo vem de dentro de nós, novos ascetas, e é criação. 

                                                               versão 4 (escrita a versão 1 em 2009, melhorada, um pouquinho, em 19.01.2013)


As meninas e Nosferatus



Aquela mulher era uma escritora, sem dúvida, porque a única coisa que a deixava em paz era escrever. Escritores não são as pessoas aplaudidas em suas publicações, são todos os que têm necessidade de escrever para continuar vivendo, são escritores, são da casta dos escritores. Só isso. Não importa se escrevem mal ou bem, apenas precisam escrever para se sentirem tranquilos. Ela era uma escritora porque somente as palavras a tratavam com normalidade. Entenda-se: quando completou 20 anos, percebeu que o grupo ao qual tinha se vinculado rapidamente, com entusiasmo e lealdade, a achava estranha: foi um breve momento em que não a escolheram para participar da chapa do diretório acadêmico da faculdade. Ninguém disse o porquê e todos sabiam que ela desejava muito estar naquela diretoria. Porque ninguém disse o porquê ela entendeu que o motivo era ela mesma. Ela mesma era inadequada. Ponto. Foi por essa época o nascimento de seu vínculo com as palavras escritas. O renascimento, porque desde os dez anos de idade seu pai já a avisara: você escreve como gente grande. Foi a arma que seu pai lhe deu. Um pai não precisa dar mais nada a um filho, apenas uma única arma ele deve oferecer: o filho andará mundo a fora, para sempre, empunhando aquela ferramenta. E só isso importa. Os filhos desarmados perambulam sem sentidos, ao vento dos acontecimentos mais inconsistentes.
Depois daquele aviso, de que ela não era normal, de que não era percebida como normal sentiu, no meio de uma calçada, atravessando uma rua do centro da cidade natal, sentiu um instante de desaparecimento de sua condição de indivíduo. Sumiu, por um instante, de si mesma. Entendeu que era um horror e que deveria esquecer, com-ple-ta-men-te, no minuto seguinte, aquele instante de lucidez: não vou conseguir vencer, eu não sou capaz de conter o monstro que me habita. Esqueceu imediatamente.
Mais tarde, já vitoriosa em sua sobrevivência heróica, carregava o consolo de saber que os monstros de cada um acabavam por emergir, cedo ou tarde. Vingativa? Sim, era, mas isso era um direito seu. Aqueles monstros camuflados um dia iriam gostar de mim, ela pensava. Todos sempre foram intensamente solitários, era uma questão de tempos diferentes o aparecimento da solidão de cada um. Como aquele amigo dela, rejeitado toda a juventude por todos. Agora ele era um belo homem de quase cinquenta anos, acostumado a ser só, mantendo cotidianos cuidados intensos consigo mesmo, para conseguir ficar vivo e lúcido e vendo, agora, aquela gente viver decadências de diversos tipos. Quem sobrevive a uma juventude estigmatizada e se mantém lúcido e saudável vê os outros decaindo e não tem a menor piedade. É mesmo um luxo só o encontro entre duas pessoas humilhadas na infância e na juventude, quando elas se tornam adultos tranquilos e consistentes. Elas riem juntas do sofrimento dos seus algozes, sem pena. Penso que os jovens rebeldes foram usados para erguer os partidos de esquerda no Brasil da ditadura militar; penso que os adultos que os utilizaram não estavam preocupados com a segurança, o futuro e o bem estar daqueles jovens. Penso que alguns daqueles adultos fizeram sexo com meninas sabendo que não iriam se responsabilizar pela segurança emocional e física das garotas.
Pois bem, as garotas cresceram, entenderam, tiveram filhos, os educaram, limparam e alimentaram do modo como podiam, cheio de precariedades. Seus filhos casaram, as criticaram, herdaram algum instrumento de defesa e estão por aí, em alguma trincheira, quase todos desprezando os adultos que manipularam suas mães e pais.
Vou escrever um livro chamado “Nosferatus”: um cristal de reflexos de acontecimentos masculinos violentos e solitários; tenho de reler Bom dia para os defuntos de  Manuel Scorza, e O outono do patriarca, do Vargas Llosa.
Ah...tenho de rever o filme Tragam-me a cabeça de Alfredo Garcia.
Olho o meu reflexo no vidro da prateleira e vejo, feliz, realizada, que estou velha, estou velha.

                                                       versão dois: (ainda em elaboração, inconclusa, imprecisa, íntima, frágil)