Querida Zeferina - carta onze - como e quando vendemos a alma ao diabo


Querida Zeferina,


O Mal é burro, no fim das ilusões sobre ele: “como puderam nos fazer tanto mal?” fica sendo a sua lembrança. O Mal, esse com eme maiúsculo, é o diabo, um deus a ser vencido, disposto à vingança, a maltratar muitos viventes, à guerra. O Mal é uma doença simples que quando é novidade, não tem antídoto. Assiste o sofrimento da maioria dos seres vivos se espalhando diante de seus olhos e justifica dizendo que não há outro caminho. E o Mal sabe que mente e os humanos que se deixam contaminar pelo Mal sabem que ele mente. Pode acontecer de se passarem mil anos sombrios, mas quando nasce a flor-de-lótus, a luz, a beleza, todo o mundo vê e o Mal passará a ser contado como um deus vencido, “aqueles tempos sombrios”. Eu sou humana, Zeferina, uma fêmea sapiens, e só posso entender a nossa história, a do gênero humano, inventada nesses setenta mil anos alcançados pela minha consciência, não posso falar sobre uma hipotética história de uma “nova espécie não mais sapiens”. Só humanos capturados pelo Mal poderão falar em “novas espécies mais inteligentes que os sapiens”, porque eles são sapiens e estão mentindo sobre quererem ver todos iguais a eles, todos seus descendentes, mortos em uma guerra. São neonazistas. Uber nazistas, ou os mesmos nazistas de sempre, agora disfarçados de radicais libertários, programadores e pesquisadores bem sucedidos. Nós, humanistas republicanos, entendemos assim: a beleza está nas formas que alegram, dão prazer, acalmam, nos fazem sentir paz, desejo de “mais daquilo” ou simplesmente o encontro de um ócio, um soninho, um sonho bom. Então, uma hora o Mal será vencido e serão realizadas festas, comemorações, danças e cantorias para dizer “viva! O Mal maior sumiu, finalmente”. E nesse momento alegre serão contadas histórias de como o grande tirano foi derrubado, como foi derrotado e por quem. O Bem, assim mesmo com bê maiúsculo, são os heróis e eles poderão deixar de ser um sujeito super forte e único, um super humano, porque afinal já sabemos que esses caras acabam sendo ou ditadores ou apenas personagens de um filme caro. Mas não precisamos ser ingênuos e tecer teorias enfadonhas para dizer que “oh, não queremos mais os heróis”, “queremos ser nós mesmos, sem deuses”. Bobagens, porque desde aí, se conseguirmos matar o mal, ou ao menos prendê-lo em uma tumba, mesmo sendo só nós mesmos, pensaremos “oh, somos heróis!” e é isso. E os bons momentos serão os nascimentos, os renascimentos, o fim das guerras, a prisão do Mal e nós mesmos. Viva nós mesmos!
Mas para chegar ao ponto em que o Mal é preso ou destruído, não basta evitar praticá-lo ou não se deixar contaminar por ele, porque alguém precisa ficar vivo para contar a história e depois juntar outros para ir lutar contra o mal. Então há que se vender a alma ao diabo, em alguma medida, quando tudo é escuridão e o deus sumiu. Sim, o deus não precisa ser um velho barbudo sentado numa nuvem branca no céu azul. Numa cadeira de rei. Pode ser um monte de deuses de tudo quanto é sexo e variações misturadas que andam chamando de gêneros, tipo misturas de os e de as que uns aqui, nesse tempo sem luz do Mal absoluto, chamam de xis. Pode ser um monte de divindades entre animais e coisas humanas. Tanto faz. Eu queria escrever “uarever”, gosto tanto dessa fala do tanto faz em inglês, o tal “uarever”, mas como estão querendo acabar com o português brasileiro e criar um dialeto de inglês e português misturado, e ainda um português só falado, com gírias e sem uma escrita cheia de significados complexos, eu peguei nojo e estou me esforçando para não falar nada em inglês, nem uarever, porque afinal, partir para uma língua mutante e definida por uma oralidade volátil e desnacionalizada é mesmo o reino do Mal. Mas não vou falar em línguas hoje.
