O Mal é burro, no fim das ilusões
sobre ele: “como puderam nos fazer tanto mal?” fica sendo a sua lembrança. O
Mal, esse com eme maiúsculo, é o diabo, um deus a ser vencido, disposto à
vingança, a maltratar muitos viventes, à guerra. O Mal é uma doença simples que
quando é novidade, não tem antídoto. Assiste o sofrimento da maioria dos seres
vivos se espalhando diante de seus olhos e justifica dizendo que não há outro
caminho. E o Mal sabe que mente e os humanos que se deixam contaminar pelo Mal
sabem que ele mente. Pode acontecer de se passarem mil anos sombrios, mas quando
nasce a flor-de-lótus, a luz, a
beleza, todo o mundo vê e o Mal passará a ser contado como um deus vencido,
“aqueles tempos sombrios”. Eu sou humana, Zeferina, uma fêmea sapiens, e só posso entender a nossa história, a do gênero humano, inventada nesses
setenta mil anos alcançados pela minha consciência, não posso falar sobre uma
hipotética história de uma “nova espécie não mais sapiens”. Só humanos
capturados pelo Mal poderão falar em “novas espécies mais inteligentes que os
sapiens”, porque eles são sapiens e estão mentindo sobre quererem ver todos
iguais a eles, todos seus descendentes, mortos em uma guerra. São neonazistas.
Uber nazistas, ou os mesmos nazistas de sempre, agora disfarçados de radicais
libertários, programadores e pesquisadores bem sucedidos. Nós, humanistas republicanos,
entendemos assim: a beleza está nas formas que alegram, dão prazer, acalmam,
nos fazem sentir paz, desejo de “mais daquilo” ou simplesmente o encontro de um
ócio, um soninho, um sonho bom. Então, uma hora o Mal será vencido e serão
realizadas festas, comemorações, danças e cantorias para dizer “viva! O Mal maior
sumiu, finalmente”. E nesse momento alegre serão contadas histórias de como o
grande tirano foi derrubado, como foi derrotado e por quem. O Bem, assim mesmo
com bê maiúsculo, são os heróis e eles poderão deixar de ser um sujeito super
forte e único, um super humano, porque afinal já sabemos que esses caras acabam
sendo ou ditadores ou apenas personagens de um filme caro. Mas não precisamos
ser ingênuos e tecer teorias enfadonhas para dizer que “oh, não queremos mais
os heróis”, “queremos ser nós mesmos, sem deuses”. Bobagens, porque desde aí,
se conseguirmos matar o mal, ou ao menos prendê-lo em uma tumba, mesmo sendo só
nós mesmos, pensaremos “oh, somos heróis!” e é isso. E os bons momentos serão
os nascimentos, os renascimentos, o fim das guerras, a prisão do Mal e nós
mesmos. Viva nós mesmos!
Mas para chegar ao ponto em que o
Mal é preso ou destruído, não basta evitar praticá-lo ou não se deixar
contaminar por ele, porque alguém precisa ficar vivo para contar a história e
depois juntar outros para ir lutar contra o mal. Então há que se vender a alma
ao diabo, em alguma medida, quando tudo é escuridão e o deus sumiu. Sim, o deus
não precisa ser um velho barbudo sentado numa nuvem branca no céu azul. Numa
cadeira de rei. Pode ser um monte de deuses de tudo quanto é sexo e variações
misturadas que andam chamando de gêneros, tipo misturas de os e de as que uns
aqui, nesse tempo sem luz do Mal absoluto, chamam de xis. Pode ser um monte de
divindades entre animais e coisas humanas. Tanto faz. Eu queria escrever
“uarever”, gosto tanto dessa fala do tanto
faz em inglês, o tal “uarever”, mas como estão querendo acabar com o
português brasileiro e criar um dialeto de inglês e português misturado, e
ainda um português só falado, com gírias e sem uma escrita cheia de
significados complexos, eu peguei nojo e estou me esforçando para não falar
nada em inglês, nem uarever, porque afinal, partir para uma língua mutante e
definida por uma oralidade volátil e desnacionalizada é mesmo o reino do Mal. Mas não vou falar em línguas
hoje.
