Querida Zeferina - carta quatro - Simone de Beauvoir está morta

(Uma grande fofoca sobre a história do Brasil – 1977/2017)



Querida Zeferina,


Comecei a ler Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo. Um texto de mil páginas, e ela talvez seja a mulher mais importante do feminismo do século vinte. Eu fui o que se chamava “militante” feminista desde o final de 1979 até 1989. Hoje se diz ativista. Dez anos. Durante esses anos todos aprendi que tinha sido feminista desde menina, quando protestava por ajudar na cozinha e meu irmão não. Depois de noventa fiquei sabendo que não só não era mais “militante feminista”, porque não mais pertencia a um grupo organizado, seja uma ong ou uma secretaria de partido, bem como carregava uma memória que não interessava a qualquer uma das organizações feministas de Porto Alegre. De militante desde criancinha, passei a ocupar o status de uma mulher comum, ou qualquer. Diz a fofoca que foi porque fiquei louca. Bom, continuei me achando militante feminista, mas já tinha sobrevivido mais de dez anos sem ler diretamente a Simone de Beauvoir, talvez a fala dela entrando em mim por vias transversas, outros textos, outros livros. A partir de noventa passei a não ter necessidade daquela leitura. Descobri recentemente que é um livrão. Agora, sem qualquer compromisso, estou com aquela mulher. Nas duas primeiras folhas senti zero identificação: eu sou tão menor e tão maior que ela.
Descobri hoje que o subtítulo deste meu livro deveria ser: uma grande fofoca sobre a história do Brasil. E, ainda, ao modo das teses acadêmicas, um corte preciso de datas, 1977, quando comecei a ser “militante”, e 2017, ano em que escrevo, ou reescrevo estas cartas para ti. Sim, porque alguém poderia dizer que esse livro seria “isso”, ou “aquilo”, ou “aquilo outro”, e que sendo isso seria inconsistente, sendo aquilo seria inadequado e sendo aquilo outro seria falho. Daí lembrei-me da tese defendida faz anos por mim, a de que a fofoca é revolucionária, porque é uma fala proibida e, não obstante, milenar, sempre presente, imune à censura feroz. O recorte de datas condizente com o começo da minha participação política e o momento atual. Então, eu fazendo fofocas sobre a história do Brasil para minha tetravó, obviamente morta. Vou ler a Simone e explicar uma hora dessas, aos pedaços e parcialmente, do que gostei e o que entendi como próprio daquela época muito particular quando ela escreveu. Ela, Simone de Beauvoir, é um arquivo pessoal, embora seja também um arquivo de época e, portanto, coletivo. Eu sou um arquivo pessoal, embora seja um corpo de restância de um rastro – isso é de Derrida - muito importante na história do Brasil. O rastro, não eu (antes que me chamem de megalomaníaca, como fizeram inúmeras vezes). Eu fui a gaúcha que foi entregar as assinaturas em favor da emenda popular da saúde da mulher na assembleia nacional constituinte, em 1987. Não fui eleita ou indicada em qualquer instância de movimento de mulheres ou feminista do Rio Grande do Sul. Eu não sei como é que aquilo aconteceu, só sei que fui posta num ônibus do PCB – o partidão – por uma amiga que eu não vou botar nome de ninguém neste livro, que é fofoca e não dá, né Zê? Criatura, aquela campanha foi tão doida, mergulhada em um memória coletiva – uma intuição consagrada – que acabou nos vendo como diabas, figuras medonhas, de tal sorte que só eu e Lelê – vou dizer só esse apelido – conseguimos chegar até aquele ônibus e não tenho a menor ideia de como aquilo se deu, que nem reuniões mais as mulheres do começo daquela campanha conseguiram continuar fazendo. Aquela situação de terror informal e a mulherada entregando folhas de emendas assinadas, umas para as outras, e aquilo chegando até a minha casa, sendo postas as folhas massarocadas por baixo da porta, gente me entregando montinhos de papel. Lembro que a Lelê desmaiou na porta do edifício onde eu morava. E eu subindo nesse ônibus, que era do PCB, e indo a Brasília sentada em cima de um pacote pardo com quatro mil assinaturas de pessoas, homens e mulheres, com seus documentos oficiais, na época ou o título de eleitor ou o registro geral, que o CPF não era ainda o padrão.