“A difamação de virtudes como o cuidado, a compaixão e a generosidade vai de mãos dadas com a crença, especialmente entre os pobres, de que ganhar é a única coisa que importa e de que ganhar – por qualquer meio necessário – é, em última instância, a coisa certa”, escreveu Achille Mbembe, um historiador africano divulgado em 2017 no facebook. Não concordo, não acho que é “especialmente entre os pobres”. Os pobres falam abertamente sobre isso, talvez defendam essa ideia de um modo ingênuo, sorridente, piadista. Mas eles acabam por se ajudar, não sobra outra escolha: cai o telhado de um numa chuva, todo mundo ajuda; outro foi abandonado pelo cônjuge, todo mundo releva e não faz drama, o trágico perdoado. Os pobres perdoam seus presidiários. O pobre não tem quase nenhuma chance de vender a alma ao diabo. Ou, por outra, ele vende a alma ao maldoso quando cai numa cachaça, gasta o dinheiro do gás na partida de futebol, entra em um romance que é certo que vai dar errado. Mas não passa disso, via de regra. Quem vende caro a alma ao diabo é aquele sujeito que pode conseguir melhorar de vida, deixar de ser tão pobre, conseguir a alforria. É sobre isso que quero falar, sobre conseguir a alforria. Mas o que era a alforria no Brasil de 1870? E o que era a alforria no Brasil de 1600? O diabo de 1600 creio ter sido mais poderoso do que o das vésperas da lei do ventre livre, 18 anos antes da abolição. Imagino que a venda da alma ao diabo em 1600 era muito mais necessária para a sobrevivência do que em 1870. As alforrias em 1600 deveriam ser muito raras e para conseguir sofrer menos o esquema provável era o mesmo narrado por Primo Levi, sobre o campo de concentração na Alemanha onde para ganhar comida o prisioneiro precisaria estar disponível a delatar, torturar, queimar e fazer os serviços de limpeza dos corpos. Levi contou só terem sobrevivido os que venderam de alguma maneira a alma ao diabo. Deve ter sido assim para o início do acontecimento “alforrias”, no Brasil de 1600. Depois, em 1870, já havia espaços de dignidade mais significativos, a julgar pelas ações de liberdade, os processos judiciais onde escravos provavam ter direito a alforria e eram representados por advogados abolicionistas. Ali já havia a presença de alguma alma, portanto algum deus, ou deuses e deusas, cenários de direitos padronizados, leis a protegerem todos os capazes de construir esperanças para si e os seus. Contratos, vamos dizer assim. "Você trabalhou a vida inteira para mim, dedicado, confiável, você é humano como eu, dá pra ver, merece a alforria, ter sua vida em família”. Já havia, em 1870, a ideia de proteção aos escravos velhos e essa ideia – proteger a velhice – está sendo destruída agora, em 2017.
Fico me perguntando sobre o quanto o Harari, o autor israelense do livro Homo Deus, vende sua alma ao diabo, quando fala sobre a alma humana e quando fala que: "Na essência, nós humanos não somos diferentes de ratos, golfinhos ou chipanzés. Como eles, tampouco temos alma. Como nós, eles também têm consciência e um complexo mundo de sensações e emoções. É claro que todo animal tem traços e talentos exclusivos. Os humanos têm suas aptidões especiais. Não devemos humanizar os animais desnecessariamente, imaginando que são apenas uma versão mais peluda de nós mesmos. Isso não só configura uma ciência ruim, como igualmente nos impede de compreender e valorizar outros animais em seus próprios termos". Na página 135. O Harari retira a alma dos humanos e continua a não aceitar esse grande conceito para os outros animais. Não havendo alma alguma no mundo real, bom, então tudo são objetos, pois tudo o que a palavra “alma” ilumina é o mundo exterior ao objeto manipulável pelo ser humano, desde minerais, passando por outros animais e chegando ao corpo humano interferido pela química, a biologia e a medicina.  No final do livro, o Harari vai perguntar se não deveríamos acreditar na vida como algo além dos algoritmos, mas será apenas uma manobra de engenharia de linguagem, talvez para registrar a ideia de que os nazistas têm sentimentos, que lhes sobra uma alma, talvez mais valiosa do que a alma de todos os humanos sapiens e os outros animais que já a tiveram proibida desde o início do livro.