“A difamação de virtudes como o
cuidado, a compaixão e a generosidade vai de mãos dadas com a crença,
especialmente entre os pobres, de que ganhar é a única coisa que importa e de
que ganhar – por qualquer meio necessário – é, em última instância, a coisa
certa”, escreveu Achille Mbembe, um historiador africano divulgado em 2017 no
facebook. Não concordo, não acho que é “especialmente entre os pobres”. Os
pobres falam abertamente sobre isso, talvez defendam essa ideia de um modo
ingênuo, sorridente, piadista. Mas eles acabam por se ajudar, não sobra outra
escolha: cai o telhado de um numa chuva, todo mundo ajuda; outro foi abandonado
pelo cônjuge, todo mundo releva e não faz drama, o trágico perdoado. Os pobres
perdoam seus presidiários. O pobre não tem quase nenhuma chance de vender a
alma ao diabo. Ou, por outra, ele vende a alma ao maldoso quando cai numa
cachaça, gasta o dinheiro do gás na partida de futebol, entra em um romance que
é certo que vai dar errado. Mas não passa disso, via de regra. Quem vende caro a
alma ao diabo é aquele sujeito que pode conseguir melhorar de vida, deixar de
ser tão pobre, conseguir a alforria. É sobre isso que quero falar, sobre
conseguir a alforria. Mas o que era a alforria no Brasil de 1870? E o que era a
alforria no Brasil de 1600? O diabo de 1600 creio ter sido mais poderoso do que
o das vésperas da lei do ventre livre, 18 anos antes da abolição. Imagino que a
venda da alma ao diabo em 1600 era muito mais necessária para a sobrevivência
do que em 1870. As alforrias em 1600 deveriam ser muito raras e para conseguir
sofrer menos o esquema provável era o mesmo narrado por Primo Levi, sobre o
campo de concentração na Alemanha onde para ganhar comida o prisioneiro
precisaria estar disponível a delatar, torturar, queimar e fazer os serviços de
limpeza dos corpos. Levi contou só terem sobrevivido os que venderam de alguma
maneira a alma ao diabo. Deve ter sido assim para o início do acontecimento
“alforrias”, no Brasil de 1600. Depois, em 1870, já havia espaços de dignidade
mais significativos, a julgar pelas ações de liberdade, os processos judiciais
onde escravos provavam ter direito a alforria e eram representados por
advogados abolicionistas. Ali já havia a presença de alguma alma, portanto
algum deus, ou deuses e deusas, cenários de direitos padronizados, leis a
protegerem todos os capazes de construir esperanças para si e os seus.
Contratos, vamos dizer assim. "Você trabalhou a vida inteira para mim,
dedicado, confiável, você é humano como eu, dá pra ver, merece a alforria, ter
sua vida em família”. Já havia, em 1870, a ideia de proteção aos escravos
velhos e essa ideia – proteger a velhice – está sendo destruída agora, em 2017.
Fico me perguntando sobre o
quanto o Harari, o autor israelense do livro Homo Deus, vende sua alma ao diabo, quando fala sobre a alma humana
e quando fala que: "Na essência, nós humanos não somos diferentes de
ratos, golfinhos ou chipanzés. Como eles, tampouco temos alma. Como nós, eles
também têm consciência e um complexo mundo de sensações e emoções. É claro que
todo animal tem traços e talentos exclusivos. Os humanos têm suas aptidões
especiais. Não devemos humanizar os animais desnecessariamente, imaginando que
são apenas uma versão mais peluda de nós mesmos. Isso não só configura uma
ciência ruim, como igualmente nos impede de compreender e valorizar outros
animais em seus próprios termos". Na página 135. O Harari retira a alma
dos humanos e continua a não aceitar esse grande conceito para os outros
animais. Não havendo alma alguma no mundo real, bom, então tudo são objetos,
pois tudo o que a palavra “alma” ilumina é o mundo exterior ao objeto
manipulável pelo ser humano, desde minerais, passando por outros animais e
chegando ao corpo humano interferido pela química, a biologia e a medicina. No final do livro, o Harari vai perguntar se
não deveríamos acreditar na vida como algo além dos algoritmos, mas será apenas
uma manobra de engenharia de linguagem, talvez para registrar a ideia de que os
nazistas têm sentimentos, que lhes sobra uma alma, talvez mais valiosa do que a
alma de todos os humanos sapiens e os outros animais que já a tiveram proibida
desde o início do livro.
