A violência da investigação sobre
dinheiros movimentados ilegalmente no Brasil atingiu uma intensidade
surpreendente, Zeferina, tornando o espaço dos acontecimentos políticos um
lugar em relação ao qual não se faz mais necessário ter pressa alguma. Nada pode
fazer uma pessoa comum – no sentido de indivíduo que consegue apenas o dinheiro
para o sustento e moradia – a não ser vincular-se como servo, escravo, assessor
ou soldado em um castelo feudal de algum tipo de reino. Tirando a palavra assessor, as outras eu uso livremente
para falar de empresas, partidos políticos, postos nos governos municipais,
estaduais ou nacional, todos vinculados a algum agrupamento de indivíduos
reunidos em torno de interesses de grupo, privados portanto. Fora isso, os
servos ou escravos podem fazer algum tipo de atividade artística ou lúdica
esportiva. Pois é, estamos em um momento da história humana de enormes
dificuldades para entender e explicar os acontecimentos. As palavras estão
perdendo seus sentidos, as pessoas perdendo a capacidade de compreender umas às
outras. Então chamo de “reinos”, porque acabam sendo mesmo um acontecimento num
formato medieval invadindo cenários de um tempo pós-moderno. E, no entanto,
como sempre é mágica a história, esse acontecimento todo já estava ali há muito
mais tempo, como uma gravidez. Foi divulgado em abril de 2017 a fala do
patriarca da gigantesca empresa de nome Odebrecht dizendo ter toda essa
movimentação semelhante a do tráfico de drogas, com dinheiro vivo e fora dos
sistemas legais de contabilidade, sido já feita desde a década de oitenta,
antes mesmo de ter sido aprovada a Constituição de 1988. Então esse modo de
organizar a circulação do dinheiro cresceu junto com o tráfico de drogas no
país.
Quando sairemos do “pós” e do
“neo” para encontrar nomes próprios para as coisas e o agir humano no século
XXI? Estamos no escuro, adentrando em reinos sem nomes, integradores de
federações de exércitos vestindo uniformes diferentes, todos de calças jeans, leggings e moletons, alguns de gravatas, paletós e terninhos de
mulheres meio feministas, a maioria tendo por armas uma determinada linguagem
em um determinado agir e pensar padrão. E eles só sabem repetir. Tudo em um
cenário desta que um dia há de conquistar o nome de grande guerra mundial, ainda que não venha a ser a terceira e última de uma série começada
em 1914, por motivos ligados a ineditismos simbólicos e orgânicos dentro dela,
mas leve outro grandioso nome como, por exemplo, primeira grande batalha arquetípica do pós-antropoceno anterior. Não,
não estou bêbada e nem tendo um episódio delirante. Estou falando com você,
Zeferina, e então não preciso agir como uma gueixa perante um bem sucedido
homem de esquerda pronto para me chamar de louca, assim, de brincadeira mas
sério, cortante, como se fosse um gentil carcereiro, ou uma freira diretora de
um convento medieval. Eu disse pós-antropoceno porque segundo alguns estamos
numa era geológica dos sapiens e logo sairemos dela, ou seja, deixaremos de ser
sapiens e seremos uma outra coisa ou outras coisas. E como estamos em um momento
da história humana em que ninguém consegue inventar nomes, ficamos nos “pós” e
“neo”. Assim, tipo na beira de um precipício olhando a imensidão azul. Além
disso, coloquei anterior porque não
posso acreditar em outra ideia que não a de que estamos na véspera de um começo
de história humana muito inaugural, tendente a ser apenas uma “idade média
alta”, um período rude e difícil de viver. A alta ou anterior sendo a mais
antiga de um começo. Provavelmente os sobreviventes vão trocar de nome,
enquanto espécie, nem que seja de vergonha mesmo. Mesmo que tenham o mesmo DNA,
vão deixar de ser sapiens para fazer
de conta que nada daquele passado, esse nosso presente, seja de
responsabilidade deles, por descendência. Talvez então esses novos humanos
comecem sua série histórica de milênios partindo de uma mentira, again.
