Querida Zeferina,
Essa
carta começou a ser escrita em 2012 e era apenas uma anotação despreocupada: "O Galvão Bueno disse, hoje, na corrida da fórmula um, “vai
trabalhar, é bom trabalhar!”, a respeito da ação de uma das equipes em disputa.
Ontem fui buscar as lajotas que faltavam, para o deque de cima da minha casa,
lá na região urbana da ilha, e a dona da loja, estava muito abatida. Eu disse
pra ela: tão dizendo que a classe média tá trabalhando mais de 12 horas por
dia, doze na média, e estamos ficando doentes; acho que estamos em uma ditadura
da mídia. Ela adorou meu comentário e respondeu: 'só os bem miseráveis tão bem,
porque o governo tá dando comida pra eles. Nós estamos falindo, os donos de
lojas, e estamos ficando com depressão'. Eu penso: se estamos, evidentemente,
em uma ditadura, porque os meus conhecidos de classe média silenciam? Que houve
com eles? Vou continuar o texto sobre os manifestos feministas; estou
costurando, à mão, uma cortina para a janela da cozinha da minha casa. Estou
fazendo isso faz meses, cheio de pedaços de panos diferente, um patwoork lindo.
Essas costuras manuais são verdadeiros mantras, orações à religação com valores
pela vida e pelo equilíbrio da espécie humana com o restante do Planeta. Credo,
foram século de evolução do mundo fabril para o mundo informatizado e nunca foi
descoberto esse milagre: o da lentidão, da calma, do cuidado com a vida.
Zeferina é um lugar de esperança para os seres humanos redescobrirem estes
valores".
Olha que gracinha, eu
estava a pensar sobre memórias coletivas de longa duração e potências de rastro
forte e não sabia, ou não tinha coragem, de falar sobre isso, então eu chamava
tudo o que me dava paz e segurança sobre o meu "si mesmo", a minha
consciência sobre o meu próprio ser no mundo, de Zeferina. Amada, amada... O
pequeno texto carregava o título de "produtividade abusiva" e eu
estava, na época, tentando afirmar uma ideia de conceito para os pensadores no
campo do Direito, a de que depois de um certo ponto de velocidade no trabalho,
na ação do corpo do operário subordinado, começa a haver um prejuízo gerador de
doenças. Pensava eu que isso poderia estar articulado à jornada trabalhada,
tipo o número de horas associado à velocidade do agir. Ou seja, depois de um
certo tempo trabalhando rápida e ininterruptamente, a(o) trabalhadora (o)
começa a sofrer emocionalmente e em sua estrutura de cartilagens, ossos, músculos e
tecidos macios e internos. Mas hoje, 2017, o que eu quero falar é muito mais
amplo, e eu falo diretamente para ti, tatavó. Conscientemente, pratico um certo
número de heresias neste momento. A principal delas é que estou a falar sobre
um complexo de conceitos no campo do "mundo jurídico" e, claro, os
juristas poderão ou me fuzilar semioticamente, ou me chamar de louca. Mas,
considerando que ontem aprovaram uma lei no Brasil que praticamente revoga a lei
da abolição, aquela da princesa Isabel em 1888, eu me sinto no direito - e essa
palavra usada nessa situação já é uma teoria - de falar grandes pensamentos
sobre o Direito.
Estou a escrever, nessa carta, o seguinte: existe, na história de
setenta mil anos da humanidade, a produção de fontes materiais que instituíram
vários princípios jurídicos e, dentre eles, o mais importante no momento
histórico em que o mundo humano sapiens se encontra, é o princípio da
desceleridade. Sim, eu inventei essa palavra hoje, não sei se existia já. Vou
explicar. Existe o princípio da celeridade que é mais ou menos assim: um
julgamento, uma decisão sobre direitos, normas, deveres, faltas, atos ilícitos
e punições pode só ser justa se for aplicada no tempo certo. Por exemplo: se um
salva-vidas decide correr em direção a uma pessoa que levanta o braço no mar,
supondo que ela está passando mal, precisa tomar a decisão de ir até ela em um
tempo certo necessário para, caso tenha sido verdade o pedido de socorro, ele
tenha tempo de salva-la. Normalmente os salva-vidas começam a correr para a
beira do mar olhando ao longe e quando o afogado ergue novamente o braço ele
acelera a corrida, caso o suposto acidentado pare de acenar e demonstre
controle – nadando, por exemplo - o salva-vidas desacelera e continua a olhar,
a confirmar a segurança do banhista ele começa a caminhar até mais próximo e
finalmente para. Esse princípio tem sido muito falado no Brasil, e creio que no
mundo, nesses tempos de grandes acelerações na vida cotidiana dos brasileiros.
O que estou a dizer aqui é que esse princípio é verdadeiro, mas dentro do campo
de existência dele estão sendo acionados acontecimentos iluminados pela maldade, e pela vontade de humilhar seres humanos subordinados, ou seja, as ideias de
rapidez de procedimentos que vemos serem alardeadas na atualidade são derivadas
de práticas construídas nas tradições de memórias coletivas humanas no campo da
tirania.
O que permite esse entendimento
claro sobre lugares do mal, no caso das velocidades no agir, é um outro
princípio erguido pela humanidade e que se apresenta no mundo atual como sendo
o princípio da desceleridade, qual
seja, o entendimento de que para efeitos de justiça na realização do bem comum
há uma velocidade máxima para a realização de qualquer ato justo, além do que o
ato perde o significado pretendido. Não estou falando em um direito a ser
lento, ou em um direito a desaceleração. Vc pode estar quase em “câmera lenta”
e ainda pode desacelerar. A aceleração é um acontecimento que vai do parado até
o que se torna invisível a olho nu. Mais até, os físicos que sabem sobre esses
acontecimentos de velocidades da luz e tempos-espaços. Sei muito pouco sobre o
que não sei a esse respeito. Estou pondo em relação um conjunto de outros
princípios jurídicos, como o da razoabilidade, com o princípio da celeridade e
todos eles vistos sob a ótica dos evidentes e visíveis genocídios que estão
sendo praticados no mundo humano atual.
