Querida Zeferina - carta 7.1 - Rosa Luxemburgo, Hitchcock e a lavajato



                             Que lei é essa, pensei, Zeferina. Eu que desde a juventude me interesso tão pouco pelos detalhes cotidianos de acontecimentos mensais e anuais. Não sei, mas acho que as mulheres portadoras do que eu prefiro entender como um enigma, já os psicólogos junguianos chamando de “complexo” e o senso comum adotando antigos manuais psiquiátricos para falar em “bipolaridades”, as mulheres cassandras não se interessam pela imagem formiga da realidade que corre como um rio todos os dias. Nós estamos sempre ligadas em algo que algumas chamam de “sextos sentido”, algo que surge como uma contra-intuição, uma percepção sobre o real diferente da de “todo o mundo” e, assim, não ligamos para o que é anunciado nas tevês. Muito menos nos jornais em meio papel, que não lemos e quando líamos a Folha de São Paulo, quando ela era o máximo do cosmopolitismo inteligente brasileiro, pescávamos apenas os grandes artigos de debates filosóficos-políticos, os ensaios psicanalíticos, as críticas de cinema, livros e teatros. As cassandras são viajantes, de olhares no horizonte, perdidas em interioridades milenares, referenciadas em uma tradição de isolamento da bruxa, da herética que ninguém entende. Talvez por isso, Zê, fui discutir com aquele menino de trinta anos o problema dessa confusão das carnes brasileiras e a operação da polícia federal e ele me disse: “mas desde que saiu a lei da transparência, a polícia federal e o ministério público ganharam essa atribuição de poder divulgar as investigações e os segredos de justiça começaram a cair”. Desde quando a grande mídia protege a circulação livre de verdades em debate e em cena? Eu braba, indignada, fiz um discurso que não cabe aqui. O menino respondeu: “Bom, mas aí é o capitalismo. Nós vivemos no capitalismo”. Como que dizendo que ele, o capitalismo, não pode ser denunciado. Fui ver que lei era essa, afinal, e estava lá, assinada pela Dilma, a derrubada sob linchamento da grande mídia: “LEI Nº 12.527, DE 18 DE NOVEMBRO DE 2011. Regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5o, no inciso II do § 3o do art. 37 e no § 2o do art. 216 da Constituição Federal; altera a Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei no 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei no 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências”.
                                                 Então isso tudo vem sendo costurado no congresso nacional desde o início dos anos noventa e esse debate não foi levado pela esquerda brasileira com a importância devida, nas escolas, nos partidos, nos sindicatos e movimentos sociais. A tal esquerda ficou divulgando e tornando populares ideias sobre pobres, indígenas, negros, mulheres, gays, todos esses e seus direitos a moradia, identidade e liberdades individuais, ficou divulgando sobre feiuras de uma classe média que não sabe ler livros inteligentes e não falou com a população sobre quem e como são controladas as circulações de informação no Brasil. Eu nem sabia dessa lei, porque quando ouvi falar em lei que obrigava a divulgar salários de servidores públicos e prestações de conta de órgãos públicos já achava tudo uma palhaçada, porque o capitalismo organiza todo o ambiente social por meio, principalmente, do que circula de capital e riquezas em engendramentos de propriedades privadas. Fiquei pensando, então, quando foi que aquela esquerda perdeu a capacidade de criticar a apropriação privada dos mecanismos de produção e circulação de riquezas, entre elas, a informação como um valor oficial dentro de um estado nacional? Tá certo que de 1989 até 1991, quando caem o muro de Berlim e quando a União Soviética foi abduzida por uma inexistência legal e formal retroativa a 1917 como imaginário popular e mundial, o comunismo bom foi tornado clandestino no planeta inteiro. Ser comunista passou a ser uma espécie de registro de sobrenome de antepassados. O cara pertencia à linhagem dos “comunistas”, mas agora ele era um sujeito sensato e ficava discutindo banalidades da gestão do capitalismo como se este fosse a única coisa possível no mundo do ordenamento político, econômico e social dos humanos.
O Harari, do livro Homo Deus, um mágico do Tarô, faz brilhantes malabarismos para passar como verdade absoluta a ideia de que o capitalismo é a própria civilização humana, que ele é uma engrenagem saída das entranhas dos limites humanos de inteligência cognitiva, uma inteligência advinda de uma consciência produzida por, digamos, sentimentos burros. Deriva daí que possivelmente as máquinas pensantes, os computadores, poderiam produzir uma conexão de uma teia de pensamentos lógicos exteriores a qualquer consciência individual ou coletiva humana, teia essa – ou redes sociais virtuais mergulhadas em algoritmos autônomos - capaz de engendrar soluções talvez até de saída desse tal capitalismo humanamente meio burro e arriscado quanto a desequilíbrios ecológicos e demográficos perigosos. Então sairíamos do capitalismo não para um controle social dos modos de produção da vida, um controle social sobre a iniciativa privada que restringisse o privado livre aos direitos de cada um ser o que quiser. Ou seja, uma versão democrática radical da ideia comunista de verdade republicana. Não, segundo o Harari, uma boa parte dos que adoram computadores e algoritmos estaria pensando em sair do capitalismo em direção ao fim da humanidade sapiens, enquanto adentraríamos em um planeta hegemonizado pelo pensamento sem consciência individual. No meio do livro, o Harari passa pelo comunismo tratando-o como uma loucura idêntica ao nazismo. Isso em meia dúzia de linhas, sem grandes explicações.
                                               Ainda sem saber da tal lei da transparência da Dilma, e de que essa lei era tramada desde o fim da URSS e a proibição mundial de qualquer validade e verdade humana dentro da palavra “comunismo”, que havia sido transformada em um sobrenome senil, achei Rosa Luxemburgo na estante da casa da minha mãe, sua bisneta, Zeferina, a filha da Nair, minha vó. No livro, sobre o problema da reprodução (simples e ampliada) do capital, um capítulo com o título “A Reprodução do Capital e seu meio ambiente”. Eu, triste por causa do ataque da polícia federal aos milhares de frigoríficos brasileiros, ação política que, por óbvio, dava pra ver conduziria os menores e mais frágeis a medos e prováveis perdas econômicas, e que uns caras da tal esquerda diziam que iria falir a indústria de carnes processadas e conduzir o Brasil a exportador de carne “in natura”; eu desanimada com o poder dessa polícia federal de ser governo nacional a partir de uma operação sua, copiei trechos da Rosa, para me acalmar:  ela escreveu que “ não conseguiria expor com suficiente clareza o processo global da produção capitalista em seu aspecto concreto, nem seus limites históricos objetivos” e que ela estava a tentar “formular com toda a exatidão científica esse problema”, isso em dezembro de 1912, quando nem em sonho delirante se poderia imaginar um planeta inundado pelos computadores e redes sociais virtuais. A Rosa escreveu um bobagem, a meu ver contra-intuitivo e feminista, a ideia de que “numa tribo agrária comunista primitiva, a reprodução e todo o plano da vida econômica correrão a cargo do conjunto total dos que trabalham e de seus órgãos democráticos”. A palavra “democráticos” da Rosa entrando em contradição com o texto posterior da Simone de Beauvoir, a feminista falando na odiosa e escravizada condição de coisa da mulher desde essa sociedade tão elogiada pela Rosa. A esquerda da Simone rejeitando a validade do trabalho doméstico como um lugar político, uma esquerda já abduzida pela ideia de valor no campo da produção de riquezas postas em mercadorias com valores calculados com “exatidão científica”, substituindo uma esquerda tão ingênua, a da Rosa, crente na veracidade absoluta do cálculo matemático, esse dos algoritmos do Harari, cálculo aparentemente exterior à produção consciente – e humana – de verdades circulantes em múltiplos níveis e escalas do real.
Lembrei, então, do Paul Virilio, no livro A Máquina de Visão, onde ele diz que o real só acontece como devir apreensível pela consciência quando ele é visto pelo olho humano. Mesmo que esse devir do real, digo eu, não seja apreensível como uma totalidade, essa totalidade não sendo apreensível nem mesmo pelo somatório de todos os olhares humanos, porque os olhares se comunicam entre si por meio de subjetividades no entendimento. Então achei neste livro essa frase impressionante, dado o que os brasileiros estão passando com o furacão chamado de “lavajato”: “ ‘Ao contrário do cinema’, dizia Hitchcock, ‘na televisão não há tempo para o suspense, nela só pode existir a surpresa.’ Esta é a própria lógica paradoxal do videograma. Uma lógica que privilegia o acidental, a surpresa, em detrimento da substância durável da mensagem, como era o caso na era desta lógica dialética do fotograma, que valorizava de uma só vez a extensividade da duração e a ampliação da extensão das representações”. Página 94, para quem lê, Zeferina.
Fico pensando, Zeferina, como essa esquerda que se deixou humilhar a ponto de perder o direito a falar em comunismo como um sonho esperançoso, um comunismo desejável, amistoso e sinônimo da palavra utopia, conseguiu deixar passar no Brasil todo esse processo de legislação sobre o acesso a informações, desde 1991, sem questionar a tremenda inverdade e obscuridade no modo como os conteúdos televisivos poderiam ser acionados dentro desse gerenciamento aristocrático das mídias grandes. Mais que isso, eu fico pensando agora que a própria ideia de “transparência” é corrompida, mentirosa, pois transparente é o vidro, mas o vidro da janela deixa passar o real perante os olhos de quem vê e a tela da televisão nunca, jamais, em tempo algum, é um vidro transparente, ela é uma composição tecnológica, como diz o Hitchcock, capaz apenas de veicular surpresas, porque nem nas novelas o acontecimento deixa de ficar contido em impactos de cenas a cada dia, e cada uma dessas cenas surpresas são articuladas em torno de um conjunto de linguagens faladas e apresentadas por atores pensados dentro de fórmulas semióticas descritíveis, distantes da inapreensibilidade do real.