Descobri o título desse capítulo ao ler uma carta iniciada em 2012, assim: “Desde o dia em que fugi de Porto Alegre estive mergulhada em um susto permanente, euforia camuflada pela astúcia atenta de um estrangeiro fugitivo. Somente hoje senti a emoção consolidada de estar morando em uma cidade pequena de interior, quando voltava quase à noite pelas ruas vazias, um ou outro voltando também, pequenas ruas fluindo em direção à praia, calma e cheiro e barulhos de mar lá longe e tão perto. Estou ficando menos maluca do que estive lá, durante quase vinte anos. Como se um espírito de angústia, um estado de alerta, estivesse evaporando de meu corpo, aos poucos. Tenho variações de medo, do dia até à noite, como as mudanças de cor nos joelhos contundidos das crianças, nos olhos espancados das mulheres e dos prisioneiros. O roxo escuro, inchado, vai se transformando em espaços amarelados e fica parecendo haver uma possibilidade de que aquilo deixe de acontecer e desapareça. Tudo o que aconteceu comigo, nas margens do Guaíba, conosco, com toda a gente comum e, sobretudo, com os líderes de acontecimentos dissidentes; o assédio moral em todos os lugares, na política e no trabalho, os homens atacando mulheres subversivas tanto no Islã como no interior de qualquer ponto geográfico e político do Brasil da década de noventa, tudo deve ter contado, em algum sentido, com a nossa própria participação. Nós migramos em direção ao lugar da bruxa, do louco, do decaído; nós aceitamos a representação. A pessoa participa do sofrimento que lhe foi proposto. Sente culpa pela derrota. O homo sacer, do pensador Giorgio Agamben, o sujeito escolhido para o sacrifício atola, não sai do lugar, não vai embora”. Em 2012, eu desejava que em noventa os dissidentes tivessem sido capazes de fugir.
Não é uma questão de falta de informação, Zê, de engano. Há uma entrega ao estilo Fausto, do Goethe, e no caso brasileiro dos dramas atuais ela foi realizada desde 1990 e atinge todos os que tentaram "se dar bem" no hiperconsumo do início da revolução tecnológica da informática. Lá, desde setores da tal esquerda (de todos os tipos de agrupamento), passando por uma grande parte da juventude com 10 anos de idade em 1990, que cresceu nessa lenha de se entupir de imagens e mercadorias voláteis, e chegando nas massas pobres e em pânico que adicionaram o fundamentalismo evangélico como imagem de potência politica e catártica, todos esses setores aderiram a uma linguagem mentirosa, perversa, cheia de silêncios e falsificações. Então, já lá, todos sabiam que "a cada quatro pessoas mortas pela polícia três são negras". Todos os que sabem ler sabiam. Então o direito penal alimentador de presídios e polícias foi robustecido lá. Houve uma destruição em massa, no campo da ética, a partir de final da década de oitenta, no Brasil. Podemos, então, distinguir dois acontecimentos distintos para a situação “vender a alma ao diabo”: o tipo dos que obedeceram a tiranos para salvar suas vidas, nos campos de concentração alemães, na segunda guerra mundial, ou os escravos das senzalas brasileiras – nos séculos XVII, XVIII e XIX - que se acomodaram em relações perversas para conseguirem alforrias ou algum tipo de proteção, são um tipo de “venda da alma ao diabo”, para sobreviver dentro de um cenário de tortura emocional e física praticada contra toda a sociedade civil. Nesses mesmos cenários, de inauguração de uma guerra ou um genocídio, há o tipo de acontecimento dos que fogem para ficar entre os torturadores, também para sobreviver, mesmo não sendo o próprio Mal, não sendo o próprio diabo, mas para sobreviver entre os que mandam, os que tomam de assalto os governos, os que gerenciam as máquinas de adestramento da sociedade civil, os que detêm o controle sobre as armas e os exércitos.  