Descobri o título desse capítulo
ao ler uma carta iniciada em 2012, assim: “Desde o dia em que fugi de Porto
Alegre estive mergulhada em um susto permanente, euforia camuflada pela astúcia
atenta de um estrangeiro fugitivo. Somente hoje senti a emoção consolidada de
estar morando em uma cidade pequena de interior, quando voltava quase à noite
pelas ruas vazias, um ou outro voltando também, pequenas ruas fluindo em
direção à praia, calma e cheiro e barulhos de mar lá longe e tão perto. Estou
ficando menos maluca do que estive lá, durante quase vinte anos. Como se um
espírito de angústia, um estado de alerta, estivesse evaporando de meu corpo,
aos poucos. Tenho variações de medo, do dia até à noite, como as mudanças de
cor nos joelhos contundidos das crianças, nos olhos espancados das mulheres e
dos prisioneiros. O roxo escuro, inchado, vai se transformando em espaços
amarelados e fica parecendo haver uma possibilidade de que aquilo deixe de
acontecer e desapareça. Tudo o que aconteceu comigo, nas margens do Guaíba,
conosco, com toda a gente comum e, sobretudo, com os líderes de acontecimentos
dissidentes; o assédio moral em todos os lugares, na política e no trabalho, os
homens atacando mulheres subversivas tanto no Islã como no interior de qualquer
ponto geográfico e político do Brasil da década de noventa, tudo deve ter
contado, em algum sentido, com a nossa própria participação. Nós migramos em
direção ao lugar da bruxa, do louco, do decaído; nós aceitamos a representação.
A pessoa participa do sofrimento que lhe foi proposto. Sente culpa pela
derrota. O homo sacer, do pensador
Giorgio Agamben, o sujeito escolhido para o sacrifício atola, não sai do lugar,
não vai embora”. Em 2012, eu desejava que em noventa os dissidentes tivessem
sido capazes de fugir.
Não é uma questão de falta de
informação, Zê, de engano. Há uma entrega ao estilo Fausto, do Goethe, e no
caso brasileiro dos dramas atuais ela foi realizada desde 1990 e atinge todos
os que tentaram "se dar bem" no hiperconsumo do início da revolução
tecnológica da informática. Lá, desde setores da tal esquerda (de todos os
tipos de agrupamento), passando por uma grande parte da juventude com 10 anos
de idade em 1990, que cresceu nessa lenha de se entupir de imagens e
mercadorias voláteis, e chegando nas massas pobres e em pânico que adicionaram
o fundamentalismo evangélico como imagem de potência politica e catártica,
todos esses setores aderiram a uma linguagem mentirosa, perversa, cheia de
silêncios e falsificações. Então, já lá, todos sabiam que "a cada quatro
pessoas mortas pela polícia três são negras". Todos os que sabem ler
sabiam. Então o direito penal alimentador de presídios e polícias foi
robustecido lá. Houve uma destruição em massa, no campo da ética, a partir de
final da década de oitenta, no Brasil. Podemos, então, distinguir dois
acontecimentos distintos para a situação “vender a alma ao diabo”: o tipo dos
que obedeceram a tiranos para salvar suas vidas, nos campos de concentração
alemães, na segunda guerra mundial, ou os escravos das senzalas brasileiras –
nos séculos XVII, XVIII e XIX - que se acomodaram em relações perversas para
conseguirem alforrias ou algum tipo de proteção, são um tipo de “venda da alma
ao diabo”, para sobreviver dentro de um cenário de tortura emocional e física
praticada contra toda a sociedade civil. Nesses mesmos cenários, de inauguração
de uma guerra ou um genocídio, há o tipo de acontecimento dos que fogem para
ficar entre os torturadores, também para sobreviver, mesmo não sendo o próprio
Mal, não sendo o próprio diabo, mas para sobreviver entre os que mandam, os que
tomam de assalto os governos, os que gerenciam as máquinas de adestramento da
sociedade civil, os que detêm o controle sobre as armas e os exércitos. Nem lembro dos motivos alegados pela Hannah