Então, a Simone de Beauvoir é um arquivo pessoal e é um arquivo de época e eu sou um arquivo pessoal e um rastro restante. Uma pegada, um osso enterrado, um monte de folhas assinadas da emenda que colocaram pelo vão da porta de casa quando eu já tinha embarcado. Cheguei impressionada com Brasília e a entrega das emendas e me deparei com aquele amontoado de folhas de emenda assinadas, ao abrir a porta. Como se tudo aquilo tivesse se desenrolado em um desespero propriamente heroico, as mulheres tendo que enfiar folhas pelo vão da porta, nos últimos minutos, na esperança de que alguém conseguisse fazer aquilo ir adiante. Depois eu volto a contar essa história.
Então “o meu arquivo pessoal tem uma configuração incomum”, escrevi em 2012: “Todos acabam tendo. Mas o meu mostra um tipo de loucura produzida nos grandes centros urbanos e uma especificidade que o caracteriza como pertencente a uma fronteira, abrindo o sentido de produção de novos formatos de memória, novos hábitos, em ruptura com as tradições milenares”. Em 2012, eu falava de um modo hermeticamente contido, não acredito que desse pra entender, exceto se se considerasse uma espécie de abstração poética. Mas eu falava, envergonhada e temente, numa busca de auto entendimento e de preservação de registros como “um patrimônio de importância vital”, “em um momento histórico no qual as memórias são perdidas, desfeitas, mergulhadas nas profundidades do excesso”. Falava com muito medo e agora não. Em 2012, escrevia de um modo agoniado, obscuro, ininteligível. E escrevia, Zeferina, naquele modo quase autista, coisas assim: “Isso será decisivo, na era que se inicia, aos que querem sobreviver”. E, ainda: “Não a memória de uma massa amorfa aprisionada nos censos nacionais, mas os arquivos de uma específica família, de cada família para si, a sua particular identidade na multiplicidade de suas raízes e bifurcações”. E mais: “Com o desenvolvimento da investigação, os arquivos pessoais irão adquirindo um determinado espírito (um fluxo de devir infinito) e, alguns, serão ousados o tanto necessário para que lhes seja dado um nome. O meu arquivo pessoal se chama Zeferina”. Não era um nome de arquivo, você é uma tataravó morta, verdade seja dita. O nome do meu arquivo pessoal é Dinah Lemos.
E escrevi, tímida e louca ainda, em 2012: “Na tradição dos últimos milênios, um arquivo pessoal ganhava o sobrenome de um homem, fundador de uma árvore genealógica inscrita em uma determinada propriedade privada e acumulação de riqueza e poder. Alguns raros arquivos pessoais com sobrenome de homens ganharam status de espírito e fluxos de devires infinitos ao serem convertidos em arquivos públicos, coletivos e indestrutíveis, imortais. Por exemplo: Cristo, Buda, Marx, Freud, Lacan”. Bom, digo hoje, em 2017: lembro ter lido em um livro sobre a história de Jesus, que as palavras “Jesus” e “Cristo” eram genéricas, na época, ou seja, significavam algo assim como “o cara salvador”. Tipo o “Lula da Silva”, no Brasil de 2017, quando quem está no governo quer prende-lo e a maioria da população o escolhe para ser presidente do país. Bom, “Lula da Silva” é um nome próprio, mas a ideia é a de um sujeito que, ainda com todos os problemas nos quais estamos mergulhados, poderia arrumar o governo e o Brasil de um modo melhor do que qualquer outro indivíduo.
Já tendo fugido de Porto Alegre e antes de 2013, escrevi, finalmente: “Agora, no terceiro milênio, surgirão os arquivos pessoais bloqueados para esse tipo de conversão. Nietzsche tentou dizer isso”. Outros falaram sobre, recuperando a ideia bíblica da torre de babel, mas só agora, em 2017, muitos já sabem que um número grande demais de seres humanos não tem a menor ideia do que está acontecendo com o mundo humano e seu planeta.
Justo agora achei Simone de Beauvoir. Isso acontece com quem passa a vida lendo, a gente se depara com um livro que estava ali, na estante, há décadas, e ele então te pede para ser lido. Agora vou ler O Segundo Sexo, um livro de mil páginas que sempre foi tão bem entendido por um número muito grande de gentes. Bom, a Simone também é uma morta, mas as frases do seu livro não falam comigo, ela não tem vida para mim e seu texto é perfeito. Eu não, nem você, né Zê?
                                                                         
                            versão cinco         foto: calles onde se anda, Luiz Eduardo Robinson Achutti

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