Querida Zeferina - carta 10.1 - O direito moderno, o domínio do fato e o direito natural defensivo

                               

                             Querida Zê,

                             Agora, aquela contra-intuição do feminismo sem nome e sem fala. Este feminismo comum e milenar tão diferente das falas oficiais das mulheres famosas, este feminismo da fofoca sempre combatida e que providencia solidariedades entre sofredoras, mas de modo algum mergulha nessa tal sororidade obrigatória e disciplinadora do comportamento das mulheres obedientes às determinações das grandes mídias, das grandes palavras de ordem. Agora, esta contra-intuição sempre subversiva poderia integrar uma nova epistemologia capaz de construir um novo direito das gentes comuns, um direito natural defensivo capaz de defender todos os frágeis e humilhados pelos mais rápidos, mais ágeis e mais mandantes. Mas isso precisaria ser muito bem pensado e explicado, os conceitos descritos em movimentos complexos para que se pudesse identificar até mesmo aquela rapidez e agilidade da mulher gueixa que manda em outros como uma representação de seus tutores, da nobreza a quem serve. Seria preciso descrever com acurada precisão quem afinal são as “gentes comuns” para finalmente conseguir erguer um direito que pudesse homenagear o Lula e a Dilma, em oposição ao direito do juiz Moro, mesmo ao considerar os fracassos evidentes deles dois, justamente sabendo perdoa-los.
                           Agora, há pouco tempo, estou vivendo num mundo que assiste ao seu próprio fim e de um modo incrivelmente acelerado. Nós mesmos, os mais velhos, já participando, desajeitados, de uma organização de lógicas do viver onde cada vez menos pessoas reclamam do tanto que tudo isso se parece com um quadro de Hieronymus Bosch, onde o sofrimento indescritível fica no quadro ao lado do piquenique da aldeia sonâmbula onde ninguém olha para ninguém. Há um problema de pânico ou de êxtase generalizados produtores de solidão como pandemia e perda de entendimentos comuns dentro de uma mesma linguagem. Há um dessoramento da linguagem comum, uma anemia, uma perda de importância dos sentidos e, portanto, uma ausência progressiva do pertencimento. Estamos nos tornando cada qual uma singularidade à deriva, medievais, enclausurados e coisificados pelas estatísticas. Vejo uma televisão tanque de guerra arremessando mísseis, mostrando polícias por todos os lados e gente apanhando, sendo presa, baleada, perseguida, “apreendida” como “elemento”, como os escravos descritos e desenhados nos troncos, nos livros escolares dos tempos em que era tão romântico ler livros. Agora, vejo essa aura de reverência ao grande romance perder sua força, a evidência de que chegar a uma visibilidade de escrita é um poder que poucos têm e não sem pagar algum preço, não sem manifestar desde o começo do desejo de escrever a adesão a um grupo político que consiga ter influência em mídias grandes e médias, influência em esferas de gerenciamento de instituições de produção cultural. Em resumo, tudo virou mercadoria de consumo, avatares, algoritmos voando em um tecido de sociabilidade explodida em fragmentos. Tudo virou discurso de sustentação de algum tipo de aristocracia. E a existência de aristocracias de esquerda, elegantes núcleos de preservação do socialismo derrotado, ainda se mantém legalizada ao lado da proliferação de direitas de novos e arcaicos tipos. Cresce um discreto medo de que venha a surgir uma nova escravidão, um inaugural sistema de castas, um inevitável apartheid do contingente humano que jovens teóricos chamam, tranquilamente, de o “homem inútil”. Isso são ingredientes dessa nova barbárie do final do século vinte e início do vinte e um e é nesse cenário de fragmentação de uma hegemonia cultural iniciada no renascimento europeu, lá por volta de mil e trezentos depois de Jesus Cristo, que a figura do livro de sobrevivência resgata antigas cenas de alquimistas medievais. Escrevo como refugiada, Zeferina, desejando atar vínculos de esperanças entre os que ainda não enlouqueceram neste mundo meu e os que conseguirem passar por esse fim de mundo no qual vivemos. Como se jogasse garrafas lacradas ao mar, o mar virtual das redes sociais, desejando que alguém as encontre um dia, leia e pense: então era assim que eles sofriam e que tentavam viver e inventar soluções para seus problemas.
                                Mas se nesse mundo terminal, temos o direito do domínio do fato, tal como lemos nas redes sociais no Brasil, que é o direito do juiz Moro, qual seria o direito do Lula? Sob que direito o Lula estaria preservado como principal líder de multidões no Brasil? Esse direito do juiz Moro seria algo assim: o fato aparece como um desenho em um quebra-cabeça de indícios e quando o juiz vê o fato, um domínio se estabeleceu, mesmo que faltem peças materiais objetivas que provem uma culpa. Então seria a presença de um fato visível como ideia a partir de fragmentos. O fato que eu consigo ver, Zeferina, é o de que o PT é o único partido que precisa ser cassado de sua capacidade de influência no cenário político. Os demais acusados, de outros partidos políticos, nos processos ligados à investigação chamada de lavajato, não levam junto seus grupos políticos, seus partidos, para o lugar de punição.  