Nem lembro dos motivos alegados pela Hannah Arendt para o que ela definiu como sendo a banalização do mal. Talvez eu discorde dela, talvez o Mal não seja banal. Talvez a gente precise entender e perdoar. Entender que lá em noventa foram produzidos discursos de aceitação do mal, de integração no modelo que estava sendo criado ali, naquela cena da queda do muro de Berlim, mas por medo, por covardia, e não por maldade da esquerda surgida no fim da União Soviética.  “Não há propriamente um 'fascismo’ agora, ele aconteceu no furor do consumismo, lá no Lula paz e amor desenvolvimentista e conciliador. Lá implantaram os coach e a neurolinguagem. Lá era um fascismo, dentro da esquerda e da direita, todos querendo ter um carro enorme de tração na quatro rodas, uma geladeira de inox, com enormes compartimentos, falar inglês, viajar para Europa e Miami todo ano, ser chique e vitorioso. Isso era fascismo e isso chegou na produção de consumo da tal classe média nova e baixa, que não cresceu para ser política, mas para ser massa de manobra. A tal esquerda bem sucedida vendeu a alma ao diabo em 1990 e a população foi junto. O golpe sobre a Dilma foi só a cereja do bolo”, escrevi no facebook, dias atrás.
Como se vende a alma ao diabo? Indo aos poucos, aparando arestas aqui, aumentando arestas ali, ou mesmo ficando quietinha num canto de um emprego público. Eu penso ter vendido um pedacinho da alma ao diabo quando aceitei ficar viva e silenciar, apostar em uma saída individual e, mesmo com sofrimentos de longa duração, chegar a uma aposentadoria integral, sair na "lista de Schindler" dos aposentados federais de antes do golpe e da "reforma" da previdência. Há um passo a passo na fórmula do Fausto, do Mephisto. O problema é: quem vende a alma ao diabo sabe que está fazendo isso e, ao fazer o pacto, decide por um caminho quase sem volta. A população que aderiu a rituais catárticos, fundamentalistas, como grandes festas e shows, grandes programas de reality show na televisão, grandes resultados de pesquisas eleitorais, no momento em que se deparar com o fim do sonho e da catarse, quando ficar de frente com o cenário do “campo de concentração”, dos modos de destruição de populações inteiras por meio de um etnocídio, poderá desistir das ilusões e se reagrupar em movimentos defensivos. Mas a parcela que aderiu a estratégias de participação em ambientes de elite só poderá sair da cena dominada pelo grande Mal, pelo diabo, se migrar, novamente aos poucos, para linhas de ação abolicionistas, quando a elite sapiens republicana começar a abandonar o robô Darth Vader e tentar se reinventar como gerência do que sobrou da sociedade civil depois da guerra.

Por esses motivos, Zeferina, eu não desprezo as manifestações do Ciro Gomes, ou de qualquer outro membro de uma elite capaz de algum discurso visível no campo abolicionista, defensor de alforrias, apto a disputar o poder. Por essas razões valorizo as possibilidades da fala do Lula de agora, não mais o do Duda Mendonça. Para entender as diferentes formas de vender a alma no passado que engendrou o estado de exceção é preciso perdoar e colocar-se em posição compassiva, generosa. Do contrário, até por dentro de falas libertárias e radicais os mais apavorados poderão estar tecendo novos pactos com novos estados policiais. O Mal é o mais bem sucedido inventor de novidades. O Diabo aparece como o revolucionário mais eficiente, o discurso mais exato, mais competente (como falava a Chauí, em oitenta). Lamento ter escrito essa última frase, eu queria que não fosse assim. Precisamos pensar sobre a ideia de “assalto”, de revolução como uma tomada do poder central em uma sociedade civil. Acho que para romper com o Diabo precisamos deixar de querer vencer totalmente.

versão dois         foto: Daisy Weston  

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