Dos erros da esquerda


Hoje resolvi imitar um amigo blogueiro que publica textos de um modo espontâneo, sem deixar num canto amadurecendo, sem esperar ter certeza, sem querer segurança em uma ideia já publicada por alguém  e já aceita. Costumo escrever assim, mas hoje serei mais audaciosa ainda. Vou dizer em público que um dos maiores erros da esquerda mundial - e da brasileira - foi aceitar a transformação do título acadêmico - da pós-graduação - de "doutor" em mercadoria para vender e distribuir no mercado, esse mercado das "commodities", dos produtos descartáveis, dos plásticos, das coisas sem importância decisiva. Mesmo tendo uma origem histórica patriarcal e elitista, o título de doutor foi construído na inauguração da Era moderna a partir de muito sofrimento de pessoas como Galileu e Nicolau Copérnico, por exemplo. Não sou doutora, e há algum tempo deixei de acreditar que isso poderia retirar autoridade intelectual à minha fala e escrita. Ganhei esse desprendimento depois de ler e ver uma profusão de futilidades e e inconsistências ditas e escritas por doutores (os com título e não a multidão de advogados e médicos, esses inclusos em outra tradição de uso da palavra "doutor") e, sobretudo, depois de me sentir terrivelmente abandonada diante do fracasso "tsunâmico" da esquerda brasileira e mundial. Só por isso, por orfandade absoluta, consigo agora afirmar que a adesão ao sistema de propinas e caixa dois pode ter sido um erro devastador do Partido dos Trabalhadores, provocado por uma espécie de emburrecimento da estrutura de produção de ideias no interior de uma  instituição que desde o início da modernidade havia sido inaugurada como  lugar de solução potente e eficaz dos problemas mundanos, a universidade, a Universidade Pública. Precisamos então pensar, e muito sobre o significado, o conjunto dos significados historicamente determinados, dessa palavra que perdeu sua capacidade de sustentar outra palavra chave, a República.

É isso, essa a ideia, o chute inicial. Aproveitem, reflitam e acrescentem novas ideias e relatos inteligentes e honestos ao que foi dito acima. Os doutores, se quiserem silenciem, como sempre fizeram quando um menor, um hipossuficiente em títulos falava algo incômodo, tanto faz agora. Registre-se um exemplo, para enriquecer o tema, de que o Luis Inácio Lula da Silva era um líder, um líder mundial e brasileiro, e a palavra líder sempre teve um conjunto de sentidos totalmente distintos  dos sentidos da palavra "doutor". E que, portanto, conferir a ele inúmeros títulos de "doutor honoris causa" foi, de certa maneira, um dos modos de construir sobre ele uma imagem deturpada, enfraquecê-lo, desarma-lo.

A saída do modelo aristocrático, machista e racista, de produção de saber, de linguagem permitida, de máquinas e tecnologias, modelo este reconfigurado na passagem do poder intelectual dos mosteiros e das igrejas, na idade média, para os novos padrões "científicos" da Era moderna via universidades, jamais poderia se dar pela simples e falsificadora transformação do nome - nome do lugar do saber - em mercadoria para consumo estético de uma fração de classes superiores e médias. Muito menos poderia se dar pela popularização - de fato populista - do uso do nome "doutor" como um enfeite de políticas afirmativas do Estado.

O saber, Saber com S maiúsculo, nasce, emerge, em lugares estranhos, incríveis, inéditos e desconhecidos dos poderes constituídos. Ele pode emergir e ser apreciado e entendido por uma elite no poder, pode virar linguagem e técnica usada pelos poderes instituídos, pode até ser desenvolvido por gente dessas elites, mas ele não pode ser contido em disciplinas limitadoras, redutoras de sua inviolável e pétrea capacidade de invenção. Na modernidade, a duras penas, pensadores construíram dentro da palavra "doutor" uma determinada validade e eficácia que nesse mundo pós-moderno e apocalíptico foi perdida. Da mesma forma, a ideia de "liderança", embora distinta da ideia de "doutor", jamais poderia ser manipulada por mecanismos de produção de mercadorias de baixo valor, ou de valor disciplinável. Há um saber, no corpo e na mente do líder - ou da líder, agora em tempos feministas - não apropriável por estruturas de controle social e produção de gestões de riquezas. É exatamente em uma insubordinação inédita que nasce o gesto de liderança.
 Pensemos de um modo inédito. Pensemos para passar.

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