Talvez porque outro fato domine a cena, e ele seria a necessidade de cassar de seu lugar de poder o conjunto normativo erguido na modernidade republicana, no Brasil e no mundo. Finalmente podemos concluir - pelo domínio do fato - que o Partido dos Trabalhadores liderava, no governo, a proteção à CLT, as ideias de ênfase do princípio jurídico da proteção do hipossuficiente, a Constituição dos direitos humanos individuais iguais para todos. Então o domínio desse novo direito surge pelo fato novo que é a mais recente revolução da informática carregando consigo novas tecnologias em diferentes áreas e precisando deixar em aberto até mesmo as possibilidades de vários tipos novos de escravidão, a começar pelo trabalho obrigatório de apenados nos grandes presídios de predomínio de populações negras, pobres e abandonadas desde as gerações de seus pais e avós. Outras e novas escravidões como a de jovens operadores de telemarketing, de costureiras domésticas, de cortadores de pedaços de carne de frango ou de gado, todos presos em sistemas cruéis de trabalho forçado e sem direito a contrato protegido por leis de domínio público.
O PT, ao defender as normas construídas no século vinte, estava travando a liberdade dos gestores desse novo mundo de novas lógicas. E o PT fez isso defendendo os direitos escritos modernos, os direitos das normas e decisões jurídicas escritas, dos códigos, das constituições, todos eles erguidos a partir dos acontecimentos inaugurados pelas revoluções burguesas do século XVIII. Contra essa tradição, nasce o direito do domínio do fato, sendo que os fatos aparecem em uma sucessão de problemas inéditos, tecnologias novas e populações humanas envolvidas em tragédias sem precedentes, como a ruptura da barragem do depósito de lixo de mineradoras, em 2015, e a contaminação dos rios a partir da cidade brasileira de Mariana, em Minas Gerais, Brasil. Parece então, Zeferina, que o PT defendia um capitalismo que está morrendo, se decompondo, enquanto os seguidores, aliados e admiradores do juiz Moro defendem  uma profusão de grandes novidades. Isso do julgamento do Lula nas telas das televisões e nas redes sociais, a partir de seu depoimento perante o juiz Sérgio Moro, está parecendo um tipo de assalto revolucionário ao poder, uma espécie de “período de terror” acionado para prender um conjunto de inimigos deste novo poder que irrompe e silenciar uma determinada versão, mais antiga, dos fatos. Parece então que isso vai se impor, aos poucos, aos saltos, lenta ou repentinamente e teremos o início de um novo mundo jurídico. Mas nada indica que nesse novo mundo teremos apenas um modelo de pensamento, teoria, sobre o direito de todos e de cada um, direitos dos humanos, dos seres vivos e das coisas tocadas por eles.
                       Penso, Zeferina, em um direito natural defensivo, uma produção de entendimentos sobre direitos a se realizar a partir das memórias de longa duração que se mantiverem dentro das comunidades humanas, dentro dos cérebros de muitos dos seus membros que passarão essas memórias de geração em geração. Chamo de natural esse direito porque ele brotará, penso eu, de ideias irrefutáveis e muito mais consolidadas do que esses fatos voláteis das lógicas camaleônicas do mundo atual. Ideias tais como bem viver em comunidade, felicidade individual, liberdade individual e de grupos, saúde dos corpos e das mentes, são ideias que movimentaram todos os tempos humanos, todas as histórias vividas pela humanidade. Natural no sentido do que é próprio de um ser, daquilo que vem com ele quando ele nasce e cresce. Chamo de defensivo porque, pela primeira vez na história da humanidade, esse direito tende a aparecer não como uma potência que impõe uma novidade, um desejo, uma invenção, não mais como um conjunto de ideias utópicas ou inscritas em um campo filosófico revolucionário de novos atores sociais, mas como um conjunto de acontecimentos movidos por urgências imediatas de sobrevivência da espécie humana sapiens. É um direito natural defensivo porque nós estamos ameaçados de extinção, Zeferina. Então esse ser natural desse direito seria um conteúdo a predominar na história desta humanidade ameaçada e, portanto, seria um direito historicista, a encontrar um domínio de uma história humana.

                               Penso sobre esse direito das gentes comuns desde 1994, quando comecei a estudar e escrever sobre histórias da Justiça e do Direito do Trabalho no Brasil. Lá, eu estudava sobre as histórias do escravismo no país, sobre as perversidades nas Casas Grandes & Senzalas, sobre os hibridismos entre violência e confraternização. Estudava sobre a lei da despedida injusta de 1935. Agora, estou voltando àqueles escritos e pensando sobre um novo direito para opor ao direito do Moro e para defender nosso direito ao próprio corpo. Neste momento histórico, não mais as “mulheres inessenciais” descritas pela Simone de Beauvoir, agora os “homens inúteis” falados por jovens autores, como o Yuval Noah Harari. Agora, os homens terão que aprender a exercer uma contra-intuição, como as mulheres diferenciadamente audaciosas sempre fizeram desde o surgimento do primeiro domínio patriarcal. Agora, quando a mulher começava a deixar de ser coisa para os homens, começamos a ver toda a humanidade mergulhar em um domínio de fatos que conduzem os seres vivos a mais degenerada coisificação. Agora.


Imagem da web - pintura de Hieronymus Bosch - Cristo carregando a cruz - século XV.

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