Novamente, em inglês, parece mais vergonhoso ainda, como se o inglês estivesse
a nos fazer uma ironia. Again, again. Uarever,
estarei morta mesmo e não sei mais do que umas trinta palavras em inglês, se
tanto. E me orgulho disso. A menina antifeminista e se dizente “de direita” com
aparência de perversinha de novela que entrou para uma universidade brasileira
para fazer um mestrado em “feminismo” e falou que a Simone de Beauvoir era
louca, rindo, dando entrevista para um programa de um homem estúpido e violento,
a menina feliz em processar uma professora feminista, a menina debochando do
feminismo, essa menina provavelmente sabe muito mais inglês do que eu. Assim, nem preciso ficar me dando ao trabalho
de explicar o tamanho da violência da operação lavajato (nome dado por
policiais, procuradores e juízes à investigação sobre desvios de dinheiros para
fins ilegais, no Brasil do início do século vinte e um, final do vinte) e posso
voltar, tranquila, ao tema de Simone de Beauvoir, no seu livro O Segundo Sexo, sobretudo no que nele
posso encontrar de mortes e nascimentos relacionados ao meu próprio e
verdadeiro eu.
Entrei hoje em duas lojinhas no
centro de Imbituba, Zê, uma de perfumes baratos, outra de sutiãs e calcinhas,
vendidos ao preço de um dia ou dois trabalhados de uma atendente da lanchonete
na qual, depois, tomei um café. Os perfumes e os sutiãs de hoje em dia, Zê,
continuam a representar ideias que compõem o mito da princesa, assim como
brincos e anéis baratos. Não preciso explicar aqui que eles são produzidos em
trabalhos feitos em ambiente controlado por atitude vil, produzidos em linhas
de montagem invisíveis, nunca mostradas nessas televisões do tempo da lavajato,
cheias de propagandas lindas demais, em intervalos pagos a preços desconhecidos
por quem às vê, e que aparecem antes e depois de uma cena de polícia em uma
apreensão, um tiroteio ou um inquérito divulgado do mesmo modo como são
divulgadas as entrevistas de jogadores de futebol de times caros. Todo mundo
sabe como essas mercadorias baratas são produzidas, do Canadá à Coreia do
Norte, da Argentina à Rússia. E muitas dessas mercadorias são adquiridas por
mulheres trabalhadoras comuns para que elas possam se sentir como princesas, ao
menos nos primeiros dias de uso do objeto. Considerando estarmos a viver em um
mundo no qual as ideias feministas se tornaram a legalidade simbólica, eu fico
me perguntando o que a Simone de Beauvoir pensaria se entrasse hoje nessas
lojas que eu entrei. “Deixem os negros votar, eles se tornarão dignos do voto;
deem responsabilidades à mulher, ela saberá assumi-las; o fato é que não se
poderia esperar dos opressores um movimento gratuito de generosidade; mas ora a
revolta dos oprimidos, ora a própria evolução da casta privilegiada criam
situações novas; por isso os homens foram levados, em seu próprio interesse, a
emancipar parcialmente as mulheres: basta a estas prosseguirem em sua ascensão
e os êxitos que vêm obtendo incitam-nas a tanto; parece mais ou menos certo que
atingirão dentro de um tempo mais ou menos longo a perfeita igualdade econômica
e social, o que acarretará uma metamorfose interior”. Está lá na conclusão do
livro, eu a li e agora voltei para os primeiros capítulos. A Simone escreveu
uma bíblia, entre tantas outras produzidas na modernidade. Ela mesma afirma que
o cristianismo e o marxismo são religiões e ela se pensa como científica,
dedicada a verdades “existentes”. Agora que o mundo humano se mostra quase que
totalmente tomado por diferentes loucuras, a palavra ciência começa a se confundir com a palavra técnica e isso parece até mais honesto. Mas Simone é linda quando
diz que a mulher é um ser aprisionado durante milênios e desejante de tornar-se
outro ser com alguma liberdade. A palavra liberdade domina o conteúdo do texto
dela.
Estava eu a escrever hoje mesmo,
nesse dia da morte do crucificado, em 2017, lá no facebook, sobre a seguinte
questão: só haverá uma Constituição digna desse nome no Brasil o dia em que for
escrito um conjunto de normas maiores no formato de dez ou vinte frases simples.
Isso porque só será uma norma maior se for entendida pela maioria da população
brasileira que sabe ler muito pouco ou quase nada. Penso agora que um dos
primeiros artigos deveria ser algo assim: “todo habitante nesse país será
respeitado na manifestação de seu verdadeiro eu, independente de sexo, etnia,
profissão, idade ou religião, desde que não se manifeste para desrespeitar a
manifestação do outro”. Bem entendido, fale direitinho, não use palavrões, não
seja debochada, mas critique livremente as ideias das quais discordar. Então,
Zeferina, o meu verdadeiro eu me faz pensar, nesse momento histórico, que eu
devo dispor do direito de falar algo sobre a Simone de Beauvoir sem ter que ler
todos os livros dela e sobre ela e sem ter que escrever um tratado tão
enciclopédico como o dela para ter minhas ideias sobre feminismo respeitadas.
