Querida Zeferina,
A França acaba de entrar em
uma necessidade de escolha entre o pântano e o precipício, sendo um problema
ético a decisão sobre qual deles tende a ser o mais nefasto aos ideais dos
“direitos humanos iguais para todos”, qual dos candidatos – Macron e Marine Le
Pen – é o pântano ou o precipício. Nós, brasileiros, nos sentimos consolados
dentro de nossa coitada inveja da qualidade política francesa. Acho até que
essa Marine Le Pen poderia abrir espaços de rupturas nas lógicas hegemonizadas
dentro do grande capital da robótica, da engenharia química e da engenharia
genética, caso se elegesse. Mas logo seria capturada e disciplinada pelo ralo
do capitalismo senil, transgênico, pós-humano. Seria um pensamento louco votar
na Le Pen, mas esses jovens gerentes do capitalismo só estão sendo desafiados
pela direita mais antiga, pelo viés reacionário. Isso nos confunde um tanto, no
nível do desejo, embora na razão não possamos escolher a loira, até porque seu
significado se comunica, em uma equação simplória, com o Bolsonaro do Brasil.
Aqui, essa direita antiga é composta por psicopatas assumidos, violadores,
mafiosos bandidos de filme noir como o inesquecível Chinatown, com o Jack
Nicholson e a Faye Dunaway. Nesse filme, os mocinhos não têm qualquer chance e
o bandido mor é o pai da princesa, o rei. E não há sapatinho de cristal como
objeto de cura. Macron, o banqueiro jovem casado com uma fêmea integradora, a um só tempo, de Sigmund Freud e Simone de Beauvoir, liberado de culpas pela nova ideologia feminista, GLTB e libertária
do direito às diferenças, vencerá as eleições na França, mas Marine Le Pen
participará do novo governo. A esquerda francesa está nas ruas, apanhando como
nós, provavelmente apanhando menos porque lá é a França, velha e boa, e eles não
costumam quebrar cabeças e faces de jovens indefesos que passam nas ruas. Não é mais possível ver duas extremidades
nessa história desse mundo disciplinado por um modo quase chinês (imperial ou
maoísta, uarever), brutal, associado a um estilo norte-americano disruptivo, na
prática mergulhado em psicopatias sociais transbordantes - em tese limpo e
ordenado - em suas lógicas predominantes.
A cada dia que passa aprendo a relaxar em meio a tantas agonias, a cada
semana mais me sinto sem compromisso de escrever para que alguém entenda e
goste, Zeferina. Você sendo muito mais do que uma ideia psicanalítica de um
arquétipo do bem ou um si mesmo
perdoado, sendo mesmo um nagual do Castañeda, talvez. Sobretudo, Zeferina, você
sendo um direito inalienável meu de ser e pertencer. Direito à palavra. Menos
pressa tenho em chegar a algum lugar, algum objetivo. A vida é muito curta, nós
a vivemos como uma bola de neve caindo montanha abaixo e, ainda, passamos a
segunda parte dela encontrando explicações para nós mesmos sobre os motivos do
que fizemos na primeira parte.
Mas se até a França desmorona eu
posso ler Kant em paz, pensando nos dois jovens adeptos de Gilles Deleuze, um
pobre e lindo punk operador de telemarketing e outra bem sucedida e refinada autora
de livros de filosofia, cheia de títulos acadêmicos e professora de
universidade. Vou a Kant tentar entender o que separa um do outro, nesses dois
jovens adoradores do lógico genial e analista do mundo à beira do caos, o
Deleuze, autor do livro Anti-Édipo, uma
obra fundacional de entendimentos sobre o que vem depois do moderno. Que
identidade tem essa separação entre um deleuziano pobre e um bem sucedido com o
problema da decadência da esquerda tradicional francesa?
