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O principal problema em
uma guerra é sempre o total desentendimento intelectual das partes em conflito,
seja em que momento histórico ela ocorra, na história da humanidade. Salvo
algumas guerras muito localizadas e particulares, como entre reinos na idade
média europeia, sobre as quais não conheço quase nada, mas sei que se davam às
vezes por capricho de linhagens de nobres, quando as batalhas eram
interrompidas para descanso e festas, prosseguindo posteriormente, dentro de um
código de conduta acordado entre os inimigos. Fora esse tipo de acontecimento,
as guerras sempre foram o uso da violência direta para matar os soldados do
exército inimigo; a falta total de um mundo jurídico qualquer a regular as
relações entre as partes em litígio, exceto as regras acordadas sobre limites
da violência exercida sobre prisioneiros.
Não estudei o assunto “guerra”, mas tenho a
impressão de que as grandes guerras mundiais, a primeira entre 1914 e 18 e a
segunda de 1939 a 45, organizaram a prática da guerra de um modo disciplinado
por muitas regras acordadas entre as partes. Tínhamos então um cenário de
guerra, com toda uma indústria mundial erguida para alimentá-lo. A primeira
guerra tendo como base a norma de trincheiras definidas, locais de guerra, onde
morriam homens às pencas, e o avanço da guerra era julgado pelo número de mortos,
mais do que por alterações em conquistas de territórios. Já a segunda guerra
mundial aconteceu em inúmeros cenários, tanto geográficos quanto políticos,
tendo todo um histórico dos dramas de sua evolução – principalmente os campos
de concentração – até encontrar seu final nas bombas atômicas de Nagasaki e Hiroshima.
De lá, 1945, até meados de 2008, a ideia de “grande guerra mundial” era pensada
como algo terrível e apocalíptico, a delimitação do assunto impulsionando uma
profusão de documentários e filmes sobre o chamado holocausto, algo que não
deveria nunca mais ser vivido pela humanidade. Passamos a viver em um mundo
onde os discursos visíveis e validados pelas forças políticas difundiam a ideia
de que jamais deveria acontecer uma “terceira guerra mundial” porque se
ocorresse poderia ser a última, dado o poder destrutivo em armas acumulado pela
indústria bélica de todo o planeta. Einstein havia falado que a quarta guerra
mundial teria por armas os arcos e as flechas, sinalizando que uma terceira
guerra não evitaria o fim de um mundo moderno, construído desde 1500, pelas
caravelas, as primeiras armas de fogo, o começo dos burgos e das novas ideias
comerciais e industriais.
Não sei dizer em que momento exato começou
essa nova guerra mundial na qual estamos enfiados e sofrendo de modos
indescritíveis (ainda, mas já começamos a falar sobre isso), mas posso afirmar
sem receio que a expressão “guerra mundial” tem sido proibida pelas mídias
grandes, pelas grandes gerências dos países mais investidos de poder, pelos
donos das grandes empresas mundiais e grandes fortunas. O grupo hegemônico,
liderado pelo Capital financeiro e suas articulações políticas a quem podemos
referir – provisoriamente – como encabeçados pela candidatura Hilary Clinton,
narra todos os acontecimentos bélicos do mundo atual, em suas grandes mídias,
mas se recusa terminantemente a agrupar todo o conjunto e identificá-lo como
uma grande guerra mundial. Ao contrário, esse grupo aponta o que seria um “risco
de guerra” e dirige o dedo acusador para a face de seus inimigos, que hoje e
aqui vamos – também provisoriamente – referir como sendo Putin, Trump, a
vitória do Brexit, o gordinho coreano, e, claro, as organizações bélicas islâmicas
(desde que não sejam as que a CIA articula ou investe). E tem mais gente nessa
lista de inimigos da turma da Hilary Clinton (do Obama), essa lista só cresce
desde o onze de setembro de 2001. Tem um pessoal nesta lista que sempre esteve
lá, desde os nacionalismos libertadores latino-americanos, de meados do final
do século dezenove até meados do século vinte, até os recentes governos de
Lula, Dilma e seus aliados nos países vizinhos. Há quem queira, apressadamente,
reconhecer e agrupar toda essa gente em uma trincheira “anti-Clinton e seus
aliados”, tentando recuperar uma forma e uma energia semelhante à segunda
guerra mundial. Estes não conseguem admitir a hipótese de um novo tipo de
guerra mundial, inédito, de múltiplas facetas, lógicas e cenários mutantes. É
aqui que reside a ausência sentida de uma esquerda mundial (e brasileira) capaz
de descrever essa terceira guerra mundial, sem recorrer a modelos permitidos
pelas classes dominantes, elites no poder, gerências de capital hegemônico,
seja o nome que se quiser dar aos que mandam nos exércitos mais poderosos do
Planeta Terra. É uma guerra inédita e ela está matando refugiados, migrantes,
pobres, presidiários, velhos, mulheres e crianças, todos indefesos.
