Dos erros da esquerda - autocrítica feminista


Sei lá, mas sempre que houver o estado nacional construído pela ação dos poderes patriarcais e, portanto, pela história do capitalismo, a ideia de política de cotas para hipossuficientes políticos será instrumentalizada. Nessa longa história liderada pelos homens, a história das cidades antigas, depois a do império romano, depois a da idade média, depois a da era moderna com seus escravismos e invasões coloniais, os partidos políticos sempre foram erguidos pela guerra, pelo confronto entre os homens. A política de cotas para negros, mulheres, gays e deficientes físicos surgiu no interior desse tipo de domínio - em meados do século vinte - e foi permitida por gerência alçadas por poucas famílias bi ou multimilionárias mantidas sob a mais sólida tradição de controle masculino, controle esse -claro- sempre com a presença de algumas, poucas, mulheres dominadoras, dirigentes, e isso desde as cidades antigas. Talvez apenas em nações de enorme e radical separação entre o lugar do homem e o lugar da mulher - como nas tradições islâmicas mais violentas e fundamentalistas - não se pudesse ver mulheres dentro de cúpulas dirigentes. Nas igrejas judaicas os homens sempre foram separados das mulheres, estas ficando em mezaninos descentralizados da pregação. A política de cotas para hipossuficientes políticos foi erguida dentro dos Estados Unidos da América e de lá migrou para países de tradição colonial, como o Brasil. Migrou também, creio eu (não tenho essa informação) para uma Europa do euro, do mercado comum europeu, e de um feminismo que saiu das revoltas do maio de 1968 francês para confortáveis cátedras acadêmicas, para formação de conjuntos teóricos para gestão de estados nacionais saindo dos colonialismos cruéis para tentativas de projetos da socialdemocracia, todos fracassados diante da enorme e devastadora onda senil do neoliberalismo do final do século vinte. Não ignoro as tentativas feministas das mulheres com erudição herdada de Simone de Beauvoir, respeito toda essa tradição, nasci nela. Acho enormemente válido o caminho de novas contradições plantado por essas antepassadas de quem hoje precisa se insurgir na condição de mulher. Mas a história se move e as grandes bandeiras, as grandes religiões surgidas revolucionárias sempre acabaram sendo capturadas pelos "donos do poder" (sim, estou citando Raymundo Faoro, mas pensando seu estudo iluminando o mundo inteiro, até chegar nas grandes famílias da globalização neoliberal).
Só os concursos sem identificação de candidatos para os que selecionam, sem preparação de provas visando um determinado contingente a ser selecionado, só concursos com avaliação de valores universais e desejados pela opinião pública para o lugar a ser ocupado podem retirar de um grande grupo uma representação de um indivíduo desejado por todos para aquele lugar. Sendo um desses concursos os processos eleitorais, conforme recentemente falou a Dilma Rousseff. Registro, para pensar depois, que as mulheres expostas à condição de apedrejamento e que sobrevivem podem erguer novos caminhos de uma autocrítica bem rica em conteúdos. Ou podem tornar-se fantasmas de um passado fincado na memória delas como trauma. A ver. Claro, pensando eleições não como espaços de controle de mídia e de grandes capitais. Se o desejo é colocar mulheres em representações de poder em partidos ou instituições, bom, esse desejo é da base do partido? É das bases sociais dessas instituições? Se for, então que a base realize escolhas especificamente de nomes femininos para determinadas posições em paralelo com os homens. Se a base é machista, patriarcal, a cúpula do partido vai botar as mulheres mais aptas a serem subordinadas dessa cúpula. Ou então vai colocar as mulheres mais identificadas com éticas utilizadas por essa cúpula, como sempre ocorreu com mulheres a se destacarem dentro de formações patriarcais, mulheres matriarcas. "ahhh, mas a base social é machista, incluindo as mulheres". Bom, então o feminismo deve atuar na base social e não junto à cúpula do partido. Isso acaba sendo uma autocrítica minha, confesso. Quando fui feminista do PT eu atuava tentando o convencimento dos dirigentes e isso foi um trágico erro meu, a me conduzir a uma inevitável marginalização e necessário afastamento, como uma Cassandra, a sacerdotisa troiana vista como louca e que gerou o nome para um tipo de sofrimento psíquico especificamente feminino analisado tão bem pelos psicanalistas junguianos.
Por outro lado, a atuação junto à base social, das mulheres que me combatiam em Porto Alegre, naquela época de 1988, era apenas para faze-las massas apoiadoras do PT e das estratégias da esquerda da época, como foram mobilizadas as "Margaridas" (vinculadas à FETAG - uma federação de trabalhadores da agricultura) e que acabaram também se tornando "Marchas", no interior de uma intensa e orquestrada uniformização hegemônica dos movimentos de mulheres no mundo inteiro, durante o processo de consolidação neoliberal senil (toda uniformização destrói memórias, exceto a uniformização dos exércitos, ela própria uma memória de forte consolidação arquetípica). Não era com foco para criar nelas um ímpeto, uma curiosidade feminista insurgente e aberta a possibilidades fora do controle das gerências do projeto. Claro que sempre há feminismos brotando em qualquer um desses lugares, como certamente nascerão feminismos em ruptura com o hegemônico feminismo da Madonna, de Hollywood e da Rede Globo do "Saia Justa" e do "Amor e Sexo". O feminismo autêntico sempre coube dentro de meia dúzia de Vans (dizíamos Kombis, em 1980).
Vou resumir, provisoriamente: as feministas, os negros quilombolas e abolicionistas e os gays humanistas e democráticos, os indígenas pouco aculturados junto aos brancos, todos esses deveriam atuar fora dos partidos e fora dos financiamentos de grandes e médias empresas. Fora dos governos dos estados, municípios e União. Fora dos sindicatos. Poderiam participar dessas estrutura, mas apenas se conscientes da natureza patriarcal contaminante e pregnante dentro delas. Todos esses lugares de poder são dos homens brancos, ou que se pensam como tal. Ou de homens da etnia predominante nas elites do lugar. Ou de configurações de memórias permitidas pelas famílias das tradições dominantes dos lugares, com a participação coadjuvante de mulheres matriarcais (ainda que com os cabelos verdes ou azuis, tatuadas e com as pernas metidas em meias arrastão). As mulheres emudecidas, as etnias escravizadas, os refugiados, os hipossuficientes políticos são lugares dentro do mundo humano e de nada adianta querer tirar de dentro deles os indivíduos, um por um. Os lugares sempre estarão lá e, talvez, até crescerão em paralelo ao aumento de indivíduos que dele são protegidos, como troféus do mundo bem sucedido. Vide a gigantesca tragédia das prisões brasileiras, autênticos campos de concentração. E esse mundo é perverso, autofágico e genocida, vide a imagem perfeita da barbie - a boneca americana imposta ao mundo -que a Fernanda Lima integra com perfeição de uma androide do filme Blade Runner, no programa Amor e Sexo da Rede Globo.
Precisamos ser quilombolas e ganhar uma autonomia nunca tentada por nós. A guerra nunca foi tão mundial, nunca tão devastadora, tão cruel. Os históricos nazistas alemães riem, às gargalhadas, em seus túmulos.

versão um. sem revisão imagem encontrada no google pela busca "Fernanda Lima".

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