Querida Zeferina,
Imagino que teu filho, pai da
minha avó, tenha nascido entre 1880 e 1890, bem próximo da lei áurea, a lei que
aboliu a escravidão negra no Brasil. Nasceu no Rio Grande do Sul, não é? E,
embora tenha ido parar em uma região próxima às charqueadas, quando adulto, ele
nasceu nesta capital, Porto Alegre, onde choramos hoje o medo de uma nova forma
de estado de exceção. As charqueadas eram lugares de escravismo mais brutal, os
negros fugitivos enviados pra lá, de todo o Brasil, morrendo não raro em dois
anos, em meio à lida em lugares encharcados de sangue de gado, contaminações, sofrimentos,
apodrecimentos e sal. O relato colhido por meus ouvidos diz ter sido este
bisavô um dos três filhos retirados de ti para serem criados por “dindas”
brancas e bem situadas na vida, os três que você pariu claros, sararás. Zeferina
uma alforriada, possivelmente uma filha de ventre livre. Negros branqueados por
terem pai de descendência portuguesa. Os outros, reza a lenda, ficaram com você
para serem pobres e esquecidos. Havia um desses filhos negros que era um
violeiro, artista, e era muito bonito.
O Graciano era seu amante, casado com
uma branca, mas dela não teve filho algum. Muitos filhos dele você teve, filhos
teus, mas só os claros foram entregues para “gente de bem”. Depois falo daquele
seu neto que virou senador, que incrível! Estou pensando que muitas dessas amantes
pobres do século dezenove eram, na verdade, uma espécie de prostituição em
espaço privativo, ou seja, uma prostituta de um homem só, mulheres forçadas a
um tipo de vínculo ainda escravo, porém agora cheio de nuances mais ainda
ambíguas do que as que sempre houve, no Brasil, desde as primeiras indígenas
amásias, nos tempos do descobrimento. Algumas chegaram ao poder e à relevância
de Chica da Silva, a negra que experimentou um lugar nobre, de amante favorita
e oficial do contratador João Fernandes. Tem até um filme, com a Zezé Motta de Chica e
o Valmor Chagas como comendador. Um filme caro e famoso, do diretor Cacá
Diegues. O mito de que eram mulheres com um poder especial guardado em suas
vaginas mágicas. Chica da Silva teve treze filhos. Você teve quanto, Zeferina?
Ninguém sabe ao certo, uns dez também. Imagina dez vezes grávida, dez vezes
parindo. Parindo um verdadeiro exército. Ficaram para a história apenas seus três
filhos mais claros, um deles meu bisavô. Dele, nasceu minha avó, lá por 1909, e
dela, nasceu minha mãe, lá por 1930, já no primeiro tempo de Getúlio Vargas
mandando no Brasil.
O escravismo é tão perto de nós, no tempo, que
às vezes eu penso ser a ideia de algo longínquo e inexistente plantada não
apenas pela enganação da lei áurea, mas, sobretudo, por termos várias gerações
de gente descendente de imigrantes italianos e – em menor número –alemães, nos
quadros intelectuais das universidades brasileiras. Tivemos vários mestiços e
alguns poucos mais negros ou negros sem grandes misturas, nos bancos das
universidades desde os tempos do Brasil império até o começo das políticas
afirmativas dos governos petistas, já no século vinte e um. Mas mesmo esses
negros ou pardos estiveram sob forte influência do mito do fim da escravidão, abolida
por uma lei decidida e imposta pelos donos dos plantéis de escravos. Foi assim
que chegamos aos tempos atuais com a predominância da ideia de que existem
apenas resquícios, preconceitos sem fundamentos materiais, sem serem
acontecimentos orgânicos da sociabilidade, sem efetuarem estruturas concretas,
apenas mitologias a serem extintas por insistente propaganda propositiva de um
novo viés comportamental – predominantemente estético, cabelos como bandeiras –
a ser adotado pelas pessoas comuns, negras puras ou não. Nesse entendimento, os
pardos, mestiços de todo o tipo, os branqueados por gerações de tentativas de
fuga através de linhagens de “criados por gente de bem” não são pensados pelas
teorias acadêmicas destes que foram sempre brancos, principalmente de origens
italianas, ou os poucos negros, e gentes de outras etnias migrantes, ocupantes
dos postos de enunciação discursiva nas universidades. Nós, os descendentes dos
filhos que não foram esquecidos, os entregues para “dindas” brancas criarem,
colocados em escolas boas, feitos intelectuais em vários graus diferentes de
importância e poder dentro do mercado de trabalho, nós não somos considerados
negros, nem pensados como envolvidos por efeitos daquela dominação, nem temos
direito à palavra como setor social com semente na cena da escravidão e morada
em seus prolongamentos atuais. Somos mudos, invisíveis silenciados para este
assunto. Somos condenados a uma brancura que não possuímos, sem, contudo,
deixarmos de sofrer as penas de uma presença étnica exterior aos núcleos que se
sabem realmente brancos. Nós somos os mestiços sem direito a qualquer inclusão
étnica.
Essa carta havia começado por uma
explicação dolorida sobre como os governos do Partido dos Trabalhadores não
conseguiram realizar o propósito inicial da fundação deste partido, qual seja o
de romper com os paternalismos da Era Vargas, atitudes de elites nos governos
regionais e nacional do Brasil que, sem deixar de ser vinculadas a coronelismos
locais, orgulhavam-se de seus contornos desenvolvimentistas e estimuladores de
alguns níveis de bem estar social, ampliação de espaços jurídicos republicanos
e, portanto, expansão de possibilidades de exercício de cidadania para largos
setores da população subalterna. Era uma carta focada na preocupação sobre o
entendimento do que, afinal de contas, poderíamos entender como sendo um
“espaço público” no país Brasil. Qual poderia ser uma narrativa sobre a
história desse espaço público, suas inconsistências, suas aberturas de
identidades civis.