Em um grupo fechado de
discussões no facebook, encontrei uma publicação da qual faço este recorte: "Relatório
da ONG Oxfam aponta que os seis homens mais ricos do Brasil possuem uma fortuna
equivalente ao registrado pela metade da população mais pobre do país, cerca de
100 milhões de pessoas; na lista dos mais ricos estão o sócio da Ambev, Jorge Paulo
Lemann, o dono do banco Safra, Joseph Safra, outros dois sócios da Ambev Marcel
Hemann Telles e Carlos Alberto Sicupira, o cofundador do Facebook, Eduardo
Saverin, além do herdeiro das Organizações Globo João Roberto Marinho; fortuna
acumulada por estes empresários chega a US$ 79,8 bilhões; em nível mundial,
oito pessoas acumulam a mesma riqueza que a metade mais pobre da população,
cerca de 3,6 bilhões de pessoas" (Trecho de postagem no grupo MEU BRASIL
BRASILEIRO, de Paulo Timm). No mesmo dia recebi um compartilhamento de uma
entrevista feita por Marcelo Coelho para a Folha de São Paulo, com o
intelectual brasileiro Jessé Souza, presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada), vinculado ao Ministério do Planejamento, Orçamento e
Gestão, e doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha),
publicada em dez de janeiro de 2016. Nesta entrevista o sociólogo Jessé critica
parte dos intérpretes atuais de Raymundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda e
Roberto DaMatta, a parte que atua dentro das articulações do PSDB, e afirma que
essa turma ligada ao Fernando Henrique Cardoso vê o Brasil dentro de uma
espécie de “complexo de vira-lata”, construído por conceitos tais como o de patrimonialismo. Jessé entende que o
problema fundamental do Brasil é o mesmo no restante do mundo: a formação de um
exército de excluídos do uso das
riquezas produzidas pela economia moderna e contemporânea. Penso então, salvo
engano, que Jessé Souza é da turma que sonha e defende algum tipo de
distribuição paulatina de renda, projeto central dos governos Lula e Dilma.
Mas eu entendo que não é um problema
de distribuição de renda. Se esses oito donos da mesma riqueza que é usufruída por
perto de quatro bilhões de humanos fossem desapropriados e sua riqueza
distribuída, ela desapareceria como sal na água. É um problema de organização
da sociedade, do modo como as pessoas e as coisas são feitas e envolvidas em
engrenagens de uso, circulação e modificação. E os quatro bilhões de humanos pobres não são excluídos, ao contrário, eles integram o
modelo como parte de um único mecanismo. Toda
a lógica dos governos do Lula e da Dilma era baseada em aceitar o mesmo modelo
de organização planetária que hoje mergulha nessa guerra mundial que não pode
ser falada, não pode ser descrita como tal. Somos proibidos de falar sobre esse
fim de mundo no qual estamos mergulhados e precisamos de líderes que tenham
coragem de fazê-lo: falar sobre a grande guerra mundial atual. Se a esquerda
quer reafirmar o Lula e/ou a Dilma como líderes nacionais, ela precisa parar de
ser obediente às lógicas dos grupos poderosos mundiais, precisa abandonar o
discurso impotente e subalterno da “distribuição progressiva de renda”, um
discurso que protege este capitalismo senil e apocalíptico.
Se o Lula e a Dilma querem mesmo
nos ajudar, precisam ter a coragem necessária para falar sobre essa novíssima
forma de guerra mundial. Uma guerra de explosões de barbáries, fugas em massa,
bombardeios e destruição de cidades inteiras, morte pelo frio de refugiados,
mortes de fome, mortes de sofrimentos extremos por perda de direitos de
sobrevivência mínima, mortes por tortura, feminicídios, abandono de crianças e
velhos, rebeliões em presídios, esquartejamentos, degolas, falta de água, de
salários, de comida. E se eles não têm intelectuais que, por meio de um
consenso de esquerda, digam para eles o que devem dizer, bom, então eles devem
começar a falar com suas próprias vozes, eles mesmos, os indivíduos que são, e
dirigirem-se diretamente ao conjunto dos brasileiros. É isso o mínimo que um
líder pode e deve fazer, caso se pense como tal.
versão um. sem revisão. foto: Farol. Luiz Eduardo Robinson Achutti, do blog "A vida como ela é".
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