Querida Zeferina,
Consegui, quem diria, começar a publicar
as cartas... A vó Nair dizia sempre “essa menina é inteligente”, a mãe parecia
ter inveja como se aquele dito fosse mesmo uma verdade a determinar grandes
destinos para mim, mas não para ela, que afinal tinha penado tanto para ter
seus filhos. Aquele positivismo do século dezenove produziu – ou permitiu que
vingasse – um feminismo brasileiro no qual se popularizou a ideia de encontrar inteligência
nas meninas. Algumas tinham essa sorte de alguém decidir dizer delas “alguma chance
lhe será oferecida, aproveite com presteza”. Pobre mãe, um dia entendi o tamanho
do carma carregado por ela, tanto que escrevi, já mais velha, um texto de menina para vê-la
sorrir: “Às vezes o mundo se agita”, começava assim e terminava dizendo “e se
às vezes o mundo se agita é que ele não conhece a bravura e a ciência, a lisura
e a eficiência da minha grande mamitita”. Eram, e ainda são, valores apreciados
por ela e todas aquelas moças de caligrafias perfeitas dos livros de poemas de
cada uma, nos quais todas depositavam uma lembrança, uma poesia copiada em
letras tão bem desenhadas a ponto de esconderem os medos das meninas, de
deixa-las parecendo dispostas a passar pela vida sem problema algum. Letras de bonequinhas
de luxo hollywoodianas, as moças inteligentes do tempo do Getúlio Vargas.
As mulheres têm filhos muitas
vezes por um desespero, como se elas tivessem organizando um exército, uma
trincheira. Ou então como se estivessem em uma corrida de revezamento com
bastões, para passar uma linhagem adiante com algumas chances não mais
possíveis para elas, mães. Sim, claro, há muitas mulheres que têm filhos porque
sentem – mais do que entendem – que isso é o que toda mulher deveria fazer. Mas
há as que os têm para renovar alguma esperança em vias de desaparecer.
Escutamos sempre que os homens adonaram-se das mulheres desde as cavernas
porque eram mais fortes e a humanidade nasceu covarde e violenta. Liamos isso,
as feministas de oitenta, do tempo de Lula como líder metalúrgico. E então os
homens garantiam serem mesmo seus os filhos delas e assim formavam dinastias em
torno das patrilinearidades, os filhos homens levando adiante os sobrenomes dos
pais, que é como ainda é, embora já não seja mais obrigatório por lei, ao menos
pela lei escrita. Mas não colocar o nome do pai no fim do nome do filho é algo
que talvez não passe pela cabeça de muitas seguidoras do feminismo de dois mil
e dezesseis, o da Madonna e da Meryl Streep. Pelo menos não ainda. Mesmo assim muitas jogaram, e jogam, todas as
fichas nos filhos, como se as suas possibilidades ali se bifurcassem em projeções
e em pequenas fugas ocasionais, limitadas, com territórios e prazos estreitos
mesmo para as mais feministas.
Isso está nos livros de história
sobre o escravismo brasileiro, onde – para determinadas situações – um filho do
dono poderia promover proteção. É isso, Zeferina? A amante, a concubina, a
amásia, a outra mulher e outra família, dentro da qual estariam meninos e
meninas a terem menos possibilidades do que os filhos da esposa oficial, mas
com algum nível de proteção. Ao menos para os mais branqueados, os que poderiam
passar por brancos, não é? Nunca saberei de Zeferina como foi ter os filhos “brancos”
apoiados e os filhos “negros” rejeitados. Ela é morta, não fala. Os mortos só
ouvem. Então eu descendo de um filho que passou por branco e aqui estou, uma
menina reconhecida como inteligente em 1964, ano do golpe militar no Brasil.
Até hoje se vê, olhando em volta, filhos que maridos de umas têm com outras e
suas mães, as concubinas, os veem receber alguma proteção.
Um amigo budista falou sobre o necessário
respeito devido à intuição humana. Fico pensando ser isto uma memória coletiva
manifestada nos olhares de cada um, como se fosse uma imagem colada no real, um
ato de ver o óbvio. Disso diz o ditado popular “ver com o coração”. Mas isso
advém de uma memória coletiva construída pelos ordenamentos sociais, que nada
têm de espontâneos. E essa tal intuição acaba por nos oferecer a capacidade de
julgamento sobre o que vemos, na relação entre nós mesmos e o mundo exterior
aos nossos corpos. A intuição diz “faça isso”, “não faça agora”, “escolha
imediatamente”, “pare”. A intuição é um saber do mundo que ocorre no olhar de
cada um. Mas eu entendo que as mulheres conseguiram chegar ao feminismo dada
uma capacidade, nascida nelas mesmas, da sua experiência coletiva de sexo
submetido aos homens que sempre mandaram. Isso significa que elas não podiam
decidir e viviam em ambientes nos quais não se podia reclamar dos homens.
Suponho então que ali havia uma memória coletiva se impondo como tradição sobre
o “faça isso”, “não faça agora”, “escolha imediatamente”, “pare”. Decorre que as
imagino tecendo um clandestino e perigoso universo feminino contra-intuitivo,
ou seja, “é errado fazer isso, mas é o que eu quero”.
Falo do feminismo sem nome, de
quando ele não é chamado assim. Não aquele que se autonomeia e sabe dizer
precisamente o que é certo e o que é errado para as mulheres no mundo civil e
político. Não o feminismo que explicita, determina, indica. Não o feminismo que
fala. Este se tornou um universo regrado e escrito, falado aos borbotões e
tensionado por referenciais exteriores aos corpos das próprias mulheres. O
feminismo falado se descolou tanto da intuição milenar quanto de uma atividade
contra-intuitiva rebelde. Acredito que o nascimento do primeiro feminismo
possível, na história da humanidade, se deu em um dia – lá nos tempos muito,
muito antigos – em silêncios e formações de linguagens iniciais em padrões
contra-intuitivos experimentados por mulheres diferenciadamente audaciosas. E
penso que ele nasce e ressurge todos os dias nesse mesmo lugar, exterior ao
mundo controlado pelos homens, porque –afinal de contas- vivemos ainda em um mundo
controlado pelos homens e, diga-se de passagem, talvez o mais violento de toda
a história humana. Penso também que ele, o feminismo, só sai daí em ocasiões
onde se manifesta como confronto, ao menos ainda hoje. Não raro confronto entre
mulheres. Decorre ser a exigência de solidariedade feminina irrestrita, essa sororidade normatizada pelo feminismo
falante um impedimento a mais para as falas desse feminismo contra-intuitivo
originário, esse feminismo que nasce todos os dias em lugares de mando
masculino.
Eu tive uma fama, na minha
família, de ter dito com quatro anos de idade “mas como é que eu quero”, depois
de um longo debate sobre uma proibição a mim dirigida. E meu pai seguiu falando
até os seus oitenta anos que minha vida tinha sido regrada por essa afirmativa.
Penso ser essa ideia uma contra-intuição feminista erguida através dos milênios.
Penso que ela só ocorre em meninas julgadas inteligentes por seus pais.
Me ajude a pensar, Zeferina. Eu
me sinto muito só.
versão um. sem revisão. foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti (mulher cubana)
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