Fico imaginando que não havia
esse desejo, ideia, conceito de “espaço público”, naquele tempo de crueldades
normais. Lamento muito comentar, mas aqui não é uma rede social e então eu
posso dizer sem rodeios: o espaço público desapareceu no Brasil, agora em 2017.
Não sei se ele existe em algum outro lugar do mundo, mas aqui ele sumiu como
some qualquer possibilidade de paz em um casamento, quando é anunciado o seu
término, aquela frase finalmente dita: eu quero o divórcio. Na verdade, no
segundo seguinte a essa frase se instala uma paz nascida naquilo que é
irremediável. A morte muitas vezes é assim, uma bala perdida, um atropelamento,
um acidente de carro, ou de avião, fatal. Da noite para o dia. Os casamentos
sempre terminam em um dia, é um, é dois e já! Fim. Mas depois fica aquela ideia
de que há muito tempo já era muito ruim: “eu só fui feliz com ele durante
quatro anos, depois levei com a barriga, aguentei de tudo”. O fim do espaço
público, no Brasil, está com essa sensação de algo que aconteceu em um dia, mas
que vinha de antes, muito antes. Como
nos casamentos, depois de alguns meses deles desfeitos as partes envolvidas
sentem saudades, mesmo daquele longo período no qual as coisas já eram levadas
com a barriga. Fica pesando a morte, ficamos sentindo a dúvida se não teria
sido possível remendar, arrumar antes do fim. Fica sempre a culpa.
Assim acabou a democracia no
Brasil, não sei dizer quando se pode identificar aquele momento da calma de
quem entende que realmente acabou, se quando da votação contra a Dilma – por amor
às famílias deles – ou se quando caiu o avião do Teori e logo depois morreu a
Marisa. Para ser sincera não há mais o que se possa dizer que realmente se
realize como uma fala pública. Até nas redes sociais se diz que estão
contaminadas por robôs e invadidas por organizações secretas de exércitos de
grandes elites financeiras. Há um enorme silêncio se abrindo nos computadores
pessoais. Tudo o que é dito carrega uma escolha definitivamente privada.
Eu sei que o pessoal que lê tem
dificuldade para entender o que quero dizer e onde quero chegar. Um dia desses
uma leitora reclamou. Lamento, mas escrevo para minha tataravó obviamente
morta. Então não há problema algum na falta de entendimento, em qualquer tipo
de angústia ou abandono, se tudo é privado, se o espaço público desapareceu,
não há a necessidade de entendimento legalizado, normal, regulamentar. Falamos
desde nichos domésticos e o meu é esse tipo de carta aqui. Todas as dinâmicas
de alteridade em espaços civis, públicos, foram silenciadas, extintas,
extirpadas. Mais do que proibidas, foram desconfiguradas por fragmentações
esquizofrênicas das linguagens políticas. No mundo todo acontece essa extinção,
mas a partir de mecanismos distintos em cada lugar, cada país, cada continente.
E se não há mais dinâmicas normativas e públicas de alteridade, as diferenças,
as contradições acabam sendo ou jogos de nobrezas distintas, conflitos entre feudos, tribos ou gangues, ou guerras
sanguinárias. Você começou a entender, mas não me peça explicações, elas seriam
o nado da tartaruga emaranhada em farrapos de uma rede de pescar, sozinha, sem
um socorro humano. Explicações fadadas ao naufrágio em tessituras agressivas
das redes sociais. Escolha seu lado, aguente as nojeiras que nele habitam,
submeta-se às hierarquias dos muros que te conferem um pouco de pertencimento e
cale-se. Ah, você dirá, mas onde há mais de um humano sempre haverá alteridade.
Pode até ser, mas quando um casamento termina, uma morte acontece, há um luto,
há um comer, dormir e rezar. Mas não estou falando com você, repito, falo com
Zeferina, a avó da minha avó, que é morta, e isso confere a essa carta um lugar
de fofoca. As fofocas são escondidas nos lugares onde o surgimento da
alteridade é clandestino. Lembra-se do filme 1984? Aquele que ninguém pode
falar com ninguém? Sim, sei, você lembra de outros filmes, como THX1138, de
George Lucas, por exemplo.
Voltando ao assunto: como uma
mulher negra, talvez nascida de ventre livre, tornada amante de um homem
branco, saberia ver seus filhos mais negros rejeitados e seus filhos mais
claros escolhidos, reconhecidos pelo amante branco? Se você se detiver examinando
esse problema verá o quanto ele tem uma enorme violência bordada, pregada,
costurada dentro da situação. Como uma mãe vai tendo filhos e vai vivendo uma
vida inteira testemunhando o abandono de um grupo deles e a proteção de outra
parte, pelo homem que a tem como propriedade privada? Pensa. Ela não podia
reclamar, aquilo era uma situação normal, cotidiana. Certo, Zê? Talvez agora você tenha começado a entender,
mas não falo com você, falo com ela.
Querida Zeferina, o que poderia
ter você a ver com Simone de Beauvoir? Vamos continuar nossa fofoca por aí.
versão três. foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti
Nenhum comentário:
Postar um comentário