Esse princípio que eu
identifiquei (princípio a gente não inventa, eles estão lá, em sociedade,
emanam de construções coletivas e estáveis de memórias humanas de longa duração
e eles podem ser enunciados e reconhecidos pelo conhecimento jurídico de
qualquer sociedade em um ambiente de uma civilização) ilumina fontes materiais
do direito que são milenares, como o desejo de usufruir do ócio, do lazer, do
tempo livre, da apreciação fortuita dos cenários agradáveis. Tanto humanos
quanto outros animais sentem esses desejos e se esforçam em apreciar esses
prazeres. Mas ele só ilumina essas fontes materiais no exato momento em que
elas se tornam ameaçadas em sua existência, ou seja, quando a capacidade de
humanos usufruírem dos benefícios do exercício desses prazeres é proibida, para
algum número significativo de indivíduos reunidos em coletividade. Portanto, quando
um número suficientemente grande de indivíduos humanos organizados em modos de produção e reprodução da vida se
vê proibido de apreciar uma fração mínima necessária de conforto psíquico em razão de excessos de aceleração dos
acontecimentos que o integram, em sua vida cotidiana, no interior de uma
determinada sociedade, então o princípio da desceleridade
emerge ali para iluminar direitos tais como o de desconexão, o de limitação
de uma jornada de trabalho diária, o de regramento de intervalos entre as
jornadas e de dias de descanso semanais e anuais.
Vou ler, Zê, um cara chamado
Franco Berardi, que tem um livro com esse nome: A fábrica da infelicidade: trabalho
cognitivo e crise da new economy. Não sei se nesse livro, mas em algum lugar ele diz
que os suicídios de jovens entre os 18 e os 34 anos está aumentando em uma
velocidade assustadora, nos últimos quarenta anos. Isto significa que vários
outros acontecimentos destrutivos semelhantes – acidentes de trânsito, formação
de gangues violentas, depressões endêmicas e pandêmicas, reduções dos índices
de acasalamentos e práticas sexuais estáveis e com envolvimento afetivo – estão
aumentando também. Vou escrever mais sobre isso. Por ora, importa saber que esse
princípio seria, a meu ver, o iluminador das identidades daquilo que estou
chamando de “quilombos virtuais”. O quilombo foi um tipo de comunidade em um específico lugar, no Brasil colonial e
imperial escravocrata, onde um agrupamento de humanos de maioria negra - alguns
índios e brancos pobres fugitivos - inaugurava um cenário com uma lógica
jurídica, política e cultural apartada da sociedade da qual se fugia. Eles tinham clareza sobre qual era essa sociedade: ela era escravista no sentido milenar tradicional,
ou seja, o escravo é sequestrado e seu corpo mantido em cativeiro no mundo real.
No nosso caso, precisamos identificar do que fugimos para determinar quem
somos. Tudo ficou mais iluminado, aos meus olhos, quando li o best seller Homo Deus. Ele tem, nas sua entrelinhas e nos seus silêncios, a omissão do
sofrimento em massa dos humanos do século vinte e um motivado pelo excesso e
velocidade abusiva da produção de informações e procedimentos em situação de
trabalho subordinado e vida controlada por sistemas panópticos. Este livro publicado pela Companhia das Letras divulga
para o senso comum a existência de três ideologias - ele chama de seitas - o
liberalismo, o humanismo e o dataísmo. Essa última ideologia é a do capital
cognitivo de ponta, ou ao menos de parte dele: nanotecnologia, biotecnologia,
robótica. Ele afirma que a robótica pode estar em um desenvolvimento que
produza a extinção da espécie homo sapiens. Reinterpretando ele, à luz da
tradição do pensamento crítico humanista, eu diria que os dataístas que são
fundamentalistas vão conseguir matar uma parte da humanidade, porque eles
dominam a crença coletiva na velocidade da expansão tecnológica e conseguem impregnar,
com essa religião, o princípio da celeridade. Mas eles não dominam os efeitos
disso. O autor do livro Homo Deus levanta esse problema: os dataístas não
dominam os efeitos da revolução que fazem. Para um enorme problema a solução é
simples. No caso, a velocidade que é imposta ao cenário do pensamento coletivo
é grande demais, esse pensamento está se fragmentando, se espatifando. Então,
nesse caso, o quilombo deve abrir seu território buscando a desaceleração do
pensamento. Precisamos pensar lentamente, ler menos e de um modo mais
selecionado, ter certeza sobre as palavras que usamos, trocar conversas sobre
elas. Precisamos usar palavras escolhidas e acordadas em seus significados
possíveis. Por exemplo: tem ou não tem esquerda? E se tem, quais são os seus
limites e suas configurações? E conversar calmamente. Essa seria a regra básica
na inauguração de um quilombo virtual, porque os quilombos precisam ser imunes
ao contágio pelas regulações das quais estão fugindo. O quilombo ou é uma ilha,
ou território simbólico cercado por muros e imunidades simbólicas, ou não é um quilombo.
Creio que todos os descendentes
de escravos brasileiros sempre carregaram quilombos em suas constituições
emocionais. Eu me entendo como nascida quilombola. Somos mais solitários, mais
intransigentes, irreverentes, ariscos.
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