Leia e concorde ou discorde quem quiser, mas sem desrespeitar o meu eu. Então, acredito que esses movimentos
feministas que se tornaram acontecimentos de multidões e repercutem em grandes
eventos públicos bandeiras como a de “nenhuma a menos” referentes à luta contra
a violência sobre a mulher e ao limite máximo dessa violência que vem a ser os
assassinatos de gênero, atualmente chamados de feminicídios, eles se apoiam teoricamente em ideias como a que esse
parágrafo da Simone apresenta. Eles se pensam como movimentos de mulheres em
processo de libertação supostamente vivendo uma “metamorfose interior” naquilo
que a Simone explica, em seu livro, como sendo as atitudes motivadas por
autoimagens “desgraçadas” por uma mitologia que retira a “sua liberdade”, presenteando-a
“com os tesouros falazes de sua feminilidade”.
E, ainda, Simone escreve: “Balzac descreveu muito bem essa manobra quando
aconselhou ao homem que a tratasse como escrava, persuadindo-a de que é
rainha”. E “nenhuma a menos” parece um grande acontecimento de multidão visando
à proteção de cada uma. No entanto, o que vemos nesse mundo comandado por
inquéritos policiais e processos judiciais acionados por meio de ações de
grandes mídias são mulheres predominantemente ainda se percebendo como
desejando incorporar o mito da princesa, ou da rainha, e aparecer perante o
macho viril como “sua vassala”, no dizer de Simone, onde a mulher precisa aparecer como enfeite, imagem de puerilidade,
frivolidade, irresponsabilidade. Não o macho colorido do casal de canarinhos,
no qual o masculino é o que precisa seduzir por meio do enfeite, mas a fêmea do
homem, aquela que fica adornando o doméstico, ou enfeitando os desfiles do rei,
a feminilidade como uma ilusão desta
vez reutilizada em bricolagens tão multiplicadas em signos distintos que acaba
compondo a imagem de homens andróginos, cantores e artistas populares adornados
de um modo usualmente feminino. E esse adorno, finalmente, feito em linhas de
produção nas quais mulheres e homens restam escravizados, e vendido em lojinhas
baratas espalhadas pelo mundo. E todo
mundo sabe. Diante disso me faço três perguntas: esse “nenhuma a menos” unifica
quais “umas” e intenta proteger quais “umas”? Outra pergunta que me ocupa é, se
o direito ao voto e os direitos ao estudo e ao trabalho, no interior da
sociedade capitalista do pós-segunda grande guerra, que iluminam toda a obra de
Simone de Beauvoir, como motores de uma conquista “dentro de um tempo mais ou
menos longo” da “perfeita igualdade econômica e social” não compõem uma
mitologia de uma época mais ingênua e crente na capacidade fabril dos humanos
sapiens, no interior de uma racionalidade derrotada hoje pela violência quase
indescritível das grandes corporações? Não seria então esse movimento feminista,
estacionado no século vinte, um eco religioso - tendente à melancolia coletiva
– de uma mitologia do progresso já inexistente como solução humana de conjunto,
para as grandes multidões empobrecidas e desiludidas do sul do Planeta?
De onde eu falo, Zeferina? Quem
me ajudou a chegar nesse lugar de liberdade de onde escrevo? Talvez um pouco
Simone, pela pregnância de sua crença no ambiente social moderno, nas universidades,
nos cenários das protagonistas dos filmes de Hollywood. Mas a maior parte da
mulher em situação de combate que sou só pode ter vindo de você, Zê, da vó
Nair, das costureiras do início do século vinte no Brasil, sobretudo das professoras
herdeiras das sufragistas, da minha mãe que ensinava latim aos vinte anos. Eu venho de uma coragem feminina acontecida
aqui mesmo, no Brasil, e minha intelectualidade não foi nunca respeitada como
sempre foi a da Simone de Beauvoir. E é nas feridas desse desrespeito que nasce
a lógica endemoniada da menina que debocha a milenar luta das mulheres por
mínimas liberdades civis.
versão um. foto: daisy weston
versão um. foto: daisy weston
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