A Rosa queria ser científica, uma cientificidade a nos parecer tão ingênua para quem vê com os próprios olhos a imensidão desgovernada das tessituras dos algoritmos autônomos espalhados em redes virtuais. Mas ela era a Rosa Luxemburgo, amada pelos comunistas sobreviventes até hoje, esses neocomunistas que já entenderam ser necessário defender as memórias coletivas humanas, que essas memórias não são verdades absolutas e que dependem de conexões conscientes de muitos enredos de subjetividades conscientes e apaixonadas. E os nossos amores não são essas letras bobas de algumas músicas sem poesia que inundam as cenas comerciais das grandes mídias, o nosso amar apaixonado é real, sanguíneo, inusitado, pré-cognitivo ainda que consciente. O Harari diz que grande parte do capital cognitivo pensa ser o nosso amar mero acontecimento hormonal, químico, controlável pela indústria farmacêutica. Mas se assim fosse, como explicar o desejo apaixonado do velho sem hormônios? Pela memória, por óbvio, ele se lembra daquele sexo que ele fez na cachoeira, embaixo da água e em pé, segurando nos braços a amada. Bom, mais isso é consciência, certo? Isso é um acontecimento humano, certo? E não é transparente, é sensível e dele só se lembra quem viu e viveu com seu corpo imensamente humano.  Bom dia, Zeferina.

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