Arendt para o que ela definiu como sendo a banalização do mal. Talvez eu
discorde dela, talvez o Mal não seja banal. Talvez a gente precise entender e
perdoar. Entender que lá em noventa foram produzidos discursos de aceitação do
mal, de integração no modelo que estava sendo criado ali, naquela cena da queda
do muro de Berlim, mas por medo, por covardia, e não por maldade da esquerda
surgida no fim da União Soviética. “Não
há propriamente um 'fascismo’ agora, ele aconteceu no furor do consumismo, lá
no Lula paz e amor desenvolvimentista e conciliador. Lá implantaram os coach e a neurolinguagem. Lá era um fascismo, dentro da esquerda e da
direita, todos querendo ter um carro enorme de tração na quatro rodas, uma
geladeira de inox, com enormes compartimentos, falar inglês, viajar para Europa
e Miami todo ano, ser chique e vitorioso. Isso era fascismo e isso chegou na
produção de consumo da tal classe média nova e baixa, que não cresceu para ser
política, mas para ser massa de manobra. A tal esquerda bem sucedida vendeu a
alma ao diabo em 1990 e a população foi junto. O golpe sobre a Dilma foi só a
cereja do bolo”, escrevi no facebook, dias atrás.
Como se vende a alma ao diabo?
Indo aos poucos, aparando arestas aqui, aumentando arestas ali, ou mesmo
ficando quietinha num canto de um emprego público. Eu penso ter vendido um pedacinho da
alma ao diabo quando aceitei ficar viva e silenciar, apostar em uma saída
individual e, mesmo com sofrimentos de longa duração, chegar a uma
aposentadoria integral, sair na "lista de Schindler" dos aposentados federais de antes do golpe e da "reforma" da previdência. Há um passo a passo na fórmula do Fausto, do Mephisto. O
problema é: quem vende a alma ao diabo sabe que está fazendo isso e, ao fazer o
pacto, decide por um caminho quase sem volta. A população que aderiu a rituais
catárticos, fundamentalistas, como grandes festas e shows, grandes programas de
reality show na televisão, grandes resultados de pesquisas eleitorais, no
momento em que se deparar com o fim do sonho e da catarse, quando ficar de
frente com o cenário do “campo de concentração”, dos modos de destruição de
populações inteiras por meio de um etnocídio, poderá desistir das ilusões e se
reagrupar em movimentos defensivos. Mas a parcela que aderiu a estratégias de
participação em ambientes de elite só poderá sair da cena dominada pelo grande
Mal, pelo diabo, se migrar, novamente aos poucos, para linhas de ação
abolicionistas, quando a elite sapiens republicana começar a abandonar o robô Darth Vader e tentar se
reinventar como gerência do que sobrou da sociedade civil depois da guerra.
Por esses motivos, Zeferina, eu
não desprezo as manifestações do Ciro Gomes, ou de qualquer outro membro de uma
elite capaz de algum discurso visível no campo abolicionista, defensor de alforrias, apto a disputar o poder. Por
essas razões valorizo as possibilidades da fala do Lula de agora, não mais o do
Duda Mendonça. Para entender as diferentes formas de vender a alma no passado que engendrou o estado de exceção é
preciso perdoar e colocar-se em posição compassiva, generosa. Do contrário, até
por dentro de falas libertárias e radicais os mais apavorados poderão estar tecendo
novos pactos com novos estados policiais. O Mal é o mais bem sucedido inventor
de novidades. O Diabo aparece como o revolucionário mais eficiente, o discurso
mais exato, mais competente (como
falava a Chauí, em oitenta). Lamento ter escrito essa última frase, eu queria
que não fosse assim. Precisamos pensar sobre a ideia de “assalto”, de revolução
como uma tomada do poder central em uma sociedade civil. Acho que para romper
com o Diabo precisamos deixar de querer vencer totalmente.
versão dois foto: Daisy Weston
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