Emanuel Kant acreditava – dizem -
em uma filosofia perfeita, em um encontro preciso com a verdade por meio de
construções racionais eficientes, e Deleuze entendia – depois de vários outros
pensadores alemães – ser o mundo dos seres e das coisas um permanente movimento
caótico inapreensível pela consciência e o olhar humanos. Seria preciso então,
para Deleuze, falar e escrever filosofias
de um modo nômade, como quem escreve romances psicanalíticos. Uma espécie de ação
direta movida pelo desejo, pelo deus Dionísio, mas refletida em conhecimentos
adquiridos pela geometria revelada nas maravilhosas máquinas de cálculos e
formas que são os computadores. Já Kant, um alemão do século dezoito, adorava
organizar as imagens, os objetos de sua observação, em gavetinhas de um armário
enorme e sólido: “A antiga filosofia
grega repartia-se em três ciências: a Física, a Ética e a Lógica. Esta divisão
está inteiramente de acordo com a natureza das coisas, nem temos que
introduzir-lhe qualquer espécie de aperfeiçoamento, a não ser acrescentar o
princípio em que ela se baseia, para que desse modo possamos, por um lado,
possuir a certeza de ela ser completa e, por outro lado, determinar com
exatidão as subdivisões necessárias. Todo conhecimento racional é ou material e
refere-se a qualquer objeto, ou formal e ocupa-se exclusivamente com a forma do
entendimento e da razão, um e outro em si mesmos considerados, e com as regras
universais do pensamento em geral, sem distinção de objetos. A filosofia formal
denomina-se LÓGICA, mas a filosofia material, que trata de objetos determinados
e das leis a que eles estão sujeitos, divide-se, por sua vez, em duas, visto
estas leis serem ou leis da natureza ou leis da liberdade. A ciência das
primeiras chama-se FÍSICA; a das segundas, ÉTICA. Àquela dá-se também o nome de Filosofia da natureza ou
Filosofia natural; a esta, o de Filosofia dos costumes”. (Fundamentação da
Metafísica dos Costumes-Immanuel Kant) Achei lá na Wikipédia. Não tenha
medo, você que me lê, de estudar filosofia por recortes na internet, ou
livrinhos baratos e velhos achados em uma prateleira qualquer. Eles estão
prendendo meninos negros, como o Rafael Braga, para estupra-los e condena-los
pelo uso de maconha, ou por indicia-los como entregadores de drogas para jovens
“bem de vida e estudados”. Estão esfacelando vidas indefesas. Então podemos
pensar, falar e estudar até mesmo Kant, livremente, sendo nômades.
Regina Schöpke é a bem sucedida e refinada autora de livros de
filosofia que falei acima e, ao procura-la nas redes sociais encontrei um
blog no qual ela aparece junto a outras personalidades bem sucedidas tais como
Bolivar Lamounier, Merval Pereira, Fernando Gabeira, Eliane Cantanhêde e Miriam
Leitão. É professora universitária e escreve no jornal O Estado de São Paulo. Li
quase todo o seu livro Por uma filosofia
da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, editado pela Contraponto,
editora vinculada ao nome de César Benjamin, um militante da esquerda armada do
tempo da ditadura militar, preso na época e depois exilado, que participou da
fundação do Partido dos Trabalhadores e depois rompeu com este partido.
Atualmente, 2017, o César Benjamin enfrenta a escolha de ser secretário de
educação do governo do prefeito Marcelo Crivella, no Rio de Janeiro. O livro da
professora e filósofa contém um pensamento rigoroso que me pareceu álgebra
pura, Zeferina, aquilo que Kant chamou de lógica. Vou destacar dois pequenos
recortes para afirmar o que eu entendi e o que me fez não gostar do pensamento
dela. No primeiro, ela diz, de Deleuze: “Era preciso inventar um conceito que
libertasse a diferença das regras limitadoras da representação . E libertá-la
da representação é libertá-la de sua subordinação à ‘identidade’, ao ‘mesmo’ e
à ‘semelhança’. É dar a ela ‘voz’ própria, ou seja, é assegurar à diferença uma ontologia sempre negada
por uma imagem de pensamento ortodoxa. Dissemos ‘ontologia’ porque a diferença pura é a própria expressão do ‘ser’”. No segundo, Regina conclui, no
fim do livro, e sobre Deleuze: “Para ele, o ser é unívoco. Mas a univocidade
não significa um único e mesmo ser para todas as coisas. Muito pelo contrário,
os seres são múltiplos e diversos. Univocidade significa que todos os seres se
dizem na diferença e na repetição. A diferença é um
acontecimento do próprio ser, é como ele se expressa, é como ele se diz. Cada
ser é único. É por isso que tomar a diferença como atributo ou como negação é
diminuí-la, reduzi-la a formas menores”. Estou chegando perto do título desse
capítulo, Zeferina, ou seja, como aceitar as diferenças democráticas sem se
deixar capturar pelo capitalismo compulsivamente disruptivo e genocida.
Ocorre que o acontecer da
diferença pura no campo de existência de um ser humano, penso eu, ele é sempre
histórico. E eu preferiria uma reflexão mais “kantiana” sobre ética, para que
pudéssemos entender os lugares políticos ocupados pelos seres, e também uma
reflexão mais histórica, não num viés materialista simples, mas agora num
formato que integre todo um conjunto de conhecimentos inaugurados na linguagem
de Deleuze, depois de Foucault, depois de Nietszche. Ver esse acontecer como uma profusão de
novidades, sem sentidos de memórias coletivas, é próprio do tempo histórico da
globalização neoliberal, esse tempo de um incrível excesso de imagens e de
objetos descartáveis a produzirem uma desordem na superfície do planeta Terra. Certo,
Deleuze consegue descrever um mundo no qual a técnica – a tecnologia, o
conhecimento de como produzir minúsculas máquinas, químicas, objetos muito
complexos, armas incríveis - captura todo o planeta Terra, incluindo todos os
humanos, e essa ferramenta que se chama informática
produz informações separadas entre elas – como se nenhuma relação tivessem umas
e outras, para depois agrupa-las em conjuntos temáticos, matemáticos, fórmulas
(os pobres, os ricos, os homossexuais, os heterossexuais, os homens, as mulheres,
os jovens, as tribos, as diferentes imagens dos “si mesmos” e por aí vai) que,
não obstante a alegada imanência radical são – na verdade – pequenas
localizações de uma mesma e gigantesca transcendência, esta que joga os humanos
a se pensarem como acoplados a avatares representantes de uma liberdade suposta
como infinita. Enfim, uma transcendência a se afirmar como eterno simulacro,
como sendo o dever ser de um devir de
pura outrencidade e, no entanto, apenas mais uma ideologia, uma crença a conduzir novamente os humanos a
comportamentos de exércitos burros, inessenciais (como afirmava a velha e boa
Simone de Beauvoir), descartáveis. Mas entre descrever o caos deste capitalismo
senil, terminal, genocida, e uma fala ou escrita do que podemos fazer a esse
respeito pode haver uma distância tão grande como essa que separa o jovem punk
que apanha da polícia de choque da jovem professora e filósofa que escreve
junto a apoiadores desta violência policial, escreve em blogs e jornais
sustentados por gerentes que sustentam essa violência policial que arranca
olhos e quebra crâneos de jovens pacíficos e desarmados.
Nunca li Kant antes de hoje,
Zeferina, e já não lembro quando fiquei sabendo ele ter sido um homem desses
das listas dos dez mais importantes de um século. Devo ter lido sobre ele em
aulas de introdução à filosofia, no básico do primeiro ano de universidade,
1977, mas lembro da minha total falta de atenção na época, interessada que
estava em aprender a fazer sexo com amor, aprendendo então a escolher um jovem
homem o mais bonito, inteligente e valente que eu conseguisse seduzir - em uma
vida sempre corrida, ameaçada, acionando ao mesmo tempo audácia e medo – e
aprendendo a participar com ele (de preferência como marido) de uma revolução
para instalar no Brasil um governo capaz de deixar toda a população brasileira
alegre e esperançosa, com uma vida boa. A burguesia era um problema, mas não
havia na minha índole, vontade alguma de fuzilar nem mesmo o mais louco
estuprador, e ao ver a família real russa ser fuzilada, em um filme qualquer,
eu me imaginava inimiga de toda e qualquer ideologia (linguagem de uma
transcendência) que propusesse maltratar quem quer que fosse, seja qual fosse o
motivo. Era aquela história de dividir a comida existente no mundo entre todos
os humanos, fazer todos eles alcançarem o conhecimento, dar a todos as mesmas
oportunidades de serem livres e dignos.
Fui ouvir novamente sobre Kant ao
assistir um vídeo de Roberto Machado no Youtube, no qual eles dois apareciam –
Kant e Machado – como aquele homem maravilhoso que, finalmente, eu não havia
chegado nem perto de conseguir para marido. Roberto parecia um pensador
grandioso, insuspeito para acusações mundanas sobre quem lava a louça ou quem
apoia ou não o outro. Fico imaginando esse homem, o Kant, a pensar os
movimentos das coisas e dos seres no mundo. Se eu pudesse falar com ele,
Zeferina, como posso falar contigo, perguntaria sobre os porquês de um jovem
adulto admirador de Gilles Deleuze só poder ser telefonista em uma empresa de
telemarketing e outro, quase da mesma idade, poder tornar-se uma filósofa e
professora de universidade. Porque um deles pode se tornar uma “pessoa bacana”
e o outro restar dentro da sofrida condição de uma pessoa qualquer ameaçada por
uma polícia de choque não raro perigosíssima para o cidadão comum, ainda que
haja um rastro de “semelhança espiritual interna” entre os dois. Kant não pode
me responder ou eu não posso ouvi-lo. Mas o teu sorriso irônico e generoso,
sentido como um nagual por mim, Zeferina, me diz ter essa diferença alguma
coisa a ver com os fracassos da esquerda, na França e no Brasil, e que esses
fracassos fazem renascer – surpreendentemente – aquele objeto de desejo, um
sonho bom, do direito ao comum, ao bem comum, ao agir de todos em meio a um
espaço público, do direito de ser um “nós” dentro de um ordenamento social que
sabe falar dos si mesmos como
individualidades integradas a uma inteligibilidade histórica. Enfim, quem
diria, o excesso da diferença pura produz
a boiada e o choque policial. E enquanto alguns deleuzianos procuram se
acomodar dentro de estados de exceção, nossos si mesmos tão diferentes entre si afirmam, juntos: “enquanto
houver espaço, corpo e tempo e algum modo de dizer não eu canto”(Belchior).
imagem da página https://rockontro.org/2014/06/04/belchior-sem-